Como falar de si contornando o narcisismo? Em primeiro lugar: bem melhor falar dos outros. E como diria o Ariano Suassuna: de preferência pelas costas, por uma questão de educação, para não melindrar o fulano. Mas veja que começo a desviar do tema e falo dos outros. Falar de si não é fácil porque implica olhar para dentro. Sondar o seu íntimo. Desnudar-se. Expor-se. Revelar-se.
Até onde julgo, temos uma forte tendência a criar uma caricatura de nós mesmos. É bem mais fácil olhar o espelho. Ver os sinais do tempo. As rugas. Os cabelos brancos. A pele flácida. Ou seja, todas essas coisas sobre as quais o tempo se mostra implacável. Essa nossa face está exposta à visitação pública.
E a que não está? Aquela íntima só se revela por meio de um inventário sentimental, subjetivo. E isso é fugidio. É arisco. Escorregadio. Exige mergulho no eu profundo. Os que estão próximos de nós até arriscam um julgamento particular. Pais, irmãos, esposa, filhos, e, às vezes, até alguns poucos amigos. Explica-se: pela proximidade da convivência.
No entanto, nos nossos recônditos, nos retraímos. Só nós mesmos podemos nadar nesse mar secreto. É aquela zona de sombra, inacessível, sobre a qual estou me referindo. Esta só nós mesmos podemos iluminar. Se é que podemos. Corre-se o risco de abrir uma Caixa de Pandora, da qual não se sabe o que emergirá.
A verdade é que todos somos uma espécie de esfinge que aguarda uma chave para ser decifrada. E é essa a essência do que entendo por autoconhecimento, que requer muita perícia e certa malícia. Os mais jovens, a buscam impacientemente. Os mais velhos: serenamente. De sorte que, ao fazer esse testamento sentimental, temos que expor, como disse o poeta Ivan Junqueira, “alma e ossos”.
Vale assinalar que as feridas da carne, dos ossos, cicatrizam, sedimentam. Diferente da alma. Estas possuem tempo próprio. Podemos conviver com elas eternamente. São secretas. Indevassáveis. Inescrutáveis. Quase indolores. Fervem em fogo brando. Longe dos olhos, mas presença constante. Com elas aprendemos a conviver. Sangram lentamente. Mas sangram.
Desse caldo de cultura, afloram os vícios, as idiossincrasias e os autoenganos. E por fim surge a inevitável pergunta: a vida valeu a pena? Para o íntimo, respondo: valeu. E digo mais: obrigado pela luz, pelo pão, pelo amor, pela amizade e, ainda, pela suposta razão. Até que a luz do palco se apague e possamos balbuciar: “boa noite”. E alguém vem e arremata: “o resto é silêncio”.