Velhinhos aficionados por cinema, o seu tanto rabugentos e completamente avessos a qualquer aproximação, reunidos para avaliar os filmes lançados durante os últimos doze meses. Quem poderia afirmar que isso daria em alguma coisa? Pois deu — e como deu! Passado quase um século, o Oscar reina absoluto quando o assunto são cerimônias de entrega de prêmios, monopolizando as atenções da imprensa e do público desde muito antes de sua exibição e repercutindo bastante mesmo depois da poeira assentada. Os tais velhinhos da Academia nunca foram unanimidade quanto à escolha dos títulos indicados e quando aquele ator (ou aquele filme) que todo mundo esperava levar a estatueta dourada fica chupando dedo, a grita é geral. O Oscar vive desse bafafá também, claro, e a indústria cinematográfica agradece não permitindo que a roda pare de girar. Todos os anos, são produzidas centenas de filmes, de quase todas as nacionalidades. Ou seja, são centenas de diretores, de atores, produtores, montadores, técnicos de som, maquiadores, cabeleireiros… Haja Oscar para todo mundo! A Bula escolheu doze filmes que levaram o caneco mais cobiçado do cinema em alguma categoria ao longo dos últimos 22 anos, enredos os mais diversos, os mais impensados, que só mesmo o cinema poderia resgatar de um livro velho e esquecido qualquer ou da própria vida. É o caso de “O Quarto de Jack” (2015), de Lenny Abrahamson, baseado na história real de uma garota raptada aos dezessete anos e mantida em cativeiro pelo lunático que a estuprou. Ela permaneceu sob a custódia forçada de seu algoz, de quem engravidou depois de ser violentada e deu à luz um filho, o personagem Jack do título. Também está na lista “Roma” (2018), dirigido pelo mexicano Alfonso Cuarón, que narra o cotidiano de uma família em Roma, bairro de classe média alta da Cidade do México em 1970, sob a perspectiva de Cleo, a empregada da casa. Os títulos, todos disponíveis na Netflix, respeitam apenas o critério da ordem contracronológica e vêm do lançado há menos tempo para o mais antigo. Para quem vai o seu Oscar nessa lista?
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Não adianta: por mais poderosa que seja a história, em “A Voz Suprema do Blues” o que dá o tom mesmo são as atuações. Marcado pelo infortúnio da morte precoce de Chadwick Boseman (1976-2020), aos 43 anos, vitimado por um câncer colorretal, o filme cresce justamente se analisado à luz do núcleo liderado pelo intérprete de Levee Green, trompetista do conjunto de Gertrude “Ma” Rainey (1886-1939), interpretada por Viola Davis, que grava um disco com a Mãe do Blues num estúdio abafadiço em Chicago. O diretor George C. Wolfe, ganhador de um Tony — o Oscar do teatro americano —, talvez já prevendo o que aconteceria com um de seus protagonistas — ou tendo sido alertado sobre uma possível baixa inesperada e trágica —, resolvera dar a Boseman a chance de sua vida. E o ex-Pantera Negra brilhou. É ele quem conduz as grandes questões discutidas ao longo da pouco mais de hora e meia da trama. Muito pouco tempo para que se tratasse de racismo, machismo, relações pouco éticas no showbizz, política e homofobia, nessa ordem, num enredo que, tomando-se por base o título pomposo, passaria como a cinebiografia definitiva de uma estrela da música americana dos anos 1920. Felizmente, ninguém, nem diretor nem atores foram levados a encará-lo com esse artificialismo, e, assim, a produção, adaptação do texto de August Wilson para a peça de mesmo nome, em menos de seis meses de lançada, já se tornou um cult, em especial entre melômanos e artistas de toda sorte, negros sobretudo. O desempenho soberbo do protagonista na pele do músico obcecado com a carreira garantiu a Boseman um Globo de Ouro (póstumo, é verdade, mas à altura de seu talento, cuja lembrança há de ficar). Mesmo com um desfecho infausto — para ator e seu personagem —, Chadwick Boseman cerrou sua última cortina com toda a classe que a figura aristocrática de Levee Green lhe inspirava.

