A Argentina passou muitos anos completamente isolada da América do Sul, e isso é uma característica elogiosa em sua história. Antes longe do empobrecimento galopante de seus homólogos no subcontinente, o país hoje conta com quase 45 milhões de habitantes pelejando para ganhar a vida, tendo por alento a beleza de suas pradarias e lagos glaciais. Proclamada independente da Espanha em 1816, levou quase meio século para ser reconhecida como uma nação livre, em 1863. O caráter aguerrido de seu povo decerto foi determinante para que a Argentina atingisse níveis econômicos consideráveis, o que lhe permitiu conquistar índice de desenvolvimento humano de 0,845 numa escala de zero a um. O superávit do PIB foi convertido da maneira certa: a Argentina se notabilizou por sua população culta, que valoriza a instrução formal e que passou anos sem achar graça alguma em governantes caricatos e ignorantes, o que, lamentavelmente, mudou o seu tanto. No começo dos anos 2000, o país enfrentou uma grave crise econômica, cujos reflexos perduram até hoje. Contudo, a cultura ainda é um ponto alto. O cinema argentino mantém a tradição de apresentar filmes muito bem-produzidos, com histórias plurais e, sobretudo, um elenco primoroso, com destaque para Ricardo Darín, certamente o ator mais reconhecido da Argentina e celebrado mesmo entre os brasileiros. Os filmes feitos aquém do rio da Prata se tornaram famosos por tramas muito originais, cheios de reviravoltas, e, sobretudo, indiferentes a patrulhas ideológicas, e nesse particular, a diferença entre seus pares do Brasil se acentua. Na nossa lista de hoje constam dez produções do cinema argentino exatamente assim ao longo deste ainda curto século 21. Em “Relatos Selvagens” (2014), o diretor Damián Szifron consegue entrelaçar seis enredos num só tema, empreitada cujo resultado agrada pelo aspecto inventivo. Criatividade também é a tônica de “A Mulher Sem Cabeça” (2008), de Lucrecia Martel, em que a protagonista toma parte num acidente de carro que terá consequências imprevisíveis. Os filmes estão em ordem contracronológica, do lançado há menos tempo para o com mais tempo de carreira, sem quaisquer outras normas. Já que não os vencemos — nem no futebol —, que nos juntemos a eles, então.
O cinema — e o povo — argentino são tão arrojados que até conseguem algumas proezas. Uma, manter um cineasta assumidamente homossexual em evidência; outra, fazer com que um filme sobre o relacionamento entre dois homens ainda gere interesse, passados dois longos anos. “Un Rubio” se saiu tão bem com o mercado e a crítica que muitas vezes é citado, mesmo em países de língua hispânica, sob seu título em inglês, “The Blonde One”. O louro em questão se trata de Gabriel, que se muda para Buenos Aires e vai morar num quarto na casa de Juan, seu senhorio. O diretor Marco Berger sabe muito bem onde está pisando e deixa algumas pistas a fim de que o espectador também tome pé do que está prestes a acontecer. Juan e os outros antigos habitantes da república têm namoradas, mas não convivem com elas; na maior parte de seu extenso tempo livre, dedicam-se a beber e falar de mulheres; e todos parecem se sentir muito à vontade quanto a participar da vida íntima uns dos outros, ainda que involuntariamente. Gabriel é solteiro, compenetrado nas escolhas que fez e, claro, por alguma razão seu temperamento sensível passa a atrair Juan. A determinada altura da trama, os dois param sob o batente da porta do quarto de Gabriel, e o inquilino é o único a conseguir encarar Juan, uma metáfora das relações homoafetivas cheias de conflitos por ao menos um dos dois parceiros. O loiro o acaricia, o outro não recua e pode-se dizer que vivem um romance — um romance entre um homem que sabe exatamente o que quer e o outro que até pode saber, mas prefere deixar alguma margem para um retorno seguro, caso surja algum arrependimento, que reste claro. O envolvimento amoroso de dois personagens masculinos é longevo no cinema, desde o divertido — e nada tenso — “Quanto Mais Quente Melhor” (1959), de Billy Wilder, pelo menos, tudo evidentemente relegado a subtramas e mitigado pelas figuras de linguagem escolhidas pelos diretores. O movimento quanto a remover um pouco o glacê da mera sugestão é recente: “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005), de Ang Lee, talvez seja a produção que de fato botou o dedo na ferida e, como todo precursor, sofreu ataques —, mas do mesmo modo que “The Blonde One”, foi apreciado e continua a ser lembrado pela excelência da história, a despeito da temática que o longa compreende. Marco Berger tomou a decisão de se tornar um expoente do queer drama de forma pensada, e seus filmes são pensados, racionais, precisos, a exemplo de “Taekwondo” (2016) e “Ausente” (2011). A esperança de um final feliz em suas narrativas sempre se delineia, mas como um unicórnio albino, some pelas brumas do céu durante uma tarde nublada.
