Dividido em duas vertentes, central e periférica, o sistema nervoso é quem dá as cartas no cérebro do homo sapiens. Por sua vez, o cérebro é constituído de dois hemisférios, direito e esquerdo. Essa massa de neurônios, axônios e dendritos nos permite continuarmos nossa aventura particular no mundo até o precipício final, vivendo cada um suas próprias dores, tendo de superar seus próprios desafios, contornando as muitas dificuldades e administrando os infinitos problemas do cotidiano. A frágil alma humana se vai fragmentando ao passo que a Terra dá mais um giro em redor do sol, em maior ou menor medida, afetando uns mais que outros. O homem não se farta de tomar parte nessa competição insana sobre quem desce mais baixo na lama da violência mais brutal, no lodo da corrupção mais sofisticada e a barbárie nossa de cada dia começa a passar longe das nossas preocupações. Sequer conseguimos prestar-lhes atenção, primeiro pelo aparvalhamento; depois, conforme nos acostumamos a esse cenário de pavor, tudo se torna exatamente isso, mais uma simples nota de jornal, mais um ingrediente asqueroso na sopa de números das estatísticas. A natureza, sábia como só ela pode se apresentar, já conhece de há muito esse estado bestial do homem. Somos inundados de adrenalina, a fim de que sejamos capazes de incorporar o mundo grotesco que o próprio homem inventa. A arte, não precisamente sábia, mas esperta, e, sobretudo, perspicaz, entendeu desde sempre que gostamos de viver perigosamente — perigo em excesso até. O cinema nos dá a oportunidade de vivenciar essas situações desconfortáveis sem maiores sobressaltos. Os filmes de suspense decerto são uma unanimidade entre cinéfilos, haja vista a assiduidade com que vêm parar aqui na nossa lista dos mais mais. A sensação do tempo sendo manipulado numa espécie de jogo aliada a circunstâncias de crime ou temas mal-resolvidos na narrativa tem o condão de nos fascinar. Em “O Segredo dos Seus Olhos” (2000), produção argentina do diretor Juan José Campanella, o suspense vem sem pressa, vem mansinho, mas diz muito bem a que se propõe; no caso de “Onde os Fracos não têm Vez” (2007), dos irmãos Ethan e Joel Coen, os golpes se seguem um depois do outro, sem refresco, e ai de quem reclamar. Os títulos, todos na Amazon Prime Video, surgem do mais novo para o lançado há mais tempo, sem nenhum outro critério. Respire fundo e mantenha os olhos fixos na tela.
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Rian Johnson é mais um dos muitos diretores a reverenciar — a seu modo — a Dama do Crime. A escritora britânica Agatha Christie (1890-1976) continua a servir de base para uma infinidade de filmes de suspense, o que se pode ver às claras aqui. Todavia, em “Entre Facas e Segredos”, Johnson perturba o seu tanto a ordem do estabelecido no gênero e transfigura a narrativa, não importando mais quem fez o quê, mas a que altura da história se vai chegar ao assassino. O morto em questão é Harlan Thrombey, célebre autor de livros de suspense — e o espectador adora esses joguinhos metalinguísticos —, degolado com requintes de crueldade aos 85 anos em sua própria mansão. Benoït Blanc, renomado detetive com direito a perfil na revista “New Yorker” e tudo, parece o único habilitado a solucionar o caso, e logo conclui que, por um motivo ou outro, todos os que conviviam com Thrombey tinham razões de sobra para matá-lo. Os pontos em comum com “Assassinato no Expresso Oriente”, publicado em 1934, são inegáveis, mas “Entre Facas e Segredos” é original ao revelar, já no segundo ato, as circunstâncias em que se deu o crime, sendo esse o anticlímax fundamental do enredo, com o adendo de que determinados personagens sabem o que houve e tentam de todas as maneiras dificultar a vida de Blanc, enquanto os demais permanecem à deriva na trama, conjecturando, como o público, de maneira o imbróglio vai acabar. Dessa forma, o filme ganha em complexidade, apresentando dois polos independentes, pontuados por situações cômicas, em que as condutas de todos os suspeitos serão escrutinadas, cada qual com suas peculiaridades. Nunca prescindindo por completo dos chavões do suspense tradicional, Rian Johnson entrega um filme tenso e divertido, dispondo dos tipos que constrói feito peças de um jogo de tabuleiro, manipulando-os mais à frente ou mais à retaguarda, nos ritmos mais diversos, no intuito de conferir à história o dinamismo que a caracteriza e a torna tão genuína.

