A vida bem que poderia ser um eterno domingo, não? Não que nos outros dias devamos nos esquecer das pequenas alegrias que a vida nos proporciona, mas certamente tudo adquire um colorido a mais quando se dá esse curto respiro a cada cinco dias de trabalho duro — em que muita gente continua cortando um dobrado e mourejando ainda mais, a fim de garantir os momentos de prazer de quem está de folga (e faturar um troquinho extra, qual o problema?). Aos fins de semana, como num passe de mágica, como numa ópera de Giuseppe Verdi (1813-1901), a gente se sente mais leve, mais animado, os pássaros cantam mais alto (até no inverno), as crianças brincam até tarde (tarde até demais), as manchetes de tragédias nos jornais são relegadas à lúgubre segunda-feira, quando o ramerrão volta à carga. Como em “La Traviata”, ópera de Verdi de 1853, como no grande cabaré em que a existência humana se transforma às vezes, aproveitamos o fim de semana para praticar os prazeres que nos nega a vida nos dias de peleja. Quem é de sambar, se despacha logo para o primeiro morro, o primeiro barracão que encontra, se as condições sanitárias permitirem, claro; para os que são mais chegados a um programinha mais light, a primeira sugestão que aflora é um livro, um papo despretensioso com os amigos, uma partida de futebol… Há quem jure por todos os santos que seja tomado de verdadeiro júbilo com a sensação de realizar uma faxina daquelas, depois de ver a casa limpa, evidentemente. É claro que, justo aqui na Bula, não iríamos esquecer dos filmes, a melhor pedida do fim de semana, no esquenta antes da balada, ou para aqueles que já se decidiram (ou se conformaram) a ficar em casa. Na nossa lista de hoje, temos cinco pérolas, ou ainda mais, cinco diamantes para você ter no seu descanso experiências preciosas. Podemos começar com “Paulo, Apóstolo de Cristo” (2018), de Andrew Hyatt, sobre um dos primeiros intelectuais cristãos, Paulo de Tarso. Uma história dedicada, como se lê nos créditos finais, a todos os perseguidos por sua fé. Seguimos com “A Garota Dinamarquesa” (2015), dirigido por Tom Hooper, ode aos amores impossíveis, mas verdadeiros. Os títulos, todos na Netflix, aparecem do mais novo para o mais antigo, em ordem alfabética, sem nenhum outro critério. Você descansa e a gente rala, para que você descanse ainda mais. Ah! Pensando bem, qual seria a graça se a vida fosse um eterno domingo, certo?

O que chama mais a atenção em “Antonia: Uma Sinfonia” é saber que esta é uma história real, leia-se possível. O filme, escrito e dirigido por Maria Peters, uma mulher — e isso faz, sim, toda a diferença —, pontua por alto a trajetória profissional da biografada, a maestrina holandesa radicada nos Estados Unidos Antonia Brico (1902-1989), dando ênfase maior à relevância de suas conquistas, o que deixa o público meio perdido no começo, mas à vontade para ir a fundo e conhecer um pouco mais sobre a carreira de Antonia por si só. Logo vai se saber que ela tornou-se mundialmente famosa e reconhecida ao ser a primeira regente mulher de uma orquestra, a Filarmônica de Berlim. Para isso, não pôde nunca descuidar da formação acadêmica, obsessão que um homem com o seu talento talvez não tivesse. Frequentou a Oakland Technical High School, em Oakland, onde se graduou facilmente, contando com a vasta experiência que já tinha com o piano. Tornou-se também a condutora da Orquestra Sinfônica das Mulheres, iniciativa sugerida por ela, depois batizada Orquestra Sinfônica Brico. A garra de Antonia permitiu que chegasse ao posto mais alto da Orquestra Filarmônica de Nova York. Tantas flores, claro, trariam alguns espinhos. A mãe de Antonia, que fora adotada ainda em tenra idade, parecia, à luz da tirada de Antonio Carlos Jobim (1927-1994), outro grande maestro, não lhe perdoar o êxito, e a relação das duas, antes afetuosa, tornou-se fonte perene de conflitos. O relacionamento amoroso com Frank Thomsen, tratado erroneamente como uma espécie de benfeitor de Antonia ao “permitir” que ela seguisse se apresentando, também é abordado, e de sua inclusão no enredo pode-se tirar conclusões o seu tanto reveladoras. “Antonia: Uma Sinfonia” é exatamente isso, uma junção de acordes dissonantes em muitas ocasiões, como sói acontecer na vida de qualquer um, artista de renome ou não. E, não, o filme não se presta a isso, mas também ganha força ao apresentar, pela verve da mensagem, um discurso a favor da igualdade de gêneros.

