Parei de sentir. Quando me dei conta tinha parado de sentir e já fazia algum tempo — não sei das horas, dos dias e dos anos — que dessentia daquela forma, um desnascimento que adveio sem choro nem vela. Desconheço-me das causas. Durmo. Acordo. Como. Excreto. Pareço até um bebê, só que não. Bebês, mesmo sendo minúsculos, são diligentes, arrogantes e têm lá os seus próprios sentimentos, quase todos eles maiúsculos e urgentes sob a sua restrita ótica. O medo da água. O medo da bolsa das águas onde orbitavam presos por meses dentro do claustro uterino. O desejo insaciável e inconteste pelas tetas macias da genitora. Os porres de leite. As cólicas e demais dores pouco compreendidas, já que não costumam falar o suficiente a respeito das sensações. Apenas ressonam e choramingam. Bebês choram até secar o pranto e ponto final. Nada que raspas de funchicória, sabonetes de rosas e cantigas de ninar não resolvam. Saio de madrugada para o trabalho. E trabalho. Outro dia, o dono do negócio estapeou o meu ombro — jamais tinha percebido tamanha intimidade entre nós — e disse que eu certamente era um dos funcionários, ou melhor, que eu era um dos “colaboradores” mais produtivos e eficientes da “nossa” empresa. Até então, desconhecia que colaborasse a contento e que tivesse a minha própria fábrica de virabrequins. O sujeito gostava de falar na primeira pessoa do plural que era para se sentir menos odiado pela turma. Confesso que não gozei de especial orgulho pelo reconhecimento do chefe. Como eu já frisei, faz tempo que amorteci os sentimentos que a maioria das pessoas sente, sejam elas um funcionário padrão, um colaborador que sempre atrapalha, aposentados, desempregados e vagabundos assumidos. Não consigo precisar qual seria o marco-zero dessa curiosa destransformação psíquica, do derretimento emocional que talvez seja melhor definido pela alcunha de secura anímica. Risco de perder a vida? Não. Isso não. Nunca escapei por um triz, nem me recuperei por milagre. Pode ter sido, quem sabe, pelo trauma da morte de outrem de quem nem me lembro mais. De fato, os bons e os maus momentos estão se evaporando e se confundindo em nuvens rápidas. É apenas uma tese pálida, mas, desconfio que o processo de desfazimento interior tenha sucedido aos poucos, devagarinho, de vagar sem respostas, a conta-gotas, a contragosto de vontade própria e da minha irrequieta visão de mundo. O meu atual estilo de vida, de repente, quem sabe, é ir tocando em frente, feito uma música que ecoa do rádio, mas, ninguém presta a devida atenção. Um rádio ligado no volume máximo apenas para fazer barulho é um desperdício lastimável. Ando desprovido de pavores ou de prazeres. Sem medo da violência ou do câncer. Sem ódio nas mangas. Sem sangue nos olhos. Sem vontade de matar alguém ou de ser fuzilado pelos crimes políticos que jamais cometi, pois, eu simplesmente alimentava uma explícita obsessão pela liberdade de expressão. Sem interesse legítimo de fornicar, de procriar, de escrever livros, de tornar-me célebre, de morrer aos 27, de plantar uma árvore e de balançar nos seus galhos que bem se passariam por braços. Tenho bom porte físico. Deve ter sido este o critério que utilizaram comigo. Outro dia, durante um funeral, fui convocado para assumir uma das seis alças do esquife de um antigo colega da fábrica. Não tinha requisitado estar ali. Fui porque me levaram, pois, ainda havia uma vaga na Kombi. Foi como se carregasse uma caixa de parafusos e retentores do almoxarifado até a oficina, só que mais pesado. Pura formalidade compor aquele sexteto fúnebre. Não me ocorria nenhum sentimento condizente com o momento, a não ser o cansaço descomunal de dividir o peso morto. Nada plural, senão a constatação pragmática e óbvia de que defuntos precisam de uma mãozinha para ir para o buraco. Sarcasmo? Eu? Não foi essa a minha intenção. Como eu já disse desde o início, parei de sentir os sentimentos ordinários — e até mesmo os extraordinários, como a gratidão e a solidariedade — que a maior parte das pessoas sente ou diz que sente. Cada qual exercita o humanismo da forma que consegue. Creio que esse desfazimento interior tenha uma justificativa plausível. Assim como as palavras ríspidas ditas sem cuidado e os afagos negligenciados sem escrúpulos com o futuro. Assim como a noite de ontem, a manhã de hoje e o porvir que ninguém garante se realmente virá. Ninguém sabe de mim, do outro ou de si mesmo. Todos se acham, mas, na prática, ninguém anda se encontrando. Parei de sentir e isso é tudo. Nada que seja da sua conta, por suposto.
Uma temível frente fria avança por dentro da gente
Eberth Vêncio
É escritor e médico.