O que seria do homem, desgraçado e sozinho num mundo que se lhe apresenta cada vez mais indiferente e hostil, sem a capacidade de se emocionar, de botar para fora tudo aquilo que o envenena no mais fundo de sua alma e se abastecer de experiências que o façam adquirir novas — e melhores — percepções acerca da vida? Somos o único animal que chora, que ri, que ama conscientemente. O conhecimento sobre o que sente e a ação de se emocionar são características exclusivas do ser humano, isto é, à diferença de todas as outras criaturas sobre a face da Terra, só nós sabemos por que determinados eventos nos colhem de uma forma mais intensa que outros e, o principal, o que podemos fazer com isso e de que modo. Por mais que a vida se nos apresente frenética, há que se conseguir um tempo para processar o que acontece conosco ao longo de um dia, uma semana, um mês, um ano que seja, ver o que tem de ser mantido e o que, definitivamente, precisa mudar. Como num processo biológico qualquer, temos de digerir tudo o que passa a fazer parte de nossa natureza, aproveitar o que houver de benéfico e nos ver livres do que cedo ou tarde acabaria por nos intoxicar. Esse muitas vezes pode ser um aprendizado moroso, dolorido, mas fundamental. Cada um tem o seu jeito todo próprio de girar a chave e se lançar a novas jornadas, novos desafios, novas vidas. Decerto, o que torna a vida tão encantadora, tão maior do que qualquer problema, é que ela pode se transformar a todo instante. Só não sente quem não vive, e como aqui estamos todos vivos, quentinhos da Silva, nos emocionando sempre, a Bula preparou uma lista com cinco filmes à disposição no acervo da Netflix para deixar o seu fim de semana ainda mais emocionante. Que tal começarmos pela pancada de “Beleza Avassaladora” (2021), de Vinil Matthew? Essa história de um assassinato com uma porção de ingredientes o seu tanto confusos vai botar aquela pulga atrás da sua orelha, garanto. A despeito do avançar das horas, a gente vai mantendo a pressão. Em “Boy Erased: Uma Verdade Anulada” (2018), o diretor Joel Edgerton, que também integra o elenco, faz um alerta importante quanto a possíveis curas para doenças que não existem. Se você tem filhos, por favor, assista. Os filmes, vale lembrar, constam todos do catálogo da Netflix, e aparecem do mais recente para o mais antigo. Quantas emoções já o afetaram hoje? Vinte e sete? Quarenta e oito? Quinhentas e dez?
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Muitas vezes é uma tarefa inglória apreender a atmosfera de um filme se não estamos inseridos na conjuntura social de onde foi feito. O brasileiro e o indiano são povos com muitos pontos de contato entre si, mas na Índia, as tradições, sem sombra de dúvida, têm muito mais peso. É o que se denota em “Beleza Avassaladora”, do diretor Vinil Matthews, cujo enredo, baseado no suposto episódio de adultério de uma mulher contra seu marido, apresenta situações as mais inadmissíveis, seja qual for o pressuposto que se tome. Nunca é possível se medir com exatidão as consequências de uma conduta desatinada, e tanto pior se pautada por meras suposições. A fim de garantir que sua honra permaneça imaculada, Rishu se entrega a seus instintos mais pérfidos a fim de mostrar à mulher, Rani, a abjeção do comportamento que ele acredita que a esposa tem mantido. Aqui, trata-se da possibilidade de um caso de traição, mas o buraco é muito mais fundo. Ao se julgar no direito de submeter a cônjuge aos castigos físicos mais austeros, o personagem transmite uma mensagem: cada um tem de conhecer o seu lugar, aceitá-lo e ali permanecer, como se tudo aquilo fosse um dado da natureza, imutável, ou, argumento ainda mais desumano, a vontade divina. E ninguém com mais crédito para discorrer sobre discriminação como política de estado, como modelo de tradição a manter determinados indivíduos eternamente congelados, incapazes de dar uma guinada na própria vida, que um hindu, haja visto que o sistema de castas segue sem qualquer abalo no país desde sempre. É triste ser mulher na Índia.