A história de um policial negro que se passa por um homem branco a fim de investigar como funciona a Klu Klux Klan, um grupo que se notabilizou por difundir ódio racial, é tão absurda que só poderia mesmo ter acontecido de verdade. “Infiltrado na Klan”, filme com o qual Spike Lee ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, conta a história de Ron Stallworth, até então o único policial negro de sua cidade, Colorado Springs. Ao se deparar com um anúncio da KKK publicado sem nenhuma cerimônia num jornal, ele liga para o número informado ali. O primeiro contato é proveitoso e Stallworth estabelece um vínculo com um dos chefes locais da agremiação segregacionista. Por mais destemido que seja, ele não vai poder levar sua missão a cabo sozinho, por razões óbvias. E é aí que entra Flip Zimmerman, branco e judeu, seu parceiro na polícia. Zimmerman assume a identidade de Stallworth e se mistura ao bando, ainda que provoque a desconfiança de um dos fanáticos, que não lhe dá descanso.

Poucos filmes conseguem o feito de, ao condensar diversos tipos de linguagem e de manifestações artísticas, criar uma obra absolutamente original — e bela, muito bela. Com “Roma”, Alfonso Cuarón não só chegou lá como tornou-se um dos paradigmas do que se pode chamar de novíssimo cinema. O enredo talvez não tivesse nada de excepcional, mas a forma como Cuarón leva as passagens sobre o dia a dia de uma família abastada num bairro nobre da Cidade do México — a Roma do título — no começo dos anos 1970, tendo sempre por alvo a empregada doméstica da família, é impecável. A história de Cleodegarda, a Cleo, é pungente de tão comum. Conhecemos dezenas de Cleos, sobretudo no Brasil, remanescente de um regime escravocrata abolido nem faz tanto tempo, e paternalista até o fim do mundo. É angustiante a forma como sua vida se esvai. A protagonista não vê nada em seu curto horizonte que não seja se empenhar no serviço doméstico: recolher as fezes de Borras, o vira-lata da casa, lavar o quintal, arrumar uma casa enorme, cozinhar para seis pessoas, fora os empregados… Aos domingos, arruma tempo para ir ao cinema com um rapaz que conhece por intermédio da colega de ofício que divide as tarefas com ela. Mas nem nisso a vida lhe sorri: ao se descobrir grávida, conta a novidade (que não lhe parece nada boa) ao namorado durante a sessão e é abandonada ali mesmo. A narrativa tem uma ligeira virada nesse ponto, susceptibilidades de Cleo são exploradas mais a fundo e a sensação de incômodo do espectador ao se colocar na pele da criada é insuportável. Não se nota se Cleo gosta da vidinha que leva, se apenas a tolera, se a odeia. A única certeza que se pode ter é que ela é simplesmente empurrada pelo destino. A cena na praia, quando o filme já se encaminha para o desfecho, é de deixar o peito apertado. Impossível não se emocionar — e, igualmente, não se enfurecer — com a ingenuidade de Cleo. Superado o episódio, a vida torna ao leito, o que não é exatamente bom. Preterido no Festival de Cannes 2018 por pinimbas entre os organizadores da premiação e a Netflix, “Roma” teve uma recompensa justa e levou o Oscar de Melhor Fotografia daquele ano. Fellini puro, poesia pura, cuja dramaticidade a linda fotografia em preto-e-branco realça, a grandeza de “Roma” merecia muito mais.

