Qual é o sentido de se ver um filme que ao fim de duas horas não terá lhe dito absolutamente nada? Muita gente vai dizer que ao menos se fez aquela espécie de higiene mental: senta-se na frente da televisão e entra-se numa espécie de transe hipnótico, de preferência com um bom balde de pipoca ao lado, para tornar a “experiência” mais eficiente. A função da arte à luz da catarse, como meio que o homem tem para se livrar de sentimentos que a vida em sociedade desencoraja e o ordenamento legal pune — às vezes, com rigor; noutras, nem tanto — nunca foi tão valorizada. Uma casa para ser habitável precisa de limpeza constante e o mesmo se dá com a alma humana: há que se botar o lixo para fora e, de preferência, queimá-lo. Contudo, a arte não se presta só a isso — ou aquilo que se pode chamar verdadeiramente de arte, pelo menos. A arte pode, também, ser uma importante ferramenta de transformação social. Nos primórdios da humanidade, nossos ancestrais descobriram o poder das mais diversas manifestações artísticas, ainda muito rudimentares, claro, por meio da pintura nas cavernas, dos cantos de guerra e de paz, da contação de histórias. Destarte, o homem foi desenvolvendo a capacidade de pensar em outras maneiras de solucionar seus problemas e, à medida que novos cenários se desenhavam e novas realidades se impunham, mais autoconfiante se sentia e mais apto se tornava quanto a enfrentar suas vicissitudes. A arte lhe serviu para ampliar seu pensamento, e isso nem é uma figura de linguagem: quanto mais o homem criava, mais pensava e maior se tornava sua caixa craniana. Hoje, a Bula tem oito filmes no catálogo da Netflix, todos de ficção científica — talvez o gênero mais cabeçudo do cinema e que, justamente por ser cinema, não prescinde da emoção — para ajudar você a sacudir a bananeira, a pasmaceira, o lero-lero, o mimimi. Em “A Chegada” (2016), do diretor franco-canadense Denis Villeneuve, uma linguista famosa é chamada a fim de desvendar mensagens de alienígenas. Numa pegada mais muito mais soft, “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (2004), do francês Michel Gondry, fala de amor, do fim do amor, e de como a ciência pode — ou não — se meter nisso. Os títulos são sugeridos do lançado há menos tempo para o mais antigo e não observamos nenhum outro critério. Pense, exista!
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Em “Durante a Tormenta”, o diretor Oriol Paulo continua firme em seu propósito de submeter a narrativa às mais impensáveis reviravoltas, distorcendo a ordem natural do tempo numa história de ficção científica que se bifurca entre 1989, no dia da derrubada do Muro de Berlim, e 2014, 25 anos depois. Os dois caminhos se cruzam quando da precipitação de uma tempestade prolongada, cuja duração deve ser de três dias. A enfermeira Vera, seu marido David e a filha do casal, Gloria, se mudam para uma nova casa. Ao fazer uma faxina, Vera encontra fitas de vídeo antigas, registros feitos por Nico, um garoto que vivia ali com a mãe há muitos anos. A enfermeira faz uma busca na internet e descobre que Nico já morreu, atropelado. Por meio de uma televisão velha, Vera e Nico conseguem ver um ao outro. A fim de evitar sua morte, ela o adverte sobre seu destino, mas, ao acordar no dia seguinte, não reconhece mais sua vida: não é mais enfermeira, mas neurocirurgiã; David está casado com outra mulher, e ela não tem filhos. A viagem no tempo é, na verdade, apenas metafórica. O que Oriol pretende é deter ao máximo a atenção do espectador e, para isso, oferece uma cornucópia de eventos inusitados ao longo do roteiro. O público é levado a acreditar que foi transportado para uma outra realidade com a protagonista. Como está completamente deslocada, exilada numa vida que não é a sua, Vera precisa retomar sua verdadeira história. Todavia, só o irá conseguir se convencer as pessoas à sua volta sobre o que aconteceu. À medida que o enredo segue, se desdobram várias subtramas, mas a um ritmo de fácil digestão para a audiência, de forma que cada personagem seja absorvido ao máximo. Oriol Paulo propõe uma espécie de jogo com o espectador, torcendo a história conforme sua vontade nessa metáfora acerca das incertezas da vida. Com “Durante a Tormenta”, o diretor confirma sua obsessão em apontar os caprichos do passar das horas, expediente também usado em “Um Contratempo” (2016), e desenvolve uma questão interessante: o homem se submete ao tempo, mas raramente ganha alguma coisa em troca. O tempo dispõe do homem, e são poucos os que ganham sua confiança.
