O mundo contemporâneo é uma verdadeira corrida contra o relógio. Estamos sempre atrasados, cheios de compromissos que sabemos que não seremos capazes de cumprir, atolados de dívidas, de trabalho para saldar essas dívidas. Namoros ficam em segundo plano, casamentos já não têm a mesma importância, a convivência com os filhos faz falta, mas conseguimos perfeitamente viver sem botá-los na cama. No fim de um dia exaustivo, chegamos em casa e nos perguntamos em silêncio, enquanto esquentamos a comida no microondas: vale a pena? Estamos fazendo a coisa certa? Ou seria o caso de parar as máquinas, respirar fundo e fazer algumas mudanças na programação? Num mundo tão confuso, em que é tudo tão assustadoramente efêmero, Woody Allen, mestre em retratar as neuroses nossas de cada dia, é um fenômeno. Prestes a completar 86 anos, o velho Woody continua tinindo. Um dos profissionais mais longevos do cinema, com 56 anos de profissão e 74 filmes no currículo, o judeu nova-iorquino que ama sua cidade e detesta qualquer religião está sempre à procura de alguma coisa que o desafie. Acompanhar a trajetória de Woody Allen no cinema, onde começou escrevendo pequenas gags e se cacifou como diretor em “Annie Hall” (1977), estrelado por ele e Diane Keaton, uma espécie de talismã para ele, é uma lição para qualquer um, cinéfilo ou não. Já sua vida pessoal, bem, essa deixa muito a desejar. O casamento de Woody Allen e a atriz Mia Farrow, com quem trabalhou entre os anos 1980 e 1990, foi marcado por escândalos que superam o roteiro mais cabeludo. Mia (que nunca foi santa) desconfiava da infidelidade do marido, até aí, vá lá. Só não poderia saber — nem ela nem ninguém — que Allen a traía com a filha adotiva do casal, Soon-yi Previn. Resultado? Allen e Mia protagonizaram o divórcio mais rumoroso do mundo, a esposa furiosa moveu uma cascata de ações contra o marido adúltero, Allen e Soon-yi estão casados e felizes até hoje e a baixaria perdura, rendendo, inclusive, seriado na HBO. Uma vida que até parece inventada, em se tratando de um diretor de cinema, só poderia render excelentes trabalhos. A nossa lista de hoje reuniu oito filmes desse gênio atormentado — e que atormenta muita gente – a fim de que você o conheça um pouco melhor. Certo, a gente pode até concordar que a obra supera de longe o criador. Então, fiquemos com a obra! Em “Blue Jasmine” (2013), o diretor faz justamente o retrato de uma dessas mulheres amarguradas, como ainda o é Mia Farrow, depois de um casamento fracassado que lhe parecia uma tábua de salvação no seu mar de mediocridade, enquanto no também poético “A Era do Rádio” (1987), Woody Allen mergulha em suas próprias lembranças acerca dos primórdios da radiodifusão a fim de reavivar — e compartilhar — as preciosidades de sua história pessoal. Os títulos, vocês já sabem, vêm dos mais atuais para os com mais tempo de estrada, sendo que os mais novos, caso de “Match Point” (2005), “Blue Jasmine”, “Tudo Pode Dar Certo” (2009) e “Meia-Noite em Paris” (2011) estão disponíveis no Amazon Prime Video; já a produção mais distante do diretor, compreendida por “Manhattan” (1979), “A Era do Rádio”, “Annie Hall” (1977) e “Hannah e Suas Irmãs” (1986) se encontram no MGM, acessíveis de graça por 7 dias. Todas essas oito histórias remetem a uma só conclusão: Woody Allen é muitos. E é único.
Imagens: Divulgação / Reprodução Amazon Prime Video

A crise da quebra dos bancos nos Estados Unidos, em 2008, é retratada da forma mais pungente e divertida possível, bem ao estilo Woody Allen. “Blue Jasmine” (que poderia ser traduzido como “Jasmim azul” ou “Jasmine triste”) destrincha a sina de Jasmine, uma dondoca assumida, que gozava do melhor da vida enquanto era casada com o investidor Hal: compras, badalações, viagens pelo mundo. O problema é que o castelo cor-de-rosa de Jasmine está prestes a ruir: o esquema de fraudes de Hal é descoberto e ele é preso. Jasmine era a dona legal de todo o patrimônio, vai à falência e tem de levar as mãos aos céus por não ir em cana também. Sua única alternativa para recomeçar a vida é mudar-se para San Francisco e ir morar de favor com a irmã cafona, Ginger, esperando que dias melhores cheguem logo.

