Muito já se disse e se escreveu a respeito da famigerada “função da arte”. Há quem diga que a função da arte é educar, preparar o homem para o futuro, instigar no homem uma consciência de fazer parte de um todo, de um organismo maior que seu próprio corpo, que sua própria família, seu próprio círculo de amigos, sua cidade, seu país, quem sabe esperando que deixe de caber no próprio planeta. Por outro lado, muitos defendem que a função única da arte é precisamente essa, ser arte. A arte pela arte é arte ao quadrado e, em muitos casos, é muito mais producente quanto a fazer girar a roda da evolução. A vida é um mar proceloso que se atravessa a bordo de uma nau sem casco e é a arte quem pincela com um pouco de beleza essa travessia. A jornada do homem sobre a Terra é plena de surpresas, eventos inesperados que o colhem, trazendo em seu bojo ora prazer, ora situações infaustas, e mesmo sabendo de tudo isso, a gente não deixa nunca de esperar pelos inesperados da vida, ansiando, por óbvio, que nos sejam doces. A sensação de, assim, por acaso, encontrar um filme no qual jamais tínhamos reparado antes, gostar do leiaute da capa, a partir dele escarafunchar a ficha técnica, saber o nome daqueles atores dos quais você não ouvira falar até então, assistir, gostar, ou mesmo, achar uma porcaria, não tem o condão de que qualquer um se sinta um pouco menos ignorante, um bocadinho menos perdido no mundo? As novas — e sempre úteis — descobertas, e o gosto por fazê-las: eis o sal da vida! A Bula separou hoje cinco filmes disponíveis no catálogo da Netflix sem os quais a gente até pode passar, mas que decerto trazem tanta beleza à nossa vida uma vez que lhes damos uma chance que é uma verdadeira barbaridade deixá-los ali, à míngua. “O Menino que Lia Cartas” (2019), escrito e dirigido pelo sul-africano Sibusiso Khuzwayo, é o típico filme para o qual você precisa reservar a meia hora que ele lhe pede. Escreva aí: a história do garoto que lê as mensagens para os vizinhos analfabetos da avó vai pegar você. No caso do trágico “A Sun” (2019), do taiwanês Chung Mong-hong, drama de uma família às voltas com a inconsequência do filho caçula, as emoções são de outra ordem, mas balançam o espectador com a mesma força. Nessa seleção, vale lembrar, os títulos vêm do mais novo para o mais antigo, mastigadinhos para você, e a cotação é toda sua. Tenha as melhores expectativas acerca deles — e elas vão ser superadas.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Solomon, o pescador do título, é, na verdade, um personagem secundário. Abandonado pela mulher, Solomon cria sozinho a filha Ekah que, aos 12 anos, é a responsável pelo serviço doméstico na casa humilde em que moram e por limpar os peixes que o pai traz do mar e vendê-los às moradoras do vilarejo. Entre suas freguesas está Bihbih, professora que faz o que pode na única escola do lugar. Mesmo sabendo dos parcos recursos do grupo, da paciência escassa de Bihbih — que também não tem lá tanta instrução formal — e do quão difícil seria convencer o pai a deixá-la frequentar as aulas, Ekah sonha com a oportunidade de uma vida melhor, como talvez esteja sendo a da mãe. E é justamente essa a razão fundamental da ojeriza que seu pai sente pela educação, pelo conhecimento: ao permitir que a mulher estudasse, Solomon acabou perdendo-na. Johnscott se vale do enredo de “O Diário do Pescador” a fim de fazer as gastas (mas inacreditavelmente sempre atuais) denúncias sobre casamento infantil, estupro de vulneráveis e trabalho análogo ao escravo, presentes ainda no século 21 em que vivemos, sobretudo nas comunidades mais remotas — e ignoradas — do mundo. A equipe de divulgação do filme usa a figura da ativista paquistanesa Malala Youfsazai, de 24 anos — vítima de um atentado que quase a matou, em 2012, motivado pela mera vontade da garota em ir à escola, o que lhe era vedado pelo Talibã só por ser mulher —, mas não precisava. As mulheres continuam a ser vilipendiadas, sob os expedientes mais abjetos, ao redor de todo o globo.
