Ao lado de Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Martin Heidegger (1889-1976), Arthur Schopenhauer (1723-1790) compõe a trindade nada santa da filosofia contemporânea. A obra de Schopenhauer talvez seja o ponto de interseção entre o pensamento nietzschiano e o de Heidegger. Ainda que grande parte de sua produção se comunique diretamente com a de Nietzsche e Heidegger, Schopenhauer tem uma maneira absolutamente original de ver a vida e o homem, sem todo o niilismo de Nietzsche — e alguém teria? — e tampouco a visão o seu tanto poética do colega de Messkirch. Os três tiveram trajetórias parecidas: Schopenhauer nasceu em um país com tradição em estimular e fomentar a educação formal, como é o caso da Alemanha dos outros dois; era igualmente um obcecado com o trabalho, primeiro como homem de negócios, carreira da qual acabou por abdicar, graças a uma herança paterna, e depois assumindo sua vocação acadêmica. Schopenhauer se aproximara da medicina, em 1809, migrara para a filosofia em 1811, e, quase mudara de vida outra vez, em 1813, quando quis se alistar nas tropas contra o avanço de Napoleão Bonaparte (1769-1821) sobre os demais países da Europa, mas desistiu. Ninguém pode dizer o que teria sido de Schopenhauer na guerra, talvez tivesse se tornado um soldado de valor, pelo afinco com que se dedicava às causas em que cria. No mesmo ano, concluiu sua tese de doutorado em filosofia, “A Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão”, em que discorre sobre os quatro componentes do que há de menos parcial no homem, o princípio da identidade; o da não contradição; o do terceiro excluído; e o da casualidade. A partir dela, cinco anos depois, vem à luz sua obra-prima, “O Mundo Como Vontade e Representação”, por meio da qual defendia a ideia da vida sob a forma de uma vontade de vida, isto é, a vida seria uma mera prospecção do homem acerca de seus desejos mais obscuros. O homem não sabe querer, pois ao querer já espalha destruição por todo lado, e, portanto, há que se negar toda vontade, mesmo (ou em especial) as que, aparentemente, possam induzir a supostas boas intenções. Com Arthur Schopenhauer como mentor, elaboramos uma listinha daquelas, com seis filmes que tomam o conjunto de ensinamentos do mestre por guia. Em “Império dos Sonhos” (2006), David Lynch traz a história de uma atriz que leva a personagem para a cama; já em “Kumiko, a Caçadora de Tesouros” (2014), de David Zellner, se dá o inverso: uma mulher comum vira a protagonista de seu filme preferido. Os títulos são citados do mais recente para o lançado há mais tempo e não seguem nenhum outro critério. Se a vida é um caso perdido, junte-se a ela.
Terrence Malick foi se convertendo num diretor cada vez mais cabeça. Em “Cavaleiro de Copas”, a metafísica estética de Malick, por sua vez, se revela verdadeiro subgênero dentro dos filmes autorais quando ele parte da escolha artística de desvendar ao espectador a vida caótica de seus personagens por meio da maçaroca de imagens que apresenta. Já Christian Bale parece muito à vontade ao interpretar o playboy (mais um) que protagoniza o longa. Como em “Psicopata Americano” (2000), Bale dá vida a um sujeito totalmente corrompido pelo dinheiro, que se mostra inútil para ele. Apático, segue a vida sem maiores ambições, sem desejo de nada, indo para a cama com o maior número de belas mulheres que consegue, ao passo que tenta chegar a alguma conclusão sobre de que outra maneira poderia viver. “Cavaleiro de Copas” poderia ser comparado a “A Árvore da Vida” (2011), também de Malick; a diferença de que aqui o componente religioso é substituído pela luxúria, nas mais variadas acepções. O personagem de Bale só é tão bem-sucedido na arte de seduzir graças à sua fortuna e sua fortuna só encanta as mulheres fúteis e vazias como ele. Estaria tudo certo, então. Mas não está. Bale, grande ator que é, deixa implícita a melancolia do personagem, agravada pela morte recente do pai. Ao abordar as idiossincrasias de um homem em sofrimento espiritual, ainda que não saiba, o filme pode ser lido como um manifesto à renúncia ao mal, mesmo que o mundo — e o próprio homem — sejam malignos por natureza. Cabe a cada um encontrar a carta que melhor lhe serve.
Homem nenhum nasceu para viver sozinho. Será mesmo? James Ponsoldt parece não estar de pleno acordo com essa premissa, tanto que põe o dedo numa chaga ainda aberta. Ao acompanhar a turnê de lançamento do livro “Infinite Jest”, de David Foster Wallace (1962-2008) um dos mais aclamados escritores dos Estados Unidos, o jornalista David Lipsky passa a conhecer o homem por trás do personagem, tornando-se ele próprio um autor de sucesso ao publicar as memórias do encontro, “Although Of Course You End Up Becoming Yourself: A Road Trip with David Foster Wallace”, publicado em 2010. Ao longo de cinco dias, Lipsky, jovem repórter da revista “Rolling Stone”, passa do encantamento inicial com Foster Wallace à impaciência, e daí a uma ponta de indignação, assombrado com a personalidade megalomaníaca do autor. Até que resolve fazer o jogo dele, e tem início uma pequena guerra fria que tempera o seu tanto a vida dos dois, ao menos durante aquele breve período. Inteligente ao saber explorar a figura de David Foster Wallace do ponto de vista humano, sem se deixar seduzir pelo argumento ligeiro do foca deslumbrado com a possibilidade de conhecer o ídolo, o filme se sai muito melhor que o esperado. Apresentando narrativa fluida, ainda que não propriamente linear, “O Final da Turnê” se aprofunda no encontro dos protagonistas, suscitando uma ânsia por conhecê-los melhor — mesmo que a família de David Foster Wallace preferisse abafar a história, à custa de um caminhão de processos judiciais.