Se todas as cartas de amor são ridículas — e são mesmo —, como explicar que provoquem em nós emoções capazes de nos impactar tanto? “A Última Carta de Amor”, da diretora Augustine Frizzell, baseado no best seller da escritora Jojo Moyes, faz da troca de correspondências românticas o marco para a construção de uma história que surpreende pela sofisticação dos recursos narrativos. O enredo acompanha duas protagonistas, Jennifer, socialite frívola dos anos 1960, retomando sua vida depois de sofrer um acidente que a deixou sem memória; e Ellie, uma jornalista nossa contemporânea, que descobre uma carta de amor destinada a Jennifer perdida nos arquivos do jornal onde trabalha. A repórter se interessa pelo caso e dá início a uma pesquisa a fim de saber o que houve, por que a carta não chegou à destinatária e as consequências disso na vida dela. O amor é a questão principal do filme, de onde parte e para onde retorna, transportado por meio dessa carta. Jennifer não consegue mais se ligar ao marido, Lawrence, e então lhe surge Anthony, com quem vive uma nova história de amor — ou o que passa a entender como amor. O público se flagra torcendo por esse romance, afinal Lawrence era um péssimo marido. O fulcro é que, a partir de determinada altura da relação deles, Jennifer também não fazia mais questão de permanecer casada, o que constitui o emprego do surrado clichê do casamento de fachada e por conveniência. Tudo em “A Última Carta de Amor” é sugerido, o que conta a favor da sutileza da história. Se o enredo conseguisse se locomover um pouquinho mais pelos meandros dos personagens, seria perfeito. Mas nem o amor é perfeito.
Joel Edgerton vem se saindo melhor que a encomenda como diretor. Em “O Presente” (2015) já havia surpreendido as expectativas e apresentado um trabalho coeso, exatamente do que precisava a força da narrativa. Neste seu segundo filme, em que também atua como no antecessor, Edgerton se vale de um enredo que poderia descambar para um dramalhão sem consequências para contar uma história da maior relevância de uma forma altiva. Garrard Conley é o filho único de uma típica família tradicional americana do Arkansas. Ao ingressar na universidade, tem uma experiência sexual traumática com um colega de quarto. O embate do personagem frente a seus próprios desejos quando dessa sequência é o clímax do filme e a partir dele tudo muda na vida de Garrard. O outro estudante, certamente temendo represálias, se previne e telefona para os pais do protagonista, dizendo que fora seduzido e molestado por ele. Convicto de que a vida perfeita que construíra à custa de tanto sacrifício está prestes a ruir para sempre, seu pai, Marshall, dono de uma concessionária de automóveis e pastor da Igreja Batista, inscreve o garoto num programa para reversão de condutas indesejáveis, o que inclui abuso de álcool e drogas, consumo de pornografia, prática de violência doméstica e homossexualidade. Tudo parece ir bem na medida do possível, até as coisas começam a sair do controle. Garrard identifica os expedientes de tortura psicológica empregados pelos “terapeutas” e os denuncia à mãe, Nancy, que aos poucos se convence de que a iniciativa do marido não fora uma boa ideia. Tomando por base o livro em que o protagonista relata essa sua vivência, “Boy Erased” é cirúrgico ao esmiuçar o procedimento de verdadeiras seitas fundamentalistas coalhadas de charlatães e pilantras de toda sorte que se aproveitam das fraquezas mais íntimas de alguém para ganhar dinheiro. Cada um sabe muito bem o que fazer de sua sexualidade — e é claro que se pode estar assustadoramente infeliz sendo-se o que se é. Contudo, questões complexas exigem respostas pensadas (e maduras), malgrado a opção por se iludir seja uma constante na vida do homem desde o começo dos tempos. A propósito, um dos coordenadores do projeto casou-se. Com outro homem.