Passadas três décadas e meia, vem à luz a continuação da história sobre um policial que caçava androides em Los Angeles. O original, lançado em 1982, passava-se em 2019. O futuro já é passado, mas a saga resistiu. Dessa vez, a trama se desenrola em 2049 e a tarefa coube a K, um novo blade runner, que não caça androides, apenas os “aposenta”. Num amanhã ainda menos promissor, os replicantes se tornaram mais saidinhos e inspiram o medo na população e a fúria das autoridades. O trabalho de K fica um tanto mais difícil devido à descoberta de uma caixa na qual está o mote do novo “Blade Runner”. Uma androide gera uma filha, cujo pai é um homem de carne e osso. Um milagre, portanto. O diretor Denis Villeneuve aceitou o desafio de dar sequência à história, que decerto não para por aí, por temer que outra pessoa não desse ao filme o tratamento que ele merecia. Foi o diretor certo para o filme certo: “Blade Runner 2049” é fiel à ideia que lhe deu azo, sem, no entanto, ter ficado com cara de um simples pastiche do primeiro. Villeneuve conseguiu, a partir de um filme-conceito amplamente conhecido e cultuado, imprimir sua assinatura e sua visão de mundo. Clássico com uma genealogia à sua altura.

Com “Dunkirk”, Christopher Nolan conseguiu duas verdadeiras proezas. A primeira foi entregar um filme absolutamente distinto do que vinha apresentando em trabalhos a exemplo de “Batman: O Cavaleiro das Trevas” e “Interestelar”. Por aí, já se vê que Nolan é um diretor plural e ambicioso, mas o que importa mesmo está aqui. Sua segunda façanha foi ter imprimido tamanho realismo e dramaticidade numa história carregada de significado. O filme conta, com o rigor intelectual necessário, como se deu o resgate de mais de 300 mil soldados britânicos na costa francesa, completamente sitiados pelas tropas de Hitler. Só o número de figurantes necessários para se emprestar credibilidade às sequências já é uma epopeia à parte, mas a força do talento de Nolan dá conta do recado muito bem. Sem nenhum exagero, “Dunkirk” comprova que Christopher Nolan se superou frente a todos os seus excelentes trabalhos anteriores e produziu a obra definitiva sobre operações militares arriscadas no decorrer de uma guerra. Os cinéfilos esperamos que ele seja vencido.

A Itália no verão se traduziria no cenário perfeito para as descobertas de um garoto rico em férias, certo? Bem, certo, descobertas, sim, mas não sem algum conflito. O professor universitário Perlman, especialista em cultura greco-romana, recebe a visita de Oliver, estudante que se dispõe a ajudá-lo numa pesquisa. Oliver, bonito, sensível e noivo de uma moça, logo desperta o interesse de Elio, e à medida que se aproximam, mais o filho do professor Perlman fica atraído pelo discípulo do pai. O romance homônimo do autor egípcio André Aciman que deu origem ao longa, Oscar de Melhor Roteiro Adaptado para James Ivory, narra essa história o seu tanto truncada, mas leve. Perlman é um homem sensível, culto e, sobretudo, perspicaz, que nota assim que Oliver chega que o filho muda a olhos vistos. O fato da trama se desenrolar no já distante 1983 não diz muito sobre a possível rejeição da família de Elio a Oliver, dada a aura de liberdade em seu estado mais sofisticado que paira ali. Esse coming of age, esse registro do amadurecimento de Elio, é o que predomina em “Me Chame Pelo Seu Nome”. De forma alguma se pode atribuir à produção o rótulo de filme gay, queer drama, ou alguma nomenclatura que se lhe assemelhe. Aqui, é mesmo a suavidade o que prevalece. Sem julgamentos, sem neuroses, para variar. Ninguém se atribui o direito de reprimir quem quer seja nessa espécie de paraíso pagão em que beleza estética e autoconsciência vão para a cama sem nenhum pudor. A narrativa pode até parecer meio arrastada em certos momentos, mas a beleza do enredo — e das paisagens — sufocam o bocejo do espectador, cujo queixo pode até cair sem prévio aviso. Um belo filme, em todos os sentidos.