Tentando amenizar o luto, Dani viaja com o namorado Christian e um grupo de amigos à Suécia para participar de um festival de verão. Em vez do sossego de férias tranquilas, eles vão se deparar com um bizarro ritual. O começo de “Midsommar” tem atmosfera semelhante à de “Hereditário”, filme anterior de Ari Aster. Mas o segundo longa de Aster não é simplesmente uma extensão do horror apresentado sob a forma de uma família cujos problemas vão aparecendo com sutileza. “Midsommar” apenas dá a impressão de mimese do antecessor; contudo, o clima de pesadelo de “Hereditário” cede lugar a um suspense bem equilibrado entre o grotesco e o cômico, linguagem muito eficiente quando se quer tratar das perdas que a morte inexoravelmente traz, de loucura e verdades que, por não ditas, apodrecem em nós.

Poder-se-ia classificar “Os Oito Odiados” como um retrato da pluralidade social americana, pluralidade social americana, repita-se, e frise-se o adjetivo pátrio. “Os Oito Odiados”, “estudo” de Quentin Tarantino sobre a gênese conflituosa do povo dos Estados Unidos, é repleto de sacadas geniais, a começar do plot original. Ninguém reúne um mexicano, um inglês, um xerife e um negro a mais quatro personagens o seu tanto malditos num saloon de faroeste nos anos 1860, justamente quando da Guerra Civil Americana (1861-1865), gratuitamente — e não seria logo Tarantino, mestre em desancar episódios vexatórios da história à luz de narrativas fílmicas, a fazê-lo: ele não poupa nem o então presidente Abraham Lincoln (1809-1865). Se o espectador se determinar a vencer o longo introito, que tampouco é sem motivo, e chegar à trama em si, vai ver o que o diretor pretende. Ao se imiscuir na história, com referências explícitas a “Bastardos Inglórios” (2009) e “Cães de Aluguel” (1992), por exemplo, ele amplia o espectro do que é dito, de forma a facultar ao público mais alternativas quanto a chegar ao que quer. Com a nevasca que impede que os personagens sigam viagem e fiquem confinados no Armazém da Minnie, cenário em que se desenrolam quase todas as cenas, o diretor mostra que se garante no que está disposto a apresentar, prescindindo de pirotecnias de ordem tecnológica e se concentrando nos recursos propriamente semânticos, abusando de flashbacks e montagens paralelas. As sempre bem-vindas invencionices tarantinescas — e o emprego de expedientes nada revolucionários, mas cujo resultado tem sempre a força de uma iluminação, a exemplo da trilha do lendário Ennio Morricone (1928-1920) —, bem como o talento invulgar do diretor em se valer das emoções do espectador como deseja, fazem de “Os Oito Odiados” um filme que todo mundo só consegue amar. Uma verdadeira obra-prima.

Amy Dunne simplesmente some no dia do seu quinto aniversário de casamento, deixando o marido Nick em desespero. Ele vai se descontrolando cada vez mais, abusa das mentiras que conta para a polícia a respeito da vida com a cônjuge e acaba se tornando o principal suspeito pelo desaparecimento. Margo, irmã gêmea de Nick, se compadece dele e o ajuda. Enquanto tenta provar a sua inocência, Nick procura descobrir o que de fato aconteceu com Amy. “Garota Exemplar” corresponde às expectativas de um grande trabalho de David Fincher e, de lambuja, ainda fomenta uma discussão interessante sobre a vida a dois ao apresentar ao público um homem e uma mulher que já se amaram algum dia, mas se transformaram nas pessoas que outrora criticavam: o marido frio e a mulher neurótica.