Passadas três décadas e meia, vem à luz a continuação da história sobre um policial que caçava androides em Los Angeles. O original, lançado em 1982, passava-se em 2019. O futuro já está obsoleto, mas a saga resistiu. Dessa vez, a trama se desenrola em 2049 e a tarefa coube a K, um novo blade runner, que não caça androides, apenas os “aposenta”. Num amanhã ainda menos promissor, os replicantes se tornaram mais saidinhos e inspiram o medo na população e a fúria das autoridades. O trabalho de K fica um tanto mais difícil devido à descoberta de uma caixa na qual está o mote do novo “Blade Runner”: uma androide gera uma filha, cujo pai é um homem de carne e osso. O diretor Denis Villeneuve aceitou o desafio de dar sequência à história, que decerto não para por aí, por temer que outra pessoa não dispensasse ao filme o tratamento que ele merecia. Foi o diretor certo para o filme certo: “Blade Runner 2049” é fiel à ideia que lhe deu azo, sem, no entanto, ter ficado com cara de um simples pastiche do original. Villeneuve conseguiu, a partir de um filme-conceito amplamente conhecido e cultuado, imprimir seu estilo e sua visão de mundo. Um clássico à altura de sua genealogia.
O mundo cresce à razão geométrica, enquanto os recursos para acompanhar tanto crescimento — e tanta gente — se expandem em progressão aritmética, aos poucos. Esse parece ser o plot de “Onde Está Segunda?”, do diretor Tommy Wirkola. Os filmes de ficção científica são pródigos em se valer de expedientes os mais mirabolantes a fim de levar um enredo que anuncia futuros nada promissores. Aqui, sete irmãs gêmeas, nascidas num contexto histórico de rigoroso controle da natalidade, só conseguiram ter uma existência razoavelmente normal graças à obstinação — e à criatividade — do avô; do contrário, apenas uma seria admitida na vida em sociedade, enquanto as demais permaneceriam congeladas, até que a conjuntura estivesse menos nebulosa, a produção de alimentos fosse suficiente para todas as bocas e a economia não ameaçasse mais colapsar. As irmãs seguem com as atividades de sempre, até que, trinta anos depois, uma desaparece sem deixar rastro. O filme conduz a narrativa adequadamente, privilegiando as sequências de ação e relegando o maior detalhamento das idiossincrasias psicológicas de cada personagem a um segundo plano, embora Noomi Rapace não deixe a peteca cair por completo e forneça, por meio do bom desempenho em cena, pistas a fim de que o espectador saiba quem é quem. O argumento do mundo distópico vai, paulatinamente, tomando corpo, ao passo que a história se aprofunda nos elementos que facultam ao público vislumbrar no filme a escassez de comida, os lugares tomados de gente, o caos que se avizinha. Para tanto, Wirkola lança mão de um grande número de figurantes, de forma que a sensação de abarrotamento chega fácil até o lado de cá. Também aos poucos, vai-se tomando pé da situação das protagonistas, do quão tiveram de negligenciar a própria vida em nome de uma causa maior, qual seja, o bem coletivo. A persona do avô, de Willem Dafoe, o redentor que as faz escapar do gelo eterno, mas as destina a outra natureza de danação, igualmente apenas se delineia, quando renderia um mote à parte no roteiro — a propósito, “Onde Está Segunda?” vale pelo excelente trabalho dos atores, Rapace, Dafoe e, olho nela, Glenn Close. Para encerrar, só cabe a quem assiste inferir que o intuito do diretor Tommy Wirkola foi mesmo centrar as atenções sobre o vigor das cenas de movimento, muito boas, por sinal, e essenciais a fim de transmitir a percepção de que a vida por ali andava de fato dura. É um modo de ver as coisas.
Extraterrestres descem a diversos pontos da Terra sem dizer exatamente o que pretendem, mas com propósitos nada altruístas. É aí que entra a linguista Louise Banks (Amy Adams), desafiada a decifrar as mensagens muito sutis — e, se verá depois, ameaçadoras — dos alienígenas. Em “A Chegada”, um suspense psicológico não muito distante da ficção científica que o consagrou, o franco-canadense Denis Villeneuve imprime sua marca com uma produção muito bem cuidada, elogiada pela crítica, mas preterida pelo público por ser um belo enredo, mas cabeça demais. Se você não tiver medo de filmes que apresentam temas a princípio recorrentes, mas com uma abordagem inteiramente sofisticada e original, não deixe de assistir a essa joia rara do bom sci-fi.