“O Menino que Lia Cartas” começa lá no alto. O espectador é capaz de observar, por meio das tomadas diretas e secas de Sibusiso Khuzwayo, a beleza de paisagem árida das savanas da África do Sul, encantamento ligeiramente empanado pela tristeza da situação que o insere. Dentro de um carro, um casal e o filho, Siyabonga, de 12 anos, se deslocam da capital Johannesburgo rumo ao vilarejo onde mora sua avó. Tudo no enredo é dito, ou melhor, sugerido por meio de tanta sutileza que as vezes até se torna difícil tirar alguma conclusão quanto ao que pode estar se passando. Mas não há lugar para mal-entendidos, tampouco aborrecimentos, aqui. Logo se sabe que os pais de Siya enfrentam uma crise conjugal, agravada por problemas de dinheiro, e que o melhor para todos é que ele e a mãe se aguentem uns tempos fora da cidade grande. O menino, por óbvio, não está nada satisfeito, mas faz o que pode a fim de se enquadrar à nova realidade, até a avó, dona de um pequeno armazém que faz as vezes de correio, o incumbe de catalogar e ler para os destinatários, todos analfabetos, as cartas que chegam. A partir de então, Bahle Mashinini brilha. É impossível não se emocionar com a performance do ator-mirim em cena e nenhuma de suas trabalhadas expressões é por acaso. Conforme toma intimidade com o ofício, Siya vai conhecendo um pouco mais a respeito dos habitantes do povoado, e se afeiçoando a eles, até demais. Resta insinuante a paixão platônica que alimenta por Nobuhle, cujo marido, Menzi, como todos os homens jovens, fora para Johannesburgo à procura de melhores condições de vida. Numa das cartas que ele lhe envia, Siya fica sabendo que Menzi se apaixonara por outra mulher, mas omite esse trecho de Nobuhle, e passa a escrever ele mesmo para ela, se passando por Menzi. Mesmo em tão pouco tempo, o único calcanhar-de-aquiles do filme, “O Menino que Lia Cartas” dá uma aula de como se conduzir uma história, apresentando um clímax bastante verossímil, ainda que num tom próximo ao de realismo fantástico. Se a ignorância é uma forma de insanidade, outrossim pode ser virtuosa, até beatífica. Uma ode à inocência, tema tão caro ao cinema e meio no ostracismo, mas que aqui se mostra com a intensidade precisa — o que não se via pelo menos desde “Cinema Paradiso” (1988), de Giuseppe Torrnatore. Sinal dos tempos. Mau sinal.
“A Sun” começa de maneira brusca e, assim, o espectador já fica esperto quanto ao que pode esperar do drama taiwanês do diretor Chung Mong-hong. Mas que ninguém se desestimule: o enredo é todo permeado por respiros cômicos — e eles são mesmo necessários. A pobreza, ainda que num país rico, é implacável, e ai daquele que pense que pode subverter o estabelecido. Contudo, seria tolo afirmar que o risco social é o responsável por fomentar a criminalidade; o fato é que a alma de todo homem tem sua face sombria — e cada um deve mantê-la sob controle. E controle — e, por extensão, autocontrole —, é uma ideia cara aos orientais. Um pai de família honrado não se prestaria a aturar os deslizes de caráter por parte de um filho, muito menos seus delitos. Ao tomar conhecimento da prisão de A-Ho, A-Wen exige que o caçula seja sentenciado com uma pena severa, o que revolta sua mulher, Qin, mãe do rapaz. A partir daí, o que se segue é a total desintegração do que até tão pouco tempo era um lar (e uma família). Ainda que haja uma ou outra tentativa pontual de contornar a questão, o casal, juntamente com o filho mais velho, pressentem que nada vai voltar ao ponto anterior à ruptura. A vergonha que todos sentem pelo destino de A-Ho, tornado ainda mais significativo numa sociedade que valoriza sobremaneira a austeridade da conduta social, o constrangimento, o remorso, tudo converge para que não consigam se encontrar outra vez. O sol pode até ser o que há de mais justo no mundo, mas só pode iluminar e emprestar seu calor a ambientes que se abram para ele. Do contrário, fica eternamente preso em meio à nuvem de ignomínia e pequenez que flutua sobre a natureza do homem desde sempre.