“Um Amor Verdadeiro.” Este também poderia ser o nome do filme de Tom Hooper que conta a peculiar história do casal de pintores dinamarqueses Einar e Gerda Wegener. Ele, um artista cujo talento já era ampla e merecidamente reconhecido, faz de tudo para incentivar Gerda, que ainda tropeça na carreira. A fim de ganhar tempo e economizar uma ninharia qualquer que pode fazer falta, Gerda sugere a Einar que pose para ela, o que não constituiria problema algum, excetuando-se o fato de que a pintora retrata um tipo feminino. Ele, a princípio constrangido, acata a ideia, e logo começa a questionar sua vida até ali. A experiência se repete e Einar chega à conclusão de que estaria sendo impiedosamente perverso consigo mesmo se não encarasse a realidade que sua própria alma lhe revelava: ele é na verdade o que a ciência hoje denomina como uma mulher transexual, um homem que não se adequa à sua condição biológica, trocando em miúdos. Apesar de devastada por saber que, cedo ou tarde, vai perder o grande amor de sua vida, Gerda retribui todo o apoio que Einar sempre lhe devotara e aceita que o marido assuma publicamente a nova identidade. Quando ele, enfim, decide se submeter a uma polêmica — e arriscada — cirurgia de redesignação de gênero no hospital em que clinica o doutor Warnekros, na Alemanha, Gerda o acompanha. Na primeira etapa da intervenção tudo corre bem, mas o fim de Lili — o nome que Einar adota na vida que passa a ter —, é infausto. “A Garota Dinamarquesa” é o típico caso de filme de ator, em contraposição à pletora de filmes de autor que o cinema produz ano após ano. Eddie Redmayne talvez seja o maior representante da arte dramática de sua geração. Em todos os trabalhos a que se dedica, Redmayne deixa a marca de um artista que leva o personagem para a cama sem qualquer prurido de melindrar os brechtianos de plantão (profissional até o osso, como não mencionar a sua interpretação mediúnica do físico britânico Stephen Hawking em “A Teoria de Tudo”?). “A Garota Dinamarquesa” é lindo, emocionante, alentador, vibrante. Mérito quase integral de Eddie Redmayne.

Existem histórias tão inverossímeis que só poderiam mesmo ter saído da pena da própria vida. Dada a precisão do roteiro, o diretor Lenny Abrahamson parece ter pegado um filme prontinho, mas era justamente aí que residia o problema. Baseado no romance homônimo de Emma Donoghue, publicado em 2010, “O Quarto de Jack”, a força do enredo está na palavra. Cinema é palavra também, claro, mas é muito mais imagem, por óbvio. Abrahamson venceu o desafio ao optar pelo minimalismo da cena e voltar as baterias ao desempenho da excelente Brie Larson e do formidável Jacob Tremblay, mãe e filho enclausurados depois que Joy, a personagem de Larson, é sequestrada aos 17 anos por um maníaco que se aproxima dela pedindo-lhe que socorresse o seu cachorro. Dois anos e muitos abusos depois, Joy engravida e dá à luz o Jack do título, nascido no quarto em que são mantidos em cativeiro pelo criminoso, que se faz conhecer apenas pelo apelido, Velho Nick. Tudo o que têm são um ao outro e é cortante observar a estreiteza dos laços que os unem. A única ideia que Jack tem acerca do mundo se forma a partir das imagens de uma televisão velha. Nada para ele é real, apenas a mãe, já que nem a si mesmo consegue ver, por não existir sequer um espelho no cubículo. Imaginar que tudo aquilo possa ter acontecido de fato é asqueroso; tanto pior se sabemos que o livro de Donoghue se fundou no caso de repercussão internacional de uma adolescente que enfrentara o mesmo calvário que a personagem de Larson, com a agravante do Velho Nick da vida real ser Josef Fritzl, responsável por aprisionar a filha durante 24 anos. Quando resgatada, a garota era mulher feita e havia engravidado do pai reiteradas vezes. Fritzl se matou na prisão. Joy também consegue se ver livre de seu inferno particular, graças a um plano cuja participação de Jack é vital. Crianças têm o condão de ser (quase) sempre adoráveis e é o que também se observa com Tremblay, que conquista o público sem o menor esforço. A partir do segundo ato, quem reluz mesmo é a intérprete de Joy. É impressionante a compreensão que Larson tem do papel, dando-lhe a profundidade necessária. A readaptação à antiga vida se revela muito mais difícil do que ela pensava e lhe demanda uma boa dose de esforço quanto a exorcizar alguns fantasmas mais obstinados. A entrevista que Joy concede a um programa de grande audiência, sugestão do advogado da família — à custa de um gordo cachê —sai pela culatra. A âncora pesa a mão nas perguntas, Joy não digere bem o episódio e tenta o suicídio. Aos poucos e podendo contar com o carinho de Jack, da mãe e do marido dela, a protagonista vai dando a volta por cima, até que a sequência final dá a entender de que Joy e Jack, aos trancos e barrancos, foram felizes para sempre.

