A história do homem é a história de suas guerras. A humanidade só subiu tão alto na escala evolutiva graças à capacidade de partilhar informação a respeito dos assuntos mais comezinhos, como o melhor lugar da floresta para se caçar ou que alimentos poderíamos ou não ingerir sem correr o risco de morrermos envenenados, por exemplo. E essa hegemonia cognitiva sobre os outros animais não seria nada se não viesse acompanhada do aperfeiçoamento da força física. Para tanto, o homem teve de se impor. Primeiro, subjugou os bichos que considerou mansos, e os fez trabalhar para si. Depois, a fim de ser capaz de vencer feras mais corpulentas e ferozes do que ele múltiplas vezes, desenvolveu ferramentas como tações, lanças e fundas e, assim, ampliou seus territórios. O próximo passo foi dominar o fogo, criar a pólvora e a sorte do gênero humano estava dada: a guerra. Queira-se ou não, foi por meio de conflitos armados que conseguimos tudo o que temos. Declarar-se guerra contra quem quer que seja nunca é uma decisão fácil, mas é, muitas vezes, a única decisão a se tomar, a fim de se evitar a desonra, que, conforme ensina Winston Churchill (1874-1965), primeiro-ministro do Reino Unido quando da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), se encarniça de um povo que não encampa as causas pelas quais se deve combater. Temos que admitir: a guerra fascina, e esse é o problema. Em muitas ocasiões, foi por meio da guerra que a humanidade conheceu seus grandes heróis, homens e mulheres que se tornaram personalidades graças a um desempenho de coragem memorável ao longo de uma série de enfrentamentos entre exércitos. Contudo, parece que o homem se viciou no cheiro de pólvora queimada e no ruído do aço dos canhões ainda estalando e prefere abdicar da diplomacia e resolver suas diferenças valendo-se da força quando uma boa conversa trataria de evitar um banho de sangue que, não raro, começa por causa de um prosaico mal-entendido. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), fundada na esteira do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, para mediar conflitos armados e ajudar em possíveis negociações de paz, há trinta zonas de guerra no mundo hoje, na maioria dos casos disputas de território provocadas por desavenças religiosas, tentativas de subjugação de uma etnia sobre outra ou a afirmação da soberania acerca de recursos naturais. A política também dá o tom da guerra ao fomentar diferenças quanto ao entendimento da constituição própria de um povo. Movimentos separatistas no Canadá, na Catalunha e na Irlanda do Norte se arrastam até hoje, deixando um rastro de violência, atraso e empobrecimento econômico em alguma medida. A ONU bem que tenta, mas o fardo é penoso, mesmo para ela. A guerra é, em muitas ocasiões, o último — e único — recurso, mas cobra seu preço. O cinema entendeu isso desde sempre e continua a produzir filmes que demonstram que a humanidade não escapa impune a enfrentamentos que custam tantas vidas. Em “O Fotógrafo de Mauthausen” (2018), da diretora Mar Targarona, um prisioneiro de Adolf Hitler (1889-1945) é incumbido por um oficial nazista de registrar o cotidiano do campo de concentração em que está encarcerado, tarefa que desempenha com afinco — e que vai acabar por mudar os rumos da história; no caso de “Dunkirk” (2017), verdadeiro épico de Christopher Nolan sobre o resgate de mais de 300 mil soldados das tropas aliadas, encurralados pelo facínora alemão na costa francesa, se demandou, além de um conhecimento teórico a respeito desse episódio da Segunda Guerra, a solução de questões bastante práticas, como o deslocamento, alimentação e hospedagem para uma legião de figurantes. Os títulos, todos na Netflix, estão elencados do mais recente para o mais antigo e não seguem critérios de avaliação. Descansar armas, tropa!
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

No começo de 2017, um artigo publicado na revista “The New Yorker” despertou a atenção do diretor Matthew Michael Carnahan. Poderia ser mais um relato sobre os intermináveis conflitos entre as tropas americanas e o Estado Islâmico, o Daesh, mas o texto do jornalista Luke Mogelson tinha algo de revelador. “Mosul”, o filme de Carnahan, narra as desventuras do esquadrão SWAT no Iraque — formado por soldados locais numa última empreitada contra os fanáticos do Estado Islâmico —, empenhado em aniquilar a facção. Os soldados entendem a tarefa como uma questão de honra, e fazem dela o grande propósito de suas vidas. A história começa despejando bala em cima do espectador, perdido em meio à confusão, sem captar direito quem exerce que papel ali, alheamento de que os próprios combatentes fazem parte, tamanha a complexidade do cenário para o qual tiveram de se permitir arrastar, a fim de ter alguma chance de sobrevivência. Depois da ofensiva, Kawa, policial cujo tio fora assassinado num enfrentamento contra o Estado Islâmico, é salvo pelo major Jasem, chefe da SWAT. Kawa mostra o desejo de integrar o batalhão e é admitido entre os guerreiros — Jasem tem um critério muito pessoal quanto a aceitar novos quadros: só escolhe aqueles que já foram feridos ou perderam alguém em luta contra o Daesh. A equipe tem a incumbência de matar até o último soldado do Estado Islâmico, mas não só isso — e esse é um mistério esclarecido apenas no desfecho da trama. Kawa é minuciosamente instruído acerca de como proceder, a causa pela qual vai guerrear e quem é o inimigo, explicações que servem também ao público. O roteiro de Carnahan prima por nunca assumir um caráter professoral, sendo, pelo contrário, carregado de suspense até um pouco além do que deveria em se tratando de um assunto tão nebuloso para o espectador comum. Mas tudo em “Mosul” é palpavelmente verossímil. Carnahan dá a medida exata de que ninguém se exime da obrigação de matar quem quer que considere um adversário, esteja onde estiver. Outras falanges também cruzam o caminho da SWAT; ou seja, a cidade é um verdadeiro campo minado, do qual não se sabe coisa alguma. Voltando ao tema da verossimilhança: os atores, todos locais, falam, claro, em árabe. O filme dispõe de todos os recursos de que poderia a fim de retratar de fato uma guerra civil. Os irmãos Anthony e Joe Russo — dos blockbusters sobre os heróis da Marvel – garantiram o orçamento necessário para que nenhuma picuinha técnica empanasse o brilho do que se vê na tela. “Mosul” é profundo, ainda que sintético. Em apenas hora e meia, Matthew Michael Carnahan conduz uma excelente história, se valendo de performances muito acima da média, e entregando um dos mais bem-acabados filmes de guerra lançados recentemente. Se o espectador for capaz de resistir ao caos pertinaz durante toda a narrativa, vai assistir a uma verdadeira aula de como é se viver num campo de guerra.