Gil, roteirista de Hollywood em crise com a própria carreira, passa as férias em Paris com a noiva Inez e a família rica dela. É na Cidade Luz que esse esteta incompreendido e menosprezado se reabastece das mais refinadas iguarias da arte e esquece um pouco o trabalho frustrante de escrever as histórias tolas dos enlatados americanos, que pagam as contas, mas cobram seu preço. Ao flanar pelas ruas e esquinas parisienses, Gil se depara com estranhos personagens como que desembarcados dos anos 1920, a belle époque na França. Ele percebe que algo de muito inusitado — e formidável — está acontecendo e acaba tendo a oportunidade de também viajar rumo a uma outra quadra da história.

Em “Tudo Pode Dar Certo”, Woody Allen continua apostando alto e provando que a arte existe para superar a vida — e contar as histórias que muita gente não quer ouvir. O improvável caso de amor entre Boris Yellnikoff, ex-professor universitário, já entrado em anos, careca, coxo e ranzinza, e a bela (e burra) Melodie St. Ann Celestine, que bate à sua porta implorando por um prato de comida e um lugar onde dormir, é um dos momentos mais divertidos — e comoventes — do diretor. Constatando o caráter obstinado da moça, o velho Boris permite que ela entre, afinal, e os dois passam a ter o que se poderia chamar de vida em comum. Os dias avançam, Melodie não vai embora e Boris não se importa. Até que se dá conta de que a felicidade pode estar lhe sorrindo — um sorriso meio de canto de boca, mas, ainda assim, um sorriso.

Woody Allen parecia acomodado. Depois de passar anos gravando só em Nova York — talvez tenha sido este o motivo: o cineasta virara uma espécie de consciência crítica (e melancólica) da Big Apple —, Allen, enfim resolveu açambarcar outros domínios. “Match Point”, todo rodado em Londres, deu azo a empreitadas do diretor na Espanha, França e Itália, e sempre que o assunto vem à roda, especula-se sobre um possível trabalho dele no Brasil. Quanto a “Match Point”, o enredo é a história do ex-jogador de tênis Chris Wilton, que cansado da estressante rotina de treinos e partidas, pontuada pelas intermináveis viagens e pressão crescente por vitórias, se muda para a capital britânica, onde arruma um emprego de professor de tênis num clube de milionários da cidade. Um dos seus alunos, Tom Hewett, é filho de um magnata londrino. Chris e Tom se tornam amigos, o que dá ao ex-atleta passe livre a um mundo de luxo e excelentes oportunidades de ascender socialmente. Isso de fato acontece, mas por meios o seu tanto tortos: Chris passa a namorar a irmã de Tom e seu sogro lhe oferece um cargo de chefia numa de suas empresas. Tudo segue na mais perfeita ordem, parecia que Chris tirara a sorte grande ao poder aliar amor e fortuna, até que em sua vida surge Nola, a namorada de Tom, uma atriz malsucedida cujo único meio de subsistência é o parceiro endinheirado. Chris e Nola compõem duas figuras completamente deslocadas, que dependem de seus cônjuges para ganhar a vida e, portanto, a relação dos dois não tem nenhuma possibilidade de futuro. Woody Allen se vale da gasta imagem de que, geralmente, amor e dinheiro nunca andam de braços dados, mas aqui o tema adquire nuances filosóficos, dada a dicotomia surgida entre se deixar tudo como está ou implodir o estabelecido e permitir que floresça o amor romântico. Em “Match Point”, o diretor flerta com o novelista russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), como em “Crime e Pecados” (1989), para contar uma história de amor e degradação moral.

Woody Allen sempre tem uma boa história para contar, inclusive quando conta a própria história. Ao fazer um balanço de sua vida aos 50 anos, o diretor traz à tona as reminiscências acerca de sua infância: o fim recente da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os hábitos da família e o aparelho de rádio na sala de casa a perpassar tudo. “A Era do Rádio” talvez seja o trabalho mais nostálgico de Allen — que, aliás, não é lá muito dado a nostalgia, por incrível que pareça. O filme é um achado ao pontuar a narrativa com os velhos — e nunca datados, tampouco obsoletos — hits da famosa era de ouro do veículo, despertando no público a sua própria melancolia. Para o diretor, ouvir radio decerto se constituiu uma marca daqueles remotos anos 1940, que resta praticamente superada, pelo menos no que tinha de mais nobre: puxar o ouvinte pela mão depois do trabalho, sentá-lo em sua poltrona favorita, e fazer com que se esquecesse do mundo ao som de uma boa música ou de um programa de auditório embalado pelas reações da plateia. Com “A Era do Rádio”, Woody Allen ensina que tudo tem seu tempo, mas que o que é bom fica. Para sempre.