“Django Livre” é mais uma das provas da megalomania crescente de Quentin Tarantino. Desde “Cães de Aluguel” (1992), o diretor se testa e se supera, inventando alguma coisa a mais a fim de mostrar que é capaz de surpreender o público. Aqui, o plot se assemelha muito ao de “Os Oito Odiados” (2015): pessoas sem nada em comum têm de se suportar. A história do escravo amargurado, que junta o remorso de toda uma vida no intuito de alcançar a nova história com que sempre sonhou, toma a narrativa a partir da segunda metade do filme. Jamie Foxx mergulha na alma de seu personagem, tornando não só crível como desejável o twist de Django. O escravo provoca na audiência uma espécie de revelação, aplicando sal às chagas da sociedade americana. O racismo, sobretudo, mas também a obsolescência da economia dos Estados Unidos quando da Guerra Civil (1861-1865), são abordados de forma a estabelecer um vínculo indelével entre um e a outra. Negros cativos são primordiais quanto a manter a roda da economia pulsando; por outro lado, Tarantino atenta para a mediocridade do homem médio americano, incapaz de enxergar que trabalhadores libertos ser-lhe-iam fonte de muito mais lucro. Tudo na base da fantasia. O dom de subverter o clichê politicamente correto mais pedestre, uma marca de Quentin Tarantino, se atesta também em “Django Livre”. Como no Brasil de Chica da Silva (1732-1796), houve negros que ou se serviram de outros negros escravizados ou fizeram um bom dinheiro à custa do subjugo desses indivíduos. Ao fim de mais uma aula — de cinema e de história —, só o que o espectador aspira a saber é: quando sai o próximo?

Ao longo da prolífica carreira, Quentin Tarantino foi se relevando um sujeito obsessivo. Primeiro, começou tratando de temas afins a ressentimento, honra, vingança… À medida que amadurecia como artista, adicionou elementos da História com “H” maiúsculo, e surgiram preciosidades a exemplo de “Django Livre” (2012) e “Os Oito Odiados” (2015), com a Guerra Civil Americana (1861-1865), decerto uma das muitas fixações do diretor, como pano de fundo. E já que se falou de vingança, sangue, História, Tarantino, há que se falar de “Bastardos Inglórios”. Era uma questão de honra para Tarantino dirigir um filme acerca da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Em 2009, o que era mero fetiche tomou corpo, e o diretor mostrou a sua versão sobre o conflito, sem muito compromisso com a fidedignidade histórica, frise-se. Qualquer um com o mínimo de vivência cinematográfica identifica uma produção tarantinesca de longe. Além dos aspectos já mencionados, somam-se ao banquete do diretor a monomania quanto a escrutinar (e fiscalizar) o trabalho dos atores de perto. E em “Bastardos Inglórios” estão todos excelentes: Brad Pitt, irreprochável como o comandante dos bastardos, Diane Kruger, em sua melhor forma; Mélanie Laurent, desabrochando para o grande público; e Christopher Waltz, a cereja desse bolo, impagável na pele de Hans Landa, o oficial nazista humilhado pela falange de mercenários americanos que lhe valeu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. O preciosismo de Tarantino toca as raias da insanidade ao adotar para cada personagem o idioma correspondente à sua nação de origem. Em se tratando de Quentin Tarantino, aliás, o bolo pode ter todas as cerejas que quiser e, como voltaria a fazer em “Os Oito Odiados”, conta com a assinatura de ninguém menos que Ennio Morricone (1928-2020) na trilha sonora, assessorado pelo gênio de David Bowie (1947-2016). Clássico e moderno, sério e divertido, “Bastardos Inglórios” é Cinema, com “C” maiúsculo.