A categoria de Melhor Filme monopolizava todas as atenções no Oscar 2010, numa disputa acirrada entre “Avatar”, de James Cameron, e “Guerra ao Terror”, de Kathryn Bigelow — a história da captura de Osama bin Laden no Afeganistão levou a melhor, bem como a própria Kathryn Bigelow sobre o ex-marido James Cameron ao ganhar o prêmio de Melhor Diretor. O que importava mesmo era a decisão da Academia acerca do destino da estatueta de Melhor Filme Estrangeiro. O belíssimo “A Fita Branca”, de Michael Haneke, que já vencera o Festival de Cannes, era mais que favorito: era aclamado. O argentino “O Segredo dos Seus Olhos”, que parecia passar ao largo, dada a campanha de divulgação muito mais sóbria, surpreendeu o júri. Foi o segundo filme daquele país a alcançar o olimpo do cinema, 25 anos depois da proeza de “A História Oficial”, de Luis Puenzo. Ao se valer do conceito do tempo elástico, a trama de Juan José Campanella expõe as consequências de um crime na vida do oficial de justiça que se empenhou no caso passados 25 anos. Aposentado, Benjamín Esposito volta a se interessar pela história, para ele particularmente desconfortável por não ter tido desfecho. O mistério que encerra o crime o motiva a escrever um livro sobre o assunto, baseado em suas memórias. Questões irresolutas do passado se impõem no cotidiano dos personagens, como também se dá em obras de Pedro Almodóvar, a exemplo de “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999) e “Abraços Partidos” (2009) — de maneira muito mais introspectiva, claro. O longa se destaca por unir eventos que podem parecer soltos na narrativa, compondo um mosaico inteligível apenas quando visto por inteiro. Nessa história, como o título dá a pista, os olhares são vitais para não se perder nada. “O Segredo dos Seus Olhos” é um filme sobre o que não se deixa ver.

Sidney Lumet nunca pareceu inclinado a conduzir seus filmes de maneira a agradar. Em sendo assim, “Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto” se dedica a escrutinar não um crime propriamente, mas as circunstâncias que levaram ao cometimento do delito. A conduta criminosa desvia de qualquer padrão. É um risco — e como todo risco, suas variáveis não são certas. Sempre há margem para o inesperado, e para o trágico. Andy não calculara muito bem a probabilidade de insucesso ao roubar, com a ajuda do irmão, Hank, a pequena joalheria dos pais. As coisas saem muito pior do que o esperado, e a mãe dos bandidos acaba morta. Além dessa questão, delineia-se mais uma, de natureza muito mais complexa: o que leva alguém aparentemente tão pacato, avesso à violência e cumpridor de suas obrigações a jogar tudo para o alto? Lumet consegue dar a verossimilhança de que o enredo precisa ao contar a história dos bastidores do roubo, indo desde o embrião da ideia, isto é, do porquê Andy não vê nenhum problema no mal que se propõe a fazer. O diretor vai compondo a trama como um gigantesco quebra-cabeça, seguindo o expediente de apresentar uma massa de informações a fim de que o espectador tenha uma noção — nada mais que isso — de onde a história vai dar, ao mesmo tempo em que nem a raiz do que se passou se dá a conhecer. Lumet não faz concessões, e isso conta a seu favor. Quem assiste não pode vacilar, tem de se manter atento a qualquer mínimo detalhe. O diretor parece, a cada torturante cena, desafiar o público, como se quisesse arrancar dele alguma desculpa para o desatino dos irmãos. E parece mesmo que alguma coisa há de justificá-lo. Tudo em “Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto” é mistério. Mistério dos bons.

Llewelyn Moss realiza uma caçada a cervos nos arredores da fronteira dos Estados Unidos com o México. Teria motivos para desânimo, já que não consegue acertar um alvo, até que se depara com uma mala, misteriosamente deixada por ali. Ao abri-la, ele verifica que se trata de dinheiro e, claro, a leva consigo. A quantia seria usada para negociações escusas e, não demora muito, Anton Chigurh, um matador profissional, começa a persegui-lo implacavelmente. Chigurh vai promovendo um banho de sangue por onde passa, sem deixar vestígios, graças à sua perícia e a uma arma de gás comprimido que faz com que o projétil volte para o cano depois de disparado. O xerife se desdobra em meio a todo esse caos, incumbido de prender Moss e agora também Chigurh. O faroeste, gênero legitimamente americano, parece ser a forma ideal que os diretores escolhem quando se prontificam a contar uma história pródiga de desencontros, flagrantes conflitos éticos e mocinhos e bandidos que trocam de lugar sem a menor cerimônia. Desde que o mundo começou a girar no infinito, vilões surrupiam a afeição do público, sem mover uma palha, por mais abjetos que possam ser. Em “Onde os Fracos não Têm Vez” não é diferente. Aqui, o herói, completamente desmoralizado, perde sua aura mítica, o que dá vazão ao pensamento niilista de que não adianta resistir porque no fim o mal sempre sai vencedor.