Hannah, filha mais velha de um casal de artistas, exerce sua função de primogênita e toma conta de toda a família, se excedendo o seu tanto ao querer sempre interferir e ter o controle sobre as irmãs Lee e Holly. Hannah as ajuda o quanto pode, mas não sabe que Lee é amante de seu marido, Elliot. Holly, por sua vez, tem uma aventura passageira com Frederic, marido de Lee, e logo engata um affair com Mickey, que já foi casado com a protagonista, por quem parece estar se apaixonando de verdade. Numa trama digna desse nome, Woody Allen tece cenários o seu um tanto improváveis, mas possíveis, para escrutinar a hipocrisia e a sordidez das relações íntimas de uma família abastada, baseando-se — como fizera em “Crimes e Pecados” (1989), inspirado em “Crime e Castigo”, romance de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), um dos alicerces da literatura universal, publicado em 1866 — na obra de outro escritor russo, “Anna Karênina” (1877), de Liev Tolstói (1828-1910).

Woody Allen é um homem passional, em tudo o que isso possa ter de bom e de ruim. Allen é um gênio ao mostrar talento incomum quando revela em seus filmes sutilezas da alma humana muito bem guardadas — e escondidas. O enredo de “Manhattan” é tão singelo quanto primoroso. Um roteirista de televisão, morador do centro de Nova York e não muito disposto a admitir que começa a envelhecer, é deixado pela mulher, que foi viver com outra. Numa ânsia por autoafirmação, começa a sair com uma garota de 17 anos, mas se descobre apaixonado pela amante do melhor amigo, cujo casamento segue sem maiores percalços. Como quase sempre protagonizando os filmes que dirige, em especial até o meio da carreira, Woody Allen lança mão de belas imagens da Grande Maçã em preto-e-branco e de uma trilha que derrete o coração mais inflexível a fim de “compensar” a simplicidade do roteiro. Com a estratégia, ganha o filme, ganha o cinema, ganha o público. “Manhattan” é o típico clássico, que vence o tempo e suas engenhocas maravilhosas, e continua a encantar só com a força da história, e de como é contada.

Alvy Singer, humorista judeu e divorciado, frequenta sessões de psicanálise há 15 anos, por meio das quais vinha conseguindo lidar com seus problemas de forma satisfatória e estabilizar suas emoções, a despeito do vigor dos golpes. Até que Annie Hall, cantora em início de carreira e cheia de conflitos, entra em sua vida, a paixão os arrebata e eles decidem ir viver sob o mesmo teto. Não tarda e os problemas em comum surgem, o que vai se constituir um novo desafio para Singer: superar as dificuldades com a nova companheira ou jogar tudo para o alto mais uma vez, a fim de tirar a prova sobre se a felicidade é mesmo perfeita, não necessita ajuste algum e está ao seu alcance? Com “Annie Hall” — cuja transcrição em português, quase sempre pródiga em erros crassos de tradução ou liberdades poéticas o seu tanto despropositadas e indesejadas, resultou num feliz “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” —, Woody Allen estabelece um paradigma na comédia romântica. Não é possível mensurar quantas histórias (no cinema e na tevê) se basearam em “Annie Hall”, seja na estrutura do roteiro, seja no plot em si, seja nos dois — caso de “O Casamento do Meu Melhor Amigo” (1997), de P.J. Hogan, e “A Gata e o Rato” (1985), dirigido por Robert Butler, para ficar em apenas um exemplo de cada —, a fim de levar um enredo complexo, que mescla comédia e drama na medida exata, não permitindo nem que a comédia resulte pesadona, nem que o drama reste aguado. É tarefa inglória apontar o filme que melhor definiria um diretor, mas pela riqueza da história e de seus recursos, “Annie Hall” seria um forte candidato a ostentar o título de obra máxima de Woody Allen.