Só se empreende um épico das dimensões de “La Flor” sublimando o desejo por popularidade ou sucesso comercial. Ao se determinar a fazer um filme de impressionantes 14 horas, o diretor Mariano Llinás passa por cima de qualquer paradigma monolítico estabelecido desde sempre no cinema e se aprofunda ao máximo nas histórias que se propõe a contar ao longo de três episódios, valendo-se do talento singular de Laura Paredes, Elisa Carricajo, Valeria Correa e Pilar Gamboa, merecidamente tornadas musas do cinema experimental. No primeiro episódio, Paredes, Carricajo e Correa sofrem com a maldição de uma múmia; Gamboa é a estudiosa de temas do além-vida que as liberta. Essa talvez seja a parte que mais destoa da uniformidade conseguida pelo filme, apesar de produções como “La Flor” prescindirem de que tudo faça sentido o tempo todo. A partir do segundo tomo, o filme cresce em potência dramática, com as desventuras da cantora pop no fim de um relacionamento amoroso e que é preterida também na carreira por uma estreante. O terceiro, certamente o de maior destaque ao longo de suas quase seis horas, apresenta um modelo narrativo verdadeiramente inovador. O thriller se desdobra em vários países ao redor de três continentes, tem diálogos falados em, no mínimo, quatro línguas e traz Gamboa, Paredes, Carricajo e Correa como espiãs que orquestram o sequestro de um cientista sueco a mando de Casterman, chefe de uma organização secreta. A missão se revela uma sabotagem e o filme se espraia em novas histórias numa corajosa aventura metalinguística de Llinás. E a ousadia é mesmo o que mais fascina em “La Flor”. Ao ter tido a coragem de encampar um projeto cuja duração equivale a quase cinco vezes a de “O Irlandês”, por exemplo, Mauricio Llinás revela-se um verdadeiro artista, a despeito da amplitude de seu trabalho. A superioridade de seu filme reside na visão moderna com que entende a sétima arte, sem se entregar a facilidades ou modelos. “La Flor” é um manifesto da grandeza do cinema. Em todos os sentidos.
Lola Arias é o que se convencionou chamar de artista multimídia. Já foi das artes plásticas à música, passando pelo teatro, e é justamente pela representação nos palcos que chega ao cinema. Em “Teatro de Guerra”, o que se vê é literalmente o que se apreende do título do filme sobre um episódio da história da Argentina acerca do qual ainda restam dúvidas. A Guerra das Malvinas, conflito muito mais sangrento do que deixam evidentes os registros da imprensa, envolveu argentinos e a Inglaterra numa disputa não só por um quinhão de terra improdutiva perdido em algum lugar do Oceano Pacífico. A imposição de uma ideologia sobre outra era o que de fato contava para o ditador argentino Leopoldo Galtieri (1926-2003) e a primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher (1925-2013). Os soldados que encenam a guerra atuaram mesmo nos confrontos, o que, por óbvio, proporciona à trama uma verve dramática inestimável. Ao reviver o que passaram nas Falklands, os atores não têm de incorporar papel algum, já que são eles mesmos os personagens a reviver suas próprias memórias, uma ideia inquestionavelmente revolucionária da diretora. Argentinos e britânicos discorrem sobre seu cotidiano no front de modo amistoso, com afeto até, certos de que eram meras peças no tabuleiro de questões cuja relevância muitos deles não conseguiam vislumbrar. O filme de Lola Arias tem uma essência de iluminação ao deixar claro que mais do que um teatro, a guerra é uma farsa.