Demorou para que um dos primeiros intelectuais do cristianismo, grande teórico da religião difundida por Jesus, tivesse um filme à altura de sua importância, não para a teologia, mas para todo o gênero humano, a qualquer época. Paulo, como era conhecido na Roma Antiga — principalmente depois de abandonar a trajetória de judeu intolerante, perseguidor de cristãos a fim de propagar a mensagem do evangelho —, é o responsável por ter lançado as primeiras diretrizes acerca dos dogmas do catolicismo como os conhecemos ainda hoje. Ao se deslocar rumo a cidade de Damasco, na Síria, o apóstolo teve uma iluminação e, literalmente, cai do cavalo ao se deparar com a imagem do próprio Cristo. Chega à conclusão de que sua vida não fazia sentido da forma como vinha se lhe apresentando. Paulo muda seu caminho e sai pelo mundo em nome da causa em que passa a acreditar, bem como seu melhor amigo, o médico Lucas, que o assiste até o fim. São Paulo Apóstolo percorreu 16.000 km levando a Boa Nova. Seus textos constam em diversos momentos do Novo Testamento, especialmente nos Atos dos Apóstolos, em que discorre sobre os sentimentos mais íntimos do homem. Sua “Carta aos Coríntios” tornou-se popular na voz de Renato Russo (1960-1996), de onde se destaca o trecho que diz que ainda que se fale a língua dos homens e dos anjos, não se chega a lugar algum sem amor. Depois ter combatido o bom combate, concluído a carreira e guardado a fé, Paulo de Tarso foi decapitado a mando do imperador Nero no ano 67 d.C., aos 62 anos.

Lina, uma garota da Lituânia, sua família e seus vizinhos são capturados pelas tropas do Eixo na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A partir do avanço da União Soviética, de um lado, e de Hitler, pela outra frente, o país fica cercado, só sobrando aos lituanos a opção de se renderem. Os prisioneiros são mandados para campos de trabalhos forçados na Sibéria, os gulags, o que soa como verdadeira sentença de morte, dadas as condições inóspitas do lugar e o tratamento dispensado pelos comandantes aos cativos. Lina vai levando aquela vida da melhor forma que consegue, se valendo do talento para o desenho como passatempo, e é justamente essa sua aptidão que lhe vai garantir alguma vantagem sobre os outros, mote também de “O Fotógrafo de Mauthausen” (2018). Um dos generais gosta do que Lina apresenta e lhe pede que faça um retrato seu. A narrativa dá um salto o seu tanto exagerado, deixando de explorar melhor o episódio e responder algumas perguntas que o espectador decerto se faz em silêncio, como acerca do porquê de tamanha amabilidade, e tão repentina. A performance de Bel Powley igualmente vacila um pouco, mas o vigor do enredo se mantém. “Retratos de uma Guerra” parte de uma premissa correta, conta com sequências bem dirigidas e lança luz sobre um assunto já amplamente escrutinado pelo cinema, mas sob um olhar revigorado. Merece a consideração do público.

