O romance de Itamar Vieira Junior é um acontecimento que, de tempos em tempos, varre o mundo dos livros. É obra escrita com engenho e mão precisa. Surpreendeu o público a narrativa positiva, que aponta horizontes, em tempos negativos. A repercussão do público o transformou em fenômeno editorial, desde o lançamento em agosto de 2019. Likes e compartilhamentos nas redes sociais resultaram na venda de 45 mil exemplares no período de novembro de 2020 a janeiro deste ano, bem acima das tiragens básicas de 5 mil volumes. Algo de novo estava definitivamente no ar, e o público leitor brasileiro havia descoberto a literatura contemporânea feita no país.
Até chegar ao público em geral, a trajetória do livro carrega uma história reveladora. Quem primeiro se atentou para a qualidade de “Torto Arado”, foram os jurados do Prêmio Leya de 2018, promovido pela editora portuguesa. O fato diz muito da lógica corrente no mercado de livros: ele é aberto, mas nem tanto para os iniciantes. Faz pensar também que os portugueses detectaram a conexão africana da obra, sintonizada às narrativas da diáspora negra e pós-colonial que chamam muito a atenção dos leitores globais de ficção, nos moldes da “world literature”. Em língua portuguesa, existe uma conexão triangular de Portugal, Brasil e as ex-colônias lusófonas na África.
A novidade do livro está, em grande parte, no ponto de vista das protagonistas que narram uma história do meio rural, aparentemente já contada outras vezes. São mulheres negras de uma região pouca conhecida e que expõe a “matéria brasileira” da servidão — algo nunca mostrado antes. O cenário é uma fazenda na Chapada Diamantina, no estado da Bahia. O tempo narrativo vai da pós-abolição da escravatura no país aos dias atuais. Para falar a língua de certa tradição crítica, Itamar Vieira estilizou a realidade histórica por meio de personagens que jamais têm voz. E o enredo de exploração humana ganha interesse novo com a inserção dos imaginários africano e feminino.
Alfredo Bosi notou, anos atrás, a persistência do regionalismo no campo literário ao longo do século 20. É quase um subgênero popular que influenciou até o Cinema Novo nos anos 1960. Indo mais a fundo, como fez Antonio Candido, as narrativas ambientadas no sertão e na zona rural foram essenciais para a percepção da “consciência do atraso” e trouxeram a visão pessimista de uma realidade a ser superada. Foi o romance de 30 (José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz) que retratou melhor o subdesenvolvimento do país. Um pensamento crítico que estimulou intelectuais e políticos brasileiros de várias gerações, estando hoje um pouco fora de moda.
Numa visada panorâmica, podemos identificar romances contemporâneos de altíssima qualidade que beberam na fonte regionalista para expandir o imaginário da cultura: “As Mulheres de Tijucopapo” (1980), de Marilene Felinto; “Os Desvalidos” (1990), de Francisco J. C. Dantas; e “Galileia” (2008), de Ronaldo Correia de Brito. Essas obras fazem um contraponto às narrativas brasileiras atuais, a maioria delas ambientadas nas metrópoles, com protagonistas masculinos e de classe média. Aos pobres e negros, estão reservados os papeis de subalternos sem voz, bandidos e empregadas domésticas, conforme mostram os estudos pioneiros de Regina Dalcastagnè.
Em seu romance, Itamar Vieira criou vozes femininas negras em três capítulos narrados na primeira pessoa. Elas jamais protagonizam romances e contos na produção literária do Brasil. A escrita carrega um tom médio nas frases, sempre bem moduladas, e busca a precisão da palavra. O verbo ganha dos adjetivos e das metáforas. Não há a rispidez para mimetizar a secura do ambiente, nem a exuberância para estilizar a natureza. O autor também não caiu na tentação de inventar palavras, os neologismos — uma praga entre escritores e escritoras brasileiros que tentam há décadas, sem êxito, imitar a poética do romance “Grande Sertão: Veredas” (1956), de Guimarães Rosa.
Espectro da servidão
“Torto Arado” se estrutura como um tríptico, como fizeram José Lins do Rego em “Fogo Morto” (1943) e Paulo Lins em “Cidade de Deus” (1998). Cada um dos três capítulos tem um personagem diferente para expor pontos de vista singulares, gerando complementos e contradições no que é contado ao leitor. São testemunhos e memórias que entram em movimento de alta rotação. As irmãs Bibiana e Belonísia narram, respectivamente, as duas primeiras partes: “Fio de corte” e “Torto arado”. Já o último capítulo (“Rio de sangue”) é contado por um espírito de origem africana que encarna em pessoas da comunidade da Fazenda Água Negra, na Chapada Diamantina.