Patrick Bateman é um homem jovem, bonito, bem-sucedido e, o principal, rico. Seu cargo de executivo de uma financeira em Wall Street lhe garante prazeres como frequentar restaurantes sofisticados, envergar os ternos mais elegantes, dirigir carrões e viver num verdadeiro palácio. Patrick teria tudo para se considerar feliz, mas leva uma vida vazia e, embora nunca vá admitir, não tem a menor ideia sobre porque as coisas são assim. Numa elaborada crítica sobre as engrenagens movidas pelo dinheiro — sociedade de consumo, indústria automobilística, comércio de bens de luxo e o mercado financeiro —, “American Psycho” apregoa a degeneração a que uma pessoa está sujeita se toma por guia inquestionável de sua vida o êxito por meio da ascensão social. Bateman é um exemplar do cinismo mais fino ao lançar pérolas sobre não se tirar da vida nenhum tipo de lição. Para ele, o homem é um animal como qualquer outro, tentando se valer de expedientes os mais ardilosos a fim de permanecer vivo, sempre ávido por saciar seus apetites, objetivo que nunca alcança dada a sua natureza de querer sempre mais. E é exatamente esse o caso de Bateman. Como já tem tudo, descobre algo inédito em sua lista de anseios: tornar-se um assassino frio e metódico, sem freios morais. Em seus delírios de superioridade, o personagem passa uma carraspana no mendigo que ousa atravessar seu caminho e lhe suplicar por uma esmola. Bateman lhe joga na cara que o pedinte é o único responsável por sua penúria, que ele não tem nada com aquilo e não há qualquer aspecto em comum entre os dois, insinuando que o homem nem seria gente. Por fim, parte para cima do infeliz e o mata a facadas. Bateman é um sujeito patologicamente solitário, incapaz de se colocar na pele do outro, tanto menos se esse outro não tem sua pele branca, sua educação formal e uma conta bancária fornida como a dele. A diretora Mary Harron alfineta a debilidade por trás da filosofia do estilo de vida americano, em que resta implícita a ideia de que para ser é imprescindível ter. Mas deixa uma mensagem reducionista e equivocada ao sugerir que a maldade de seu personagem principal advenha do ambiente insalubre em que se constituiu.

Uma garota americana sai da casa dos pais e vai morar na Alemanha a fim de perseguir o sonho de se tornar uma bailarina de sucesso. À medida que conhece o lugar, Suzy vai absorvendo a estranheza dali, mas ainda há certos eventos capazes de surpreendê-la e deixá-la escandalizada, a exemplo do assassinato de uma colega, ou da morte bárbara do pianista da academia de dança em que estuda, devorado pelo próprio cachorro. Ao descobrir que a escola já fora habitada pela bruxa Suspiria, a garota já não sabe mais se vale a pena enfrentar seus medos e se dedicar a sua carreira, ainda incerta. Ah, os ímpetos da juventude! Ao empregar o plot da menina antes ingênua que passa a ter de se confrontar com cenários desconhecidos, Dario Argento apresenta um filme a um só tempo concessivo, mas autoral; monstruoso, mas poético; despretensioso, mas marcante. O roteiro de “Suspiria” lembra “O Bebê de Rosemary” (1968), de Roman Polanski, com a vantagem de ousar muito mais. Os três atos têm o condão de aliar a bela fotografia ao roteiro, realçando a atmosfera trash e fazendo com que o gore adquira o necessário destaque. Frente aos milhões de efeitos especiais que o cinema desenvolveu no transcorrer de quase cinquenta anos — graças aos milhões de dólares de investimento em tecnologia na confecção de filmes do gênero —, “Suspiria” até pode ser hoje uma produção datada, mas o senso estético e a força de sua regência ainda provocam encantamento no espectador que já admira histórias dessa natureza e arrebanha novos fãs. Um fenômeno digno do melhor que a magia do cinema pode materializar.