O aspecto nefasto de um governo seria capaz de se alastrar sobre a intimidade das pessoas a ponto de estimulá-las a ganhar a vida de forma criminosa e, pior, não ver nada de errado em tal prática? Essa certamente é uma das inferências que o diretor Pablo Trapero sugere em “O Clã”. Histórias de famílias em dívida com a lei em maior ou menor grau pululam no cinema, de “O Poderoso Chefão” (1972), de Francis Ford Coppola, que conta a saga dos perigosos — e milionários — Corleone, a “Assunto de Família” (2018), de Hirokazu Kore-eda, sobre pés-de-chinelo que roubam para não morrer de fome. Aqui, Trapero se debruça sobre a história verídica dos Puccio, quadrilha de parentes famosa na Argentina nos anos 1980. Liderados por Arquímedes, o bando se destacava pela crueldade, matando os ricaços que sequestrava mesmo depois de receberem o dinheiro do resgate. Arquímedes, aliás, é a mola-mestra da narrativa. Dono de uma personalidade doentia, o patriarca manipula o clã a fim de seguir com o expediente de delitos à custa de castigos físicos e tortura psicológica. Tanto que, como sói acontecer ao se assistir a filmes dessa natureza, o público se sinta tentado a manifestar alguma comiseração pelos comandados do bandidão, vibrando a qualquer possibilidade de virada a fim de que eles se livrem da influência do facínora e tomem jeito. Produzido por Pedro Almodóvar e seu irmão, Agustín, “O Clã” dispõe de um enredo tenso, que lhe permite constantes reviravoltas até a derradeira cena, e atuações sublimes. Um dos grandes filmes no panteão do cinema feito na Argentina.
Pelo visto, os argentinos são especialmente bons em fazer filmes divididos em episódios. Em “Relatos Selvagens” são seis, todos muito bons. O inicial, cuja história se passa num avião, serve para captar a atenção do espectador desde logo, o que consegue, graças à narrativa ágil, original e cuja conclusão deixa todo mundo atônito. O filme continua, com o enredo de uma atendente de lanchonete que se depara com o culpado pelo fim trágico de sua família, mas que não se lembra dela; a seguir, dois homens partem para a briga depois de um deles ultrapassar o outro numa estrada deserta; em sucessão a esse, o de um sujeito endinheirado que se empenha em livrar o filho da cadeia. Ricardo Darín protagoniza o conto de maior impacto, não por acaso o que apresenta teor sociológico mais pronunciado, como é de praxe em seis trabalhos. Seu personagem corre contra o relógio no intuito de chegar a tempo no aniversário da filha, mas cai numa armadilha do destino ao não encontrar o carro, que fora guinchado, depois de comprar o bolo. Tem início para ele uma tortura kafkiana ao ter de se encaminhar a uma repartição pública qualquer, enfrentar toda a burocracia típica em casos semelhantes, até que não consegue mais suportar e dá azo a um arroubo de violência. Apesar dos capítulos independentes uns dos outros, Damián Szifron mantém a linearidade do roteiro e, o principal, entrega um filme estável, sem grandes oscilações de performance ou excelência do que é mostrado. Argumento que se comprova justamente da quinta — a de Darín — para a sexta parte, com Erica Rivas na pele de uma noiva endiabrada, à Almodóvar. Rivas é brilhante ao ser capaz de transmitir à audiência com exatidão matemática a tensão, o drama, a loucura das situações observadas ali. Nada sobra nem falta em seu desempenho, o que é a deixa para o encerramento, surpreendentemente pra cima. Seis enredos que constituem um filme singular.
