Em 1962, Anthony Burgess (1917-1993) soube que tinha pouco tempo de vida. Estava à morte, devido a um câncer no cérebro (segundo o diagnóstico equivocado de um médico), e, como não havia feito nada que julgasse relevante, decidira se mexer. Escreveu cinco livros, dentre os quais um ainda hoje se destaca.
A história de Alex DeLarge, jovem do subúrbio de Londres integrante de uma gangue com outros amigos, que depois de preso é submetido a procedimentos científicos nada ortodoxos a fim se emendar e ser reabsorvido pela sociedade, continua, guardadas algumas proporções, na ordem do dia.
Retrato de uma juventude sem perspectivas crescendo num mundo cada vez mais fechado, “Laranja Mecânica” foi adaptado para o cinema aos nove anos de publicado. Stanley Kubrick (1928-1999), sempre visionário, vira no enredo a possibilidade de ampliar a discussão sobre distopia — conceito nunca admitido por Burgess quanto ao teor do livro —, totalitarismo, criminalidade, violência, liberdade de expressão, controle social, o poder da arte, declínio civilizatório. O filme estreou no Brasil em abril de 1972, à maneira de exercício metalinguístico com forte componente de psicodelia, graças às tarjas pretas que se moviam a fim de esconder a nudez dos personagens, censurada pelo governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).
A ditadura militar impediu que se levassem em frente as tão necessárias discussões sobre a fita que, apesar de Burgess, é, sim, uma distopia, da maior importância, aliás. Ao suscitar questões como truculência policial, incapacidade dos políticos, juventude perdida e delinquente, a obra é, ao lado de “1984”, publicado em 1949 de George Orwell (1903-1950), e “Admirável Mundo Novo”, em 1932, de Aldous Huxley (1894-1963), uma das três maiores do gênero de todos os tempos.
O dito mundo distópico se tornou uma dura realidade, ainda que regimes arbitrários não durem mais indefinidamente, ao menos não sob uma embalagem personalista, e sobretudo na porção ocidental. Contudo, tiranos dos mais distintos matizes ideológicos vêm e vão a mercê das circunstâncias, se favorecendo de momentos históricos em que o cidadão se encontra mais fragilizado, a exemplo do que aconteceu em 2016, nos Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump, e no Brasil de Jair Bolsonaro.
No Oriente Médio, a distopia toma ares de realismo fantástico, por causa do elemento religioso. Em países como Dubai, Catar, Jordânia e Irã, os mais desenvolvidos, a ideia de democracia é vendida à luz de sistemas teocráticos que se imiscuem em rigorosamente tudo; entre os mais miseráveis, caso de Iraque, Afeganistão e Líbia, nada parece dar resultado, nem a intervenção das tropas americanas. É como se fossem mesmo destinados a ser eternamente disputados ou por déspotas sanguinários e dados a demonstrações midiáticas de poder e luxúria ou por aiatolás, imãs e facções de natureza fundamentalista, conforme se verifica com a ascensão da Al Qaeda, do Talibã e, mais recentemente, do Estado Islâmico.
À vista de tudo quanto se passou no globo de 1971 até hoje, seria uma avaliação míope classificar Burgess e, em particular, “Laranja Mecânica” como pessimistas. O filme é profético — e sábio — ao entender que expedientes políticos eivados de natureza autoritária ou totalitária são cíclicos, e que, em sendo assim, nunca se pode considerar a democracia como um resultado histórico pronto e acabado. Governantes estão sempre de olho em novas formas de manter o povo sob controle, e a tecnologia em constante evolução, primeiro por meio do lançamento de satélites, logo seguido do aprimoramento da inteligência artificial, buscadores de pesquisa online e redes sociais se configura num instrumento poderoso rumo à total supressão de liberdade. O futuro como pensado por Burgess, Orwell e Huxley não se concretizou. Ainda.
Alex DeLarge, o protagonista, é, no livro, um adolescente de quinze anos — vivido no filme de Kubrick por Malcolm McDowell aos quase 28 —, branco e com nível de escolaridade satisfatório, que, mesmo assim, não encontra nada que lhe permita escapar da marginalidade. À medida que a narrativa avança, se denota seu caráter autodestrutivo — ponto alto da versão cinematográfica —, com um Alex cada mais entregue ao consumo de drogas (misturadas ao leite, uma grande sacada de Kubrick ao perceber o impacto visual da ideia) e à prática de delitos, que degringola em barbárie propriamente. Alex estupra, mata, sem nenhum drama de consciência ou remorso. Seria ingenuidade concluir que seu comportamento é mero reflexo do meio corrompido em que vive, já no texto de Burgess. Com a escolha de McDowell, aparentemente loirinho e bonitinho demais para o papel, Kubrick deixa irrefutável a mensagem que deseja transmitir, nem tão subliminar assim. Tudo na vida é uma questão de escolha, apesar de se viver sob condições as mais opressivas: Alex é uma fera indomável, seja lá em que mundo se esteja. E essa é uma das justificativas pelas quais a trama não fica datada nem restrita a determinadas conjunturas.
Em se tratando da condução narrativa em si, vale ressaltar que Kubrick usou de sua autoridade e mudou bastante o que Burgess havia escrito. Todo o último capítulo do livro, em que se parecia desenhar uma redenção para Alex, foi solenemente ignorado, o que teve volta. Burgess passou a insinuar que Kubrick seria um entusiasta da perversão sexual e de mecanismos violentos como formas de subjugo do indivíduo. Diferenças entre escritor e diretor à parte, o filme espelha o livro, ainda que não se submeta a ele.
“Laranja Mecânica” é velho ou vintage, afinal? Continua atual ou começa a demonstrar alguma senilidade fática? Ainda é notável do ponto de vista histórico ou soa algo ultrapassado? Malgrado tenha de ser apreendido à luz do contexto em que foi produzido (como toda obra de arte, diga-se), pode-se dizer que o filme permanece um épico, até no sentido literal. O enredo discorre sobre os infortúnios de um garoto num estrato social muito específico tentando sobreviver em tempos de muita incerteza; contudo, se nos valermos de uma lupa e formos capazes de transpor as questões individuais do personagem, chegamos às inegáveis conclusões de que: 1) Alex DeLarge não tem idade e habita em cada um de nós; 2) governos, de direita, de esquerda, mais inclinados ao capitalismo em sua forma mais liberal ou dando asas a uma versão mais alinhada a políticas mais assistencialistas, estão sempre em busca de manter total controle sobre seus comandados; e 3) democracia e arte são irmãs siamesas. Não há liberdade de expressão, seja a partir da política, do expediente jornalístico, da associação de pessoas em instituições religiosas ou agremiações partidárias, sem a experimentação, natureza fundamental da arte. Uma laranja nunca é encontrada longe do pé.