O enredo desse drama sobre a Segunda Guerra Mundial — com tudo o que um filme sobre a resistência frente à dominação alemã tem de mais lancinante — gira ao redor de Francesc Boix, ex-soldado que servira durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), e fora feito prisioneiro em Mauthausen, um dos campos de concentração nazistas quando do advento de mais uma série de batalhas, dessa vez em escala global. Ele é requisitado para atuar como fotógrafo do diretor do campo, o oficial Paul Ricken, registrando o desempenho das tropas germânicas. Testemunha involuntária da história, Boix fica sabendo que a Alemanha não será páreo à contraofensiva dos Aliados, o que suscita nele a obsessão em manter a salvo tudo o que pôde documentar por meio de suas fotos, a fim de não permitir que os líderes nazistas tivessem qualquer tipo de benefício num futuro julgamento.

Com “Dunkirk”, Christopher Nolan conseguiu duas verdadeiras proezas. A primeira foi entregar um filme absolutamente distinto do que vinha apresentando em trabalhos a exemplo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008) e “Interestelar” (2014). Por aí, já se vê que Nolan é um diretor plural e ambicioso, mas a cereja do bolo está mesmo aqui. Sua segunda façanha foi ter imprimido tamanho realismo e dramaticidade numa história carregada de significado. O filme conta, com o rigor intelectual necessário, como se deu o resgate de mais de 300 mil soldados britânicos na costa francesa, completamente sitiados pelas tropas de Hitler. Só o número de figurantes necessários para se emprestar credibilidade às sequências já é uma epopeia à parte, mas a força do talento de Nolan dá conta do recado direitinho. Sem nenhum exagero, “Dunkirk” comprova que Christopher Nolan se superou frente a todos os seus excelentes trabalhos anteriores e produziu a obra definitiva sobre operações militares arriscadas no decorrer de uma guerra. Os cinéfilos esperamos que ele seja vencido.

Filmes sobre a Segunda Guerra Mundial se tornaram tão frequentes com seus retratos acerca das barbáries impetradas pelos nazistas que configuram um gênero à parte. Neste, vem à luz um plot absolutamente novo: o holandês Andries Riphagen (1909-1973) faz fortuna roubando judeus escondidos dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial mediante chantagem. Muitas vezes, mesmo depois de pilhá-los, Riphagen os entrega à SS, a polícia política de Hitler. O longa, talvez o mais original na abordagem de um tema espinhoso — e batido — como o domínio nazista na Alemanha dos anos 1930 e 1940, se destaca por querer lançar luz sobre uma questão aparentemente menor. Quanto a aspectos técnicos, a fotografia é digna de nota.

Em 1961, a República do Congo enfrentava uma grave crise. Grandes corporações brigavam pelos royalties do solo de Katanga, rico em minérios e pedras preciosas, e em meio a toda essa efervescência social, Moïse Tsombe (1919-1969) toma o poder, dando início a uma das ditaduras mais fechadas e sangrentas da história. A ONU envia tropas com 150 soldados irlandeses, liderados por Patrick Quinlan, a fim de restabelecer a paz na região. A inexperiência de Quinlan, aliada aos parcos recursos destinados à missão, redundam num fracasso ultrajante: o batalhão é rendido por três mil mercenários locais, sob a chefia de comandantes franceses e belgas ligados às mineradoras. Os irlandeses são despachados de volta para casa, tidos por fracos, covardes, desertores. Smyth contextualiza o enredo de “O Cerco de Jadotville” à luz da polarização cada vez mais acirrada entre Estados Unidos e União Soviética ao longo da Guerra Fria (1947-1991), em que todo o continente africano era disputado pelas duas potências. O embate entre americanos e soviéticos pelas riquezas do Congo mergulha aquela sociedade num processo de pauperização e confrontos armados em que até crianças ainda em tenra idade se incorporavam às fileiras dos regimentos, desde que tivesse o que comer no fim do dia, enquanto o ditador Tsombe enriquecia a olhos vistos. Por mais calculadas que se apresentem num primeiro momento, guerras nunca são inócuas, e com a agravante de se dar num país alijado da democracia, última trincheira contra a barbárie, até a ocorrência mais banal adquire tons de uma carnificina. Nada pode ser divertido na guerra.