Filmes de mães que abandonam o lar e relegam os filhos à própria sorte nunca são levados às telas impunemente. Depois de um distanciamento de mais de 30 anos, Anabel volta a ficar de frente com Chiara, a filha que abandonou. Chiara teria todos os motivos do mundo para não querer mais encontrar a mãe; no entanto, por sentir que a relação ainda pode ser reparada, sai à sua procura. Sua ânsia por fazer o tempo voltar, como num estalar de dedos, e ter pela mãe o afeto que a própria Anabel dispensara é tanto que lhe faz uma proposta inusitada: quer que viajem juntas e passem dez dias num lugarejo perdido entre a Espanha e a França. Este é um drama sobre dores, mágoas, murmúrios, emoções. A leviandade de Anabel, sua ausência na vida de Chiara, a solidão que a filha fora obrigada a vivenciar desde tenra idade por sua culpa, todas essas parecem questões menores se tomadas à luz do sentimento que se apossa das duas. A fotografia é um achado em meio a um filme o seu tanto longo em demasia, com silêncios profundos (e imprescindíveis) que se sucedem à medida que os diálogos, estudadamente pausados, vem à tona, desferindo golpe acima de golpe sobre o espectador, mas com doçura. A Chiara de Bárbara Lennie é mais um dos bons predicados dessa história, que se não termina bem, termina boa. Às vezes, nem as mães são felizes.
Crianças são, geralmente, seres adoráveis, tanto que, levados pela ingenuidade, pela visão edulcorada do mundo, da vida, não conseguem apreender o que a sociedade espera delas e dos adultos que podem vir a se tornar num futuro que chega a galope. É muito fácil para uma criança perder-se nos castelos de fantasia que somente ela acessa, principalmente se não orientadas por pais atentos e sensíveis. O protagonista de “Como Estrelas na Terra”, Ishaan, é um menino como outro qualquer, com talentos e dificuldades de um menino como qualquer outro. Passando por um momento particularmente ruim na escola, não consegue se concentrar nas lições, a ponto de sequer memorizar as letras do alfabeto. Seus professores não o toleram mais, os demais estudantes só o veem como mote para a próxima humilhação e o pai, aturdido, só encontra uma saída: despachá-lo para outro colégio, em regime de internato. O menino logo mergulha numa letargia que vai lhe tolhendo todas as vontades — e é assombrosa a interpretação de Darsheel Safary. No estranho lar que lhe arrumaram, surge para ele Nikumbh. O professor substituto de artes percebe o que está acontecendo e toma o partido do garoto, que corresponde e, de quebra, ganha uma nova vida. “Como Estrelas na Terra” é um filme repleto de nuances, de tons, que juntos compõem a história profunda que transcende o simples — e fustigado — plot do mestre que faz do amor por seus alunos, os mais problemáticos, em especial, sua razão de viver. É muito mais: é um filme denso, sem deixar de ser comovente, sobre uma questão mais comum — e mais grave — do que se pensa; é uma história que fala do quão uma pessoa que se importa verdadeiramente com alguém tão próximo faz a diferença, na vida daquele próximo e de todo o restante da humanidade. Do mesmo modo que numa constelação, aqui embaixo todo mundo também deve brilhar.