A escrita do romance é um grande bordado, como aqueles ensinados em família e que seguem a tradição das narrativas orais. Tem o refinamento das melhores tapeçarias, feitas no tempo certo. Por meio de uma fala de Belonísia, Itamar usa a imagem do tecer para sintetizar a forma dessa escrita: “[As] histórias que encontrava nos livros e ouvia da boca do povo vão se desenrolando em minha cabeça como um novelo de malha de apanhar peixe. Quando sento quieta para costurar uma roupa velha ou levanto a enxada para devolvê-la de novo ao chão, abrindo covas, arrancando as raízes das plantas, é que esse fio, que tem sido meu pensamento, vai se fazendo trama”.
O fio da meada narrativo aparece no episódio inicial das irmãs, ainda na infância — etimologicamente o “infans” se refere àqueles que não falam. Elas abrem uma mala da avó para observar uma faca misteriosa com um belo cabo de marfim. O brilho do metal, as formas do objeto, encantam as meninas que o colocam na boca. Ocorre, então, o acidente que dará sentido ao romance. O mistério para a existência daquela faca será esclarecido mais no final do livro. Bibiana corta a boca seriamente, e Belonísia decepa a língua, o que a impede de falar (a legítima “infans”) e tem amplos significados para a trama. No entanto, se não existe fala, existe a escrita caudalosa.
Bibiana assume a figura da razão e da busca de horizontes para sair daquela comunidade. Como se disse antes, o livro tem um sentido positivo, apontando caminhos. O destino da personagem é se tornar professora, a representação clássica do esclarecimento. No final do livro, ela vai juntar esse polo racional ao encantamento dos espíritos ancestrais de origem africana. Por sua vez, Belonísia carrega o sonho e o desejo, porém está presa ao mundo da fazenda. Um dos trechos mais belos e centrais da obra mostra a menina já sem fala e o primo Severo (que vai se casar com Bibiana) observando estrelas, ou seja, eles também estão à procura de horizontes mais amplos.
O pai delas, Zeca Chapéu Grande, é o curandeiro das doenças do corpo e da alma na fazenda. Sob seu comando, estão os rituais de “jarê”, uma prática religiosa que existe na Chapada Diamantina. A origem está na cultura iorubá que veio da África com os escravos da costa da Nigéria. Trata-se de uma forma de enxergar o mundo, as coisas e as pessoas que vai permear “Torto Arado” por inteiro. Novamente, vê-se um horizonte se abrindo por meio de uma outra visão da existência dos vivos e mortos. No terreiro das festas do jarê, algumas pessoas recebem os “encantados” (espíritos da ancestralidade africana). O saber, o conhecimento, vêm do transe — mais do que da razão humana.
Quem assume a voz narrativa no terceiro capítulo, é um dos encantados do jarê que vai observar, rever e esclarecer questões lançadas nos monólogos/memórias das duas irmãs. O espectro “desceu” por anos no corpo do personagem Dona Miúda, se apresentando com a denominação de Santa Rita Pescadeira. O leitor vai percebendo que está diante de algo muito além do regionalismo literário tradicional. Com o passar do tempo, o espírito passou a vagar pela comunidade da fazenda que deixa gradativamente o jarê e assume as crenças cristãs. Há assim um novo “encantamento do mundo” na migração para uma fé dos brancos, os europeus, que significa a modernização forçada.
“Sou uma velha encantada, muito antiga, que acompanhou esse povo desde sua chegada das Minas, do Recôncavo, da África. Talvez tenham esquecido Santa Rita Pescadeira, mas a minha memória não permite esquecer o que sofri com muita gente, fugindo de disputas de terra, da violência de homens armados, da seca. Atravessei o tempo como se caminhasse sobre as águas de um rio bravo. A luta era desigual e o preço foi carregar a derrota dos sonhos, muitas vezes”, diz a narradora do terceiro capítulo, que guarda nesse ponto semelhanças com a “alminha” criada por João Ubaldo Ribeiro no romance “Viva o Povo Brasileiro” (1984).
O espectro que ronda a comunidade praticante do jarê (seriam quilombolas nos termos de hoje) é a servidão do trabalho na fazenda. Os sonhos das duas irmãs e os encantados do pai são as formas literárias de estilizar, compreender e criticar a organização daquele universo particular. A matéria brasileira em “Torto Arado” é a representação da vida servil que foi deixada de herança pela escravidão e se constitui como a ossatura do país em formação sempre incompleta. O transe jarê, por sua vez, se contrapõe à racionalidade que prende aquelas pessoas ao arranjo histórico, social e econômico da servidão. Um olhar novo oferecido por Itamar Vieira que dá o que pensar.
O horizonte de ruptura em “Torto Arado” está no personagem Severo, o primo que se casa do Bibiana. Nele, estão a razão e o desencantamento para sair do mundo servil. Aqui entra o pensamento político estrito. Uma parte da tradição crítica brasileira sempre torceu o nariz para as soluções baseadas no “transe”, tão bem exploradas por Glauber Rocha em seus filmes. A aposta dos críticos foi a conscientização, como a que propõe Severo. No romance de Itamar Vieira, os donos da fazenda são aqueles que se apropriam da racionalidade para quebrar o movimento insurgente. Aflora aí o uso da violência e da religião cristã, assim dissolvendo laços culturais e históricos do jarê.