Road movies têm o condão de transportar mais do que personagens e atores — levam também a história e o espectador ao longo das descobertas que um bom filme propicia. Com “The Leisure Seeker”, o diretor Paolo Virzì, do excelente “Capital Humano” (2013), apresenta uma história comovente, engraçada, analítica, e, sobretudo, bem contada, graças ao casal de protagonistas, veteranos com uma bagagem digna de registro. Ella, de Helen Mirren, é uma mulher simples, prática, sem muito requinte e com muitas dores, mas que permanece casada com John, incorporado por Donald Sutherland, um intelectual que começa a acusar o flagelo do mal de Alzheimer. Antes que seja tarde — e a morte não é uma questão aqui —, decidem partir em viagem até a Florida, no sul dos Estados Unidos, a fim de conhecer a casa onde morou o escritor Ernest Hemingway (1899-1961), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1954, o ídolo maior de John. O contraste entre os dois é o sal do filme, e por tão autêntico, por tão espontâneo, é garantia de riso frouxo para o espectador. Mirren é uma atriz formidável, conhecida do grande público graças à sua interpretação vívida (e humana) da gélida Elizabeth II em “A Rainha” (2006), mas Sutherland é quem se apossa mesmo da trama. O ator está completamente à vontade na pele de John. A sintonia que demonstra com o personagem, a quem não dá refresco e mantém em rédea curta, nunca se permitindo resvalar em caricaturas grosseiras — ainda que se exceda um pouco nas diversas gags do texto, especialmente as tratam do Alzheimer — é tocante. Virzì chega a abordar (tibiamente, até porque não era esse o seu propósito fundamental) o pouco caso do sistema público de saúde americano — famoso por sua péssima qualidade — para com os velhos. John é um simpatizante do finado Donald Trump, o que se configura um escorregão daqueles do roteiro quanto à coerência. A trilha, cuidadosamente pensada, faz menção à vida em liberdade ao recordar Janis Joplin (1943-1970) em “Me & Bobby McGee”, romântica na medida. “The Leisure Seeker” é mais uma prova — e um estímulo — de que envelhecer e encaminhar-se para o fim inescapável não precisa nenhum drama. Se a vida é uma eterna busca por prazer, o fim da história tem de manter esse tom.
A vida é muito engraçada. É muito louca. E é também imprevisível — e extraordinária. De onde se poderia tirar uma narrativa como a de “Three Identical Strangers” se não da vida?! Como reagiríamos ao nos depararmos com alguém que simplesmente se apresentasse com a mesma cara que nós? E se o inusitado da situação fosse ainda mais longe e não se tratasse de apenas dois, mas três indivíduos com essa mesma característica. É claro que um evento assim não acontece todo dia — e é claro que o cinema iria se aproveitar disso. Edward Galland, David Kellman e Robert Shafran — cujos sobrenomes diferem entre si justamente por terem sido criados em lares distintos —, trigêmeos univitelinos, se conheceram aos 19 anos, um encontro proporcionado pela vida, aquela do começo desse texto, a mesma que os separara. Bem, não fora exatamente a vida, mas determinadas pessoas, que tiveram de responder pelo que fizeram. O insólito do acontecimento despertou a atenção de todo o mundo, que passou a acompanhar cada desdobramento da história. Os irmãos adquiriram fama de astros do rock da noite para o dia, talvez uma transformação radical demais, tanto pior para quem não esperava. O filme retrata à perfeição o misto de incredulidade, êxtase, felicidade de Edward, David e Robert, e ganha ao exibir depoimentos e imagens reais das inúmeras entrevistas que eles concederam ao longo de 1981, quando o caso veio à tona. A tensão vai num crescendo à medida que a narrativa avança quanto à possível junção das últimas pontas do episódio, com o público cada vez mais interessado nesse particular. As muitas reviravoltas da trama chegam a roubar o destaque da história em si, bem como teorizações sobre a forma que tomara a vida dos protagonistas a partir da grande descoberta, fonte de tantos ressignificados, para eles e para os que os cercavam. Não é necessário conhecer a aura de mistério do evento — aliás é melhor saber o mínimo possível acerca de mais essa passagem única na jornada da humanidade, capaz de encantar qualquer um. A vida é estranha. E, também por isso, é bela.