Como seria um mundo em que máquinas ficassem tão perfeitas a ponto de confundir o homem? Como se daria a vida a partir do momento em que percebêssemos que organismos artificiais passaram a ser tão humanos quanto nós — no que temos de pior, inclusive? O enredo de “Ex Machina” suscita essas e tantas outras perguntas, ainda que não faça a menor questão de fornecer as respostas. Um excêntrico milionário, dono de uma empresa que se dedica ao aprimoramento de dispositivos de inteligência artificial, seleciona um funcionário talentoso a fim de realizar testes para lançar um novo equipamento: um autômato com formas de mulher, capaz de sentir como um ser humano. Numa partida de xadrez, dá-se uma disputa quanto a provar quem seria o mais intelectualmente bem-dotado, se a robô, o empregado ou o patrão, e ainda mais do que isso: eles anseiam por descobrir possíveis defeitos uns dos outros. A favorita, claro, é a máquina que, além de não se abater por nenhuma espécie de pressão, conta com a vantagem de saber os pontos fracos dos outros dois. A alegoria do jogo de xadrez não é à toa: por meio do xadrez, um jogo que exige profunda capacidade analítica, o diretor Alex Garland propõe uma reflexão sobre os enfrentamentos entre as categorias mais distintas — se concentrando no conflito de classes marxista, relido à luz do século 21 com a inclusão do componente robótico —, deixando o público livre para empenhar sua torcida a quem mais o apetecer, sabendo que ninguém ali é propriamente ingênuo. Mesmo a figura da robô, que a priori seria calculista e distante, adquire um ar sensual. Aliás, um dos grandes paradoxos do xadrez é justamente esse: para se vencer, é necessário muito sangue frio, mas igualmente uma boa dose de malícia, a fim de antever os movimentos do adversário. Trata-se de uma metáfora das relações humanas, mesmo quando não envolvem apenas seres humanos: quanto mais racional se pretenda o homem, mais emotivo ele deve se tornar. A natureza humana fagocita a máquina, ao passo que os algoritmos metabolizam o homem.
Desencantada com o fracasso de seu relacionamento, Clementine decide esquecer Joel. Para tanto, se submete a um experimento que varre de sua memória os momentos vividos com ele. Joel, ao saber da história, fica muito magoado e frustrado, afinal ainda a ama, mas decide dar o troco e também participa dos testes. Lá pelas tantas, ele se arrepende, constata que definitivamente não pretende apagar Clementine da lembrança e exige que a operação seja interrompida. Tirando da cartola alguns clichês da comédia romântica e os misturando a mancheias de ficção científica, Michel Gondry dá azo a um filme delicado, original e lúdico, que se utiliza de todos esses predicados para suscitar no público a reflexão sobre a fluidez das relações, instabilidade que se verifica em larga proporção na própria natureza humana.
Obra-prima dos animes, “Ghost in the Shell” passa longe da superficialidade com que se pode encarar um desenho animado. A abordagem de um cenário antiutópico, no qual o homem se rendeu de todo às investidas da tecnologia e tornou-se ele mesmo uma máquina, se vale do próprio avanço da computação a fim de contar uma história cujo ator principal é o gênero humano, desde sempre acossado por sua sede de conhecimento e seus delírios de poder. Em 2029, Motoko Kusanagi conta com um cibercérebro que lhe permite ter acesso a qualquer informação que desejar, cenário que se concretizou e hoje é conhecido sob a alcunha de internet. Só não contava que poderia ser invadido, como sói acontecer ainda hoje com softwares os mais distintos, e o Mestre dos Fantoches, alegoria para os mecanismos de busca e redes sociais, passa a ter livre entrada aos meandros do cérebro do protagonista, sabendo que produtos consome, que causas o movem e as ideologias nas quais acredita. Há que se louvar o caráter visionário de Mamoru Oshii ao levantar tantas questões de um mundo ainda em gestação quase trinta anos atrás. Os detalhes cuidadosamente pensados, a fotografia escolhida para cada cena, a narrativa que nunca foge ao controle e, claro, o mote grandioso fazem de “Ghost in the Shell” um clássico, sem nenhum exagero, digno que se assista uma, duas, vinte, mil vezes, a fim de que absorva toda a pletora de informações que o filme oferece e delas se tirem novas — e iluminadas — conclusões.
Em “Nausicaä do Vale do Vento”, de Hayao Miyazaki, a humanidade segue em apuros, tentando resistir num mundo destruído, abandonada à própria sorte, isolada, sem perspectivas. A fim de garantir alguma chance maior de sobrevida, quem conseguiu permanecer, mil anos depois dos 7 Dias de Fogo — que consumiu quase tudo, gente e ecossistemas —, agora tem de se contentar em ficar entre o Mar da Corrupção e uma selva cheia de plantas venenosas e insetos gigantescos. A princesa Nausicaä, soberana do Vale do Vento, um dos milhares de pequenos territórios dispostos ao redor da Terra, é a candidata à redentora do homem. A narrativa toma a forma de épico ao desenvolver a trama de Nausicaä, junção de guerreira mítica e fada capaz de se embrenhar pelas florestas e compreender seus mistérios — e sua fúria — e, assim, libertar o gênero humano da subjugação da natureza e seu reino da dominação de outros povos.