“Olá, damas e cavalheiros! Eu sou o entertainer desta noite!” A despeito do começo eletrizante, com as precisas cenas de tensão durante um assalto a banco, parece que só depois que essa frase é dita pelo personagem principal é que começa “Batman: O Cavaleiro das Trevas”. É claro que não estamos falando do Homem-Morcego, muito menos de Bruce Wayne, sua porção à paisana. No roubo ao banco, o Coringa já havia roubado também a cena, mas é na sequência da festa na casa do multimilionário que tudo começa a fazer sentido, inclusive termos incluído o filme nessa lista. O protagonista-antagonista, levado com uma performance mediúnica por Heath Ledger num de seus últimos trabalhos, é a completa tradução da visão de mundo mais diabolicamente anárquica que alguém pode ter. O vilão deixa uma marca de ódio e perversidade por onde passa, nada preocupado em sofrer alguma retaliação. Batman passa a trama inteira ansiando por botar as mãos no homenzinho do terno roxo, façanha que só consegue no final — e mesmo assim a gente lamenta. Na versão da franquia que coube ao diretor Christopher Nolan, um dos mais talentosos e devotados de Hollywood, de fato são as figuras noir as que ganham — e merecem — o centro das atenções. Outro ponto alto da fita é o destaque dado à subtrama de Harvey Dent, o herói decaído que literalmente se transfigura no bandidão Duas Caras. Aqui, é possível entender direitinho como se deu essa mutação. Como sói acontecer, Nolan se arriscou, apostou alto e quebrou a banca, inclusive na arrecadação bilionária do filme, um dos recordistas no quesito.

Responda rápido: 1) qual país se tornou célebre por reunir o maior número de críticos que ganham a vida nesse mesmo país à sua história? 2) qual o país cuja democracia se tornou a menos sensível a ameaças de golpes de presidentes demagógicos e hipócritas — ainda que eleja um ou outro lunático de vez em quando? A resposta para ambas as perguntas é a mesma. Dirigido por um britânico radicado nos Estados Unidos, “Beleza Americana” é o enésimo filme a espinafrar o american way of life, o jeito americano de se viver; entretanto o faz com um toque bem pessoal ao misturar no bolo a crise de meia-idade de um americano comum. Lester Burnham não aguenta mais o esplim, o tédio de tudo em que sua vida se transformou. O emprego só lhe serve como meio para quitar dívidas, o casamento é uma farsa, Jane, a filha o detesta. Ou seja, chegou aos quarenta sem nenhum legado a deixar, sequer alguma boa história para contar aos amigos, se os tivesse. Resolvido a virar a mesa enquanto é tempo, Lester pede demissão, passa a se exercitar, e, claro, se desobriga de manter as aparências com a mulher, Carolyn. Justamente nesse ponto sua mudança parece começar mesmo a fazer sentido: descobre que está apaixonado pela melhor amiga da filha, Angela — e não vê mal algum nisso. A amizade com o vizinho, Ricky Fitts, que passa a namorar Jane e por quem até nutre umas fantasias, rompe o último grilhão que faltava e o liberta para a vida que julga merecer. Com “Beleza Americana”, Sam Mendes traça um paralelo entre um país desde sempre cercado por questões socioculturais as mais gritantes e o americano tranquilo, consciente de que sua vida íntima está de ponta-cabeça, mas completamente perdido, por maior que seja sua vontade de que tudo fosse diferente. Sociólogos do calcanhar sujo diriam que a gênese de todo o fracasso de uma nação remonta à mediocridade da classe média, ávida por demonstrar seus podres poderes por meio do consumo. Redondo engano. Um país — e a civilização como um todo — malogram é por causa do ressentimento.