Em “Viola”, segundo da trilogia de filmes com personagens shakespeareanas femininas iniciada com “Rosalinda” (2011) e terminada em “A Princesa da França” (2014), Matías Piñeiro reafirma seu interesse pela arte e em de que maneira os mais jovens a consomem e absorvem-na. Na história, se ensaia uma compilação de sete peças de William Shakespeare (1564-1619). O diretor mostra a força de tudo o que é dito: uma frase aparentemente banal tem o condão de aniquilar ou revigorar quem a escuta. Os enquadramentos pelos quais opta Piñeiro são parte fundamental quanto à profundidade da trama; por meio deles, não se tem uma visão redonda da cena — o que se consegue enxergar é o rosto de quem fala, e fala para ser ouvido — pelo público, inclusive. O espectador corresponde à investida, tanto que passa a imaginar as reações dos outros supostos interlocutores. Tudo é milimetricamente pensado a fim de deixar as atrizes o mais despojadas possível, num exercício metalinguístico interessante. A vida poderia ser mais fácil se tomada à luz do teatro, como se se tratasse de um espetáculo? Decerto que não — ao menos no que concerne ao teatro feito por Shakespeare. O poder de “Viola” reside justamente no quão parecidas podem ser a jornada do homem sobre a Terra e o texto de William Shakespeare, mas cada qual com sua importância. Tudo o mais é mero sonho de uma noite de verão.
A categoria de Melhor Filme monopolizava todas as atenções no Oscar 2010, numa disputa acirrada entre “Avatar”, de James Cameron, e “Guerra ao Terror”, de Kathryn Bigelow — a história da captura de Osama bin Laden no Afeganistão levou a melhor, bem como a própria Kathryn Bigelow sobre o ex-marido James Cameron ao ganhar o prêmio de Melhor Diretor. O que importava mesmo era a decisão da Academia acerca do destino da estatueta de Melhor Filme Estrangeiro. O belíssimo “A Fita Branca”, de Michael Haneke, que já vencera o Festival de Cannes, era mais que favorito: era aclamado. O argentino “O Segredo dos Seus Olhos”, que parecia passar ao largo, dada a campanha de divulgação muito mais sóbria, surpreendeu o júri. Foi o segundo filme daquele país a alcançar o olimpo do cinema, 25 anos depois da proeza de “A História Oficial”, de Luis Puenzo. Ao se valer do conceito do tempo elástico, a trama de Juan José Campanella expõe as consequências de um crime na vida do oficial de justiça que se empenhou no caso passados 25 anos. Aposentado, Benjamín Esposito volta a se interessar pela história, para ele particularmente desconfortável por não ter tido desfecho. O mistério que encerra o crime o motiva a escrever um livro sobre o assunto, baseado em suas memórias. Questões irresolutas do passado se impõem no cotidiano dos personagens, como também se dá em obras de Pedro Almodóvar, a exemplo de “Tudo sobre Minha Mãe” (1999) e “Abraços Partidos” (2009) — de maneira muito mais introspectiva, claro. O longa se destaca por unir eventos que podem parecer soltos na narrativa, compondo um mosaico inteligível apenas quando visto por inteiro. Nesse filme, como o título dá a pista, os olhares são vitais para não se perder nada. “O Segredo dos Seus Olhos” é um filme sobre o que não se deixa ver.