Road movies têm o condão de transportar mais do que personagens e atores — levam também a história e o espectador ao longo das descobertas que um bom filme propicia. Com “The Leisure Seeker”, o diretor Paolo Virzì, do excelente “Capital Humano” (2013), apresenta uma história comovente, engraçada, analítica, e, sobretudo, bem contada, graças ao casal de protagonistas, veteranos com uma bagagem digna de registro. Ella, de Helen Mirren, é uma mulher simples, prática, sem muito requinte e com muitas dores, mas que permanece casada com John, incorporado por Donald Sutherland, um intelectual que começa a acusar o flagelo do mal de Alzheimer. Antes que seja tarde — e a morte não é uma questão aqui —, decidem partir em viagem até a Florida, no sul dos Estados Unidos, a fim de conhecer a casa onde morou o escritor Ernest Hemingway (1899-1961), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1954, o ídolo maior de John. O contraste entre os dois é o sal do filme, e por tão autêntico, por tão espontâneo, é garantia de riso frouxo para o espectador. Mirren é uma atriz formidável, conhecida do grande público graças à sua interpretação vívida (e humana) da gélida Elizabeth II em “A Rainha” (2006), mas Sutherland é quem se apossa mesmo da trama. O ator está completamente à vontade na pele de John. A sintonia que demonstra com o personagem, a quem não dá refresco e mantém em rédea curta, nunca se permitindo resvalar em caricaturas grosseiras — ainda que se exceda um pouco nas diversas gags do texto, especialmente as tratam do Alzheimer — é tocante. Virzì chega a abordar (tibiamente, até porque não era esse o seu propósito fundamental) o pouco caso do sistema público de saúde americano — famoso por sua péssima qualidade — para com os velhos. John é um simpatizante do finado Donald Trump, o que se configura um escorregão daqueles do roteiro quanto à coerência. A trilha, cuidadosamente pensada, faz menção à vida em liberdade ao recordar Janis Joplin (1943-1970) em “Me & Bobby McGee”, romântica na medida. “The Leisure Seeker” é mais uma prova — e um estímulo — de que envelhecer e encaminhar-se para o fim inescapável não precisa nenhum drama. Se a vida é uma eterna busca por prazer, o fim da história tem de manter esse tom.

“Um Amor Verdadeiro.” Este também poderia ser o nome do filme de Tom Hooper que conta a peculiar história do casal de pintores dinamarqueses Einar e Gerda Wegener. Ele, um artista cujo talento já era ampla e merecidamente reconhecido, faz de tudo para incentivar Gerda, que ainda tropeça na carreira. A fim de ganhar tempo e economizar uma ninharia qualquer que pode fazer falta, sugere a Einar que pose para ela, o que não constituiria problema algum, excetuando-se o fato de que Gerda retrata um tipo feminino. Ele, a princípio constrangido, acata a ideia, e logo começa a questionar sua vida até ali. A experiência se repete e Einar chega à conclusão de que estaria sendo impiedosamente perverso consigo mesmo se não encarasse a realidade que sua própria alma lhe revelava: ele é na verdade o que a ciência hoje denomina como uma mulher transexual, um homem que não se adequa à sua condição biológica, trocando em miúdos. Apesar de devastada por saber que, cedo ou tarde, vai perder o grande amor de sua vida, Gerda retribui todo o apoio que Einar sempre lhe devotara e aceita que o marido assuma publicamente a nova identidade. Quando ele, enfim, decide se submeter a uma polêmica — e arriscada — cirurgia de redesignação de gênero no hospital em que clínica o doutor Warnekros, na Alemanha, Gerda o acompanha. Na primeira etapa da intervenção tudo corre bem, mas o fim de Lili — o nome que Einar adota na vida que passa a ter —, é infausto. “A Garota Dinamarquesa” é o típico caso de filme de ator, em contraposição à pletora de filmes de autor que o cinema produz ano após ano. Eddie Redmayne talvez seja o maior representante da arte dramática de sua geração. Em todos os trabalhos a que se dedica, Redmayne deixa a marca de um artista que leva o personagem para a cama sem qualquer prurido de melindrar os brechtianos de plantão (profissional até o osso, como não mencionar a sua interpretação mediúnica do físico britânico Stephen Hawking em “A Teoria de Tudo”?). “A Garota Dinamarquesa” é lindo, emocionante, alentador, vibrante. Mérito quase integral de Eddie Redmayne.