Numa sequência muito particular, vinda à luz pelas mãos de outros diretores e usando apenas o mote principal, “Kumiko, a Caçadora de Tesouros”, dos irmãos David e Nathan Zellner, conta uma história sem nada de convencional, toda feita de retalhos de passagens ao acaso num roteiro que nem por isso deixa de ser coeso. Kumiko é a típica oriental. Moradora de Tóquio, trabalha como secretária de uma grande corporação, e detesta o emprego. Não bastasse ser completamente frustrada na carreira, tem de lidar com as cobranças de sua mãe e seu chefe acerca da falta de marido, o que nem de longe é uma preocupação para ela. Sem a exata ideia do que está fazendo com sua vida, sem aspirações, sem planos, Kumiko só pensa em encontrar as riquezas do filme “Fargo” (1996), dirigido pelos irmãos Ethan e Joel Coen, que o personagem de Steve Buscemi escondera na ficção. A narrativa se equilibra entre Japão e Estados Unidos. O roteiro dos irmãos Zellner joga com as susceptibilidades do espectador, fazendo com que se passe a imaginar qual o conflito da personagem. Seria louca? Ou apenas ingênua? Talvez a primeira possibilidade se revelasse verdadeira, haja vista a mediocridade sufocante em que passa seus dias. Sem dúvida, se trata de uma figura completamente gauche, meio farsesca, meio fantástica, mas que se bate contra si mesma, tentando escapar da opressão que é viver sem propósitos. “Kumiko” soa pretensioso, mas dá conta de falar acerca de solidão, melancolia, a dureza da realidade, da qual todos, em maior ou menor medida, já provamos um naco. O filme foi livremente inspirado em eventos reais. A verdadeira Kumiko, Takako Konishi, saiu do Japão aos 28 anos, depois de ser demitida, rumo à América, a fim de encontrar o homem com quem mantinha um relacionamento clandestino. Ao ser encontrada morta, na rua, pouco antes do inverno de 2001, a imprensa marrom tratou de conferir à história um caráter romantizado, e adicionou o elemento “Fargo”. Esclarecido o caso, graças a um bilhete enviado à família e ao registro de uma ligação entre Kumiko e o amante, se ficou sabendo que Kumiko cometera suicídio ao ser preterida pelo companheiro. Jogo metalinguístico de alto nível, “Kumiko, a Caçadora de Tesouros” é um conto de fadas às avessas, comovente, lacrimoso, triste, e, assim mesmo, pleno de beleza. De fato, um tesouro.
O talento de Sarah Polley despontou em 1985, aos seis anos, mas a canadense só passou a ser reconhecida mesmo depois de “Madrugada dos Mortos” (2004), de Zack Snyder. Desde então, já começava a se aventurar como diretora. “Longe Dela” (2006), estrelado por Julie Christie, recebeu duas indicações ao Oscar — sendo uma de Melhor Roteiro, para Polley. Como a vida não é perfeita, enquanto na carreira tudo ia em ouro sobre azul, a diretora passava por momentos particularmente delicados na vida pessoal. A história da família de Polley decerto se assemelha a de tantas outras, o que adquire um gosto todo especial é a forma como é narrada. O fio principal do enredo é acerca de uma suspeita que a diretora tinha sobre sua verdadeira origem. Em seu documentário íntimo a verdade importa, por óbvio, mas a maneira como se deve atingi-la é igualmente preciosa.
Quem pode se dizer à prova de paixões inesperadas e fulminantes, tanto mais em se tratando de uma artista? A mulher é instável como pluma ao vento, como canta a ópera de Giuseppe Verdi (1813-1901). Ao apresentar ao público Nikki, uma atriz casada que vai para a Polônia fazer um filme, tem um caso com um companheiro de cena e vê a vida se tornar a própria história que protagonizava na ficção, David Lynch propõe uma parceria com o espectador. Ninguém do lado de cá se mete a fazer julgamentos quanto à verossimilhança do enredo — afinal, isso é cinema —, enquanto o diretor leva uma trama repleta de suas qualidades mais caras. O já característico surrealismo de Lynch se veste de uma aura o seu tanto mais metafísica em “Império dos Sonhos”, muito mais do que já se vira em “Cidade dos Sonhos” (2001). O título do filme de 20 anos atrás serve como referência confiável para o sucessor: este é igualmente dotado de carga onírica, e, como num sonho, vida e delírio tornam-se uma coisa só.
Bônus
Conversão, caminho de Damasco, mudança de vida, conceitos valiosos ao povo russo, que o gênio de Fiodor Dostoiévski (1821-1881), Liev Tolstói (1828-1910) e Andrei Tarkovski (1932-1986) absorveram e transpuseram para seu trabalho como artistas. No filme, Andrei Rublev (1360-1430), alcançava prestígio e fortuna como pintor de ícones da Rússia do século 15. Mergulhada numa eterna instabilidade política que lançava o povo a constantes ondas de fome e violência crescente, a Rússia não era pobre, era miserável, o que não chegava a ser uma questão para a Igreja Ortodoxa, mais preocupada em converter os hereges e perseguir os insubordinados. O clérigo não toma partido, mas Rublev, num terrível drama de consciência, larga a vida de ostentação em que dissipava níqueis e energia e torna-se um monge, não prescindindo da atuação prática junto aos desvalidos até morrer, aos 70 anos. Seu nome até hoje é reverenciado na Rússia, de há muito esquecida dos valores pregados por um de seus patriarcas mais valorosos.