Verónica é uma mulher sem cabeça — à luz da metáfora e no sentido literal da expressão. Nos primeiros minutos do filme, tudo o que se consegue ver são pedaços da personagem. Está em redor de pessoas próximas, mas objetos bloqueiam a visão que se possa ter dela, inclusive o carro em que entra a fim de voltar para casa, dirigindo sozinha por uma estrada de terra enquanto a câmera a acompanha de perfil. Ouve-se um baque e Verónica para o carro, muitos metros à frente. Ela sai do veículo; repentinamente começa a chover e a câmera permanece no carro, captando sua imagem pelo vidro molhado, do pescoço para baixo. Tanto mistério cai como uma luva para justificar a deterioração psíquica por que vai passar a personagem. Não bastasse a mãe da protagonista estar desenvolvendo um quadro de demência, ao ponto de nem se lembrar das duas filhas que Verónica tem; a sobrinha apresentar à família a moça com quem está namorando; e o adultério cometido por ela de maneira meio inconsequente, mais essa: a incerteza quanto a ter matado alguém a consome. Sua figura disforme remonta de imediato ao esfacelamento de uma classe média decadente, hipócrita e medíocre, como também se observa noutro trabalho de Lucrecia Martel, “O Pântano” (2001), ainda que em “Uma Mulher sem Cabeça” tudo tenha sido calculado desde o início a fim de que o tom de suspense da narrativa prevalecesse. Os poucos detalhes que se delineiam ao longo da história não deixam evidente o rumo que o enredo vai tomar, daí tanto burburinho em torno do filme, um primor de sutileza, inclusive nos diálogos. As informações de que o espectador pode lançar mão para solucionar o mistério são dadas de forma a confundi-lo ainda mais, um golpe de misericórdia em qualquer reflexão mais apressada. Junção de muitos insights de sagacidade de Martel, amarrados a fim de fazer com que o corriqueiro adquira ares de sobrenatural, o filme é assombroso em sua originalidade. Assim não há quem não perca a cabeça.
Durante um dos bicos que Alejandro faz como motorista, ele transporta Sergio, produtor musical amador. Ao pensar que Alejandro conhece seu irmão Luis, ator pornô no Canadá, Sergio convida Alejandro e a namorada dele, Cecilia, para jantarem com ele e Susana, sua mulher. O motorista e a namorada discutem e rompem naquela mesma noite. Sergio convida Alejandro a morar com ele; Susana por sua vez se aproxima de Cecilia, deprimida com o fim da relação, e a presenteia com uma viagem ao Brasil. Entram nessa roda-viva Valeria, a aeromoça com quem Cecilia faz amizade no deslocamento, que se torna a nova companheira de Alejandro; e Daniel, passeador de cachorros, que passa a namorar Cecilia. Toda essa loucura transcorre numa boa, sem que ninguém manifeste um pingo de ciúme. Ainda entram em cena os amigos de Luis, que fora visitar Sergio, atores pornôs como ele. Do nada, alguém tem a genial ideia de investir em umas tais luvas mágicas, fabricadas na China, que teriam o poder de tornar rico quem as calça. O que encanta em “Magic Gloves” é a forma como o devaneio avassalador do enredo flui de modo orgânico, como se Martín Rejtman fosse um legítimo Tim Burton dos pampas — sem os orçamentos milionários de Hollywood.
Filmes de assaltos, golpes e così via tendem a dar em boas histórias, no Brasil ou na Argentina. “Nove Rainhas”, de Fabián Bielinsky, poderia facilmente ser definido como um quadro da autêntica malandragem — a malandragem cisplatina, por óbvio. Um aspirante a trambiqueiro e seu tutor se aproximam num supermercado quando o primeiro tenta passar a perna na caixa. Os dois logo começam a agir juntos, levando a cabo maracutaias em lojas e restaurantes de Buenos Aires — além de invadirem uns apartamentos quando as circunstâncias permitem —, tudo sem levantar um dedo contra quem quer que seja. E o acaso realmente favorece os mal-intencionados: os pilantras conseguem botar a mão em selos falsificados — as nove rainhas — e vão tentar repassá-lo a um estelionatário de outro país, cuja extradição da Argentina está próxima. A partir de então, os dois sobem na hierarquia do crime, o que demanda deles ainda mais inventividade. Por outro lado, passam a competir entre si, o que degringola numa desconfiança crescente que lembra muito “Os Safados” (1988) no que a produção hollywoodiana tem melhor: a leveza, a graça, o humor, sem prescindir da tensão de cada próxima cartada, até o final mirabolante, que peca um pouco pela inverossimilhança. Aqui, o espectador acaba se tornando cúmplice da dupla de biltres, e quanto mais pensamos no que era feito da Argentina quando do lançamento de “Nove Rainhas” mais nos desesperamos pensando sobre o que pode ser do Brasil nos próximos dois anos (ou sete, na pior das hipóteses). A narrativa farsesca do filme deixa claro à audiência que se trata de ficção, mas que no balanço das horas tudo sempre pode mudar. Para a pior.