Subalterno que fala
Se existe uma interpretação do Brasil estilizada em “Torto Arado”, salvo engano, ela é o encontro da razão política representada por Severo com o encantamento jarê de Zeca Chapéu Grande. O transe pode assim ser um horizonte político para enterrar o trabalho servil. A síntese aparece nas páginas finais, no momento que Bibiana recebe o espírito da Santa Rita Pescadeira. Fica patente nesses movimentos que Itamar Vieira seguiu a tradição modernista de uma aposta firme na vida popular. Só existe uma saída para os pobres, excluídos, quilombolas, índios, quando saem de cena os ricos, classe dominante, proprietários, que formaram a sociedade brasileira.
Os servos da Fazenda Água Negra compõem a parte positiva do que já se chamou de camada “inorgânica” do país, para usar a clássica análise de Caio Prado Jr. Os inorgânicos compõem as “populações desenraizadas, flutuando sem base em torno da sociedade colonial; chegando apenas, em parcelas pequenas, a se agregar a ela, e adquirindo assim os únicos visos de organização que apresentam”, afirma o historiador. Estamos falando aqui de uma massa de pobres, muito diversos e largados ao deus-dará. A partir dessa lógica, os personagens de “Torto Arado” só podem ser integrar ao Brasil orgânico por meio de uma versão moderna do trabalho servil.
A literatura brasileira tem historicamente uma galeria de personagens da camada social inorgânica. Podem ser os homens livres do romance “Memórias de um Sargento de Milícias” (1853), de Manuel Antônio de Almeida. Esse é lado positivo do enquadramento e traz esperança. Na outra ponta (negativa), encontram-se os jagunços de Guimarães Rosa, os bichos soltos de Paulo Lins e os “correrias” de Ferréz. O inorgânico descamba em anomia e violência no campo e na cidade grande. Em “Torto Arado”, os atos violentos estão no cerne da narrativa, sobretudo contra as irmãs que perdem a fala e só recuperam a voz ativa com a educação, a leitura, o esclarecimento.
Ao criar um universo rico e novo para o leitor, Itamar Vieira Junior sabe bem onde está pisando. Seu olhar é o do geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos, treinado para o trabalho de cientista social e de ensaísta. Esse é um filtro para captar e absorver uma multiplicidade de dados do mundo. Ele não vai ser um diletante, um bacharel atrás da escrivaninha ou um “fazendeiro do ar”, como dizia Carlos Drummond de Andrade sobre escritores brasileiros. O autor trabalha no Incra e conhece bem a “matéria brasileira” da servidão que estilizou — assim como Machado de Assis conhecia a realidade dos escravos nas fazendas por trabalhar no Ministério da Agricultura do século 19.
É possível ainda notar a proximidade de “Torto Arado” com o romance diaspórico ou pós-colonial da “world literature”. Penso nos livros “Meio sol amarelo” (2006), da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, e “Terra Sonâmbula” (1992), do moçambicano Mia Couto, ou ainda no filme franco-senegalês “Atlantique” (2019), de Mati Diop. Um arquivo cultural gerado na diversidade África que se mistura às formas narrativas europeias. Em seu livro, Itamar Vieira usou o repertório do jarê (de matriz africana) para escrutinar a questão brasileira do trabalho servil, numa comunidade imaginada ou real (pouco importa) nos confins da Bahia.
Em outros tempos, Angel Rama chamou de “transculturação narrativa” esse encontro de formas europeias e “matérias” regionais na América Latina. Disso resultou a grande produção do chamado “boom literário”, tendo à frente o colombiano Gabriel García Márquez e uma leva impressionante de autores. Foi uma época (anos 1950 e 1960) que os escritores do continente deram uma contribuição decisiva ao campo literário do mundo todo. Acredito que Itamar Vieira Junior atualiza a tradição transculturadora, haja vista o uso da ancestralidade negra africana e indígena também nos contos de seu recente livro “Doramar ou a Odisseia” (2021).
As narradoras negras de “Torto Arado” permitem ainda uma associação do romance às ideias de Gayatri Spivak, principalmente o famoso ensaio “Pode o subalterno falar?” (1985). As personagens Bibiana e Belonísia são duas subalternas que desandam a escrever e falar sobre o universo delas. É uma questão que infelizmente teve retrocessos com as discussões políticas radicalizadas e a banalização sobre a ideia de “lugar de fala”. Trata-se, na verdade, de um debate relevante a respeito da inclusão dos pobres e das minorias identitárias à produção, e não só ao consumo de livros, filmes, músicas. Como atesta “Torto Arado”, Itamar Vieira é um fruto riquíssimo dessa abertura cultural.