Gary Gilmore: a história do assassino que exigiu que a Justiça o executasse

Gary Gilmore: a história do assassino que exigiu que a Justiça o executasse

Em 1976, o americano Gary Mark Gilmore (1940-1977) matou Max Jensen e Ben Bushnell, dois jovens mórmons, durante assaltos. Julgado, foi condenado à pena de morte. O surpreendente é que ele próprio pediu sua execução. Sua história é contada pelo escritor Norman Mailer no livro “A Canção do Carrasco” (de 1979) e foi levada ao cinema pelo diretor Larry Schiller, com os atores Tommy Lee Jones (Gary), Grant Gettschall (Mikal), Rosanna Arquette (Nicole) e Susan French (Bessie). Mas o livro mais extraordinário sobre o assunto é “Tiro no Coração — A História de um Assassino” (Companhia das Letras, 423 páginas, tradução de Marcelo Levy), de Mikal Gilmore, irmão caçula do criminoso e crítico de música da revista “Rolling Stone”. Este texto irá contar a história em duas partes. Primeiro, como se deram o assassinato, o julgamento, a condenação, o clamor do jovem para ser “fuzilado” e a aplicação da pena de morte. Segundo, a história da família Gilmore, que talvez tenha colaborado para “produzir” o, digamos, “monstro” — que, um dia, foi criança e adolescente, até se tornar adulto incontrolável e avesso às regras sociais e legais.

Tiro no Coração — A História de um Assassino” (Companhia das Letras, 423 páginas, tradução de Marcelo Levy), de Mikal Gilmore

Depois de uma série de prisões, em abril de 1976, Gary deixou a penitenciária de Marion, em Illinois, e foi para Salt Lake City, no Estado de Utah. De lá, buscado pela prima Brenda, foi para Provo, onde moravam os parentes mórmons de sua mãe. Ele ficaria sob custódia de sua família, com a qual mantivera escasso contato.

O futuro parecia auspicioso, pois Gary estava apaixonado por uma bela mulher, Nicole Barrett Baker, que o adorava. Tanto que escreveu uma carta para Mikal: “Não sabia que era possível ser tão feliz”. Chegou a trabalhar na loja de sapatos de Vernon, seu tio.

A estabilidade não durou muito, pois Gary voltou a beber “com regularidade” e a tomar Fiorinal, “um remédio para dores de cabeça e musculares que, em doses frequentes, pode provocar mudanças de humor e disfunção sexual. Ao que parece Gary teve ambas as reações. Também se tornou mais violento. Às vezes, agia de maneira áspera com Nicole por causa de seu desempenho sexual ou porque acreditava que ela andava flertando com outros homens”. Ele agredia pessoas fisicamente sem nenhum motivo aparente. Dado o desinteresse, Gary perdeu o emprego. Passou a beber e a se drogar. Assaltava lojas. Adquiriu armas e passou a atirar com frequência.

Ante as agressões costumeiras, Nicole decidiu abandoná-lo. Gary chegou a dizer a um amigo que iria matá-la.

Assassinatos de dois mórmons em Utah

No fim de abril de 1976, Gary assaltou um posto de gasolina e mandou o frentista Max Jensen “colocar as mãos sob a barriga e encostar o rosto no piso. Jensen obedeceu e tentou sorrir. Gary mirou na base do crânio” e disse: “‘Esta é por mim’, e puxou o gatilho. Na sequência, disse: ‘Esta é por Nicole’, e tornou a puxar o gatilho”.

Em companhia de April, irmã menor de Nicole, começou a assistir o filme “Um Estranho no Ninho”, num drive-in. Depois foram para o Hotel Holiday Inn, fumaram maconha e Gary tentou transar com a adolescente, que não quis.

No dia seguinte, Gary entrou num motel, atirou na cabeça de Ben Bushnell e roubou o minicofre da empresa. Acabou preso, porque uma testemunha o reconheceu.

Ao ser informada pela polícia, Brenda ligou para Bessie Gilmore, a mãe do jovem, e relatou: “Gary foi preso e está sendo acusado de homicídio em primeiro grau. Ele matou dois jovens mórmons”, em Provo.

Os assassinatos foram cometidos a sangue-frio. Gary matou os dois jovens para roubar. Ele era encrenqueiro, usuário de drogas e, às vezes, assaltava lojas, mas era a primeira vez que matava alguém. Os dois mortos deixaram mulheres e filhos bebês.

Norman Mailer contou a história de Gary Gilmore no livro A Canção do Carrasco, de 1979 | Foto: Reprodução

Bessie, que amava Gary, talvez mais do que aos outros filhos, ligou para a prisão e disse ao policial que atendeu: “Não matem meu menino. Nós lutamos tanto para que fosse solto”. Gary não quis atendê-la: “Diga que não estou. Não saberia o que dizer a ela”.

Mikal perguntou, por carta, o que havia acontecido. Gary foi sucinto: “Estou preso”. Em seguida, encontrou-se com sua mãe, em Oak Grove. Ficaram “olhando um para o outro através do abismo de desgraças comuns”. Bessie lamentou: “Você pode imaginar o que é para uma mãe ver um filho que ama privar duas outras mães de seus filhos?”

Condenado à morte, dois meses depois dos crimes, um Gary desafiador “ordenou” ao juiz que fosse fuzilado, não queria ser enforcado.

Num telefonema para a mãe, Mikal disse: “Há dez anos que não executam ninguém neste país e certamente não vão recomeçar com Gary”. À namorada, o crítico da “Rolling Stone” falou outra coisa: “Eles vão executá-lo. Ele nasceu com essa sina”.

A surpresa é que, ao contrário de outros criminosos, Gary “renunciara ao direito de apelar ou pedir que a sentença fosse revista e vinha reivindicando que a execução fosse levada a cabo”. Mas seus advogados conseguiram suspender o fuzilamento.

“Tudo o que restava era um presente terrível, a porta de entrada para um pesadelo do qual nenhum de nós jamais poderia se libertar”, assinala Mikal.

Para se certificar da posição de Gary, Mikal ligou para a prisão. O irmão estava irredutível — queria morrer. “Parece que nós só conversamos quando alguém morre. Agora é minha vez”, declarou. “Minha decisão é mesmo pra valer e não quero que você ou qualquer outra pessoa interfira. É assunto meu, só meu. Matei dois homens, fui condenado à morte e agora estou aceitando a sentença. Não quero passar o resto de minha vida em tribunais ou na prisão. Perdi minha liberdade. Agora, só vou fazer eles terminarem o serviço que começaram vinte anos atrás.”

Era, na visão de Mikal, uma espécie de “suicídio sancionado pelo Estado”. A imprensa de todo o país noticiava a história. A revista “Newsweek” publicou uma capa sobre Gary.

O governador de Utah, Calvin Rampton, decidiu suspender a execução. Gary o chamou de “covarde moral” e tentou se matar com uma overdose de sedativos. O homem de 36 anos estava decidido a desaparecer. “Podemos condenar as pessoas à morte, mas não à vida”, compreendeu Mikal.

Para a felicidade de Gary, o Comitê de Indultos decidiu que a pena de execução deveria ser cumprida. Mas a Suprema Corte dos Estados Unidos optou pela suspensão da pena de morte.

Possesso, Gary cortou os contatos com a família, falando apenas com o escritor-editor Lawrence Schiller, que pagou a Gary para ter “os direitos de sua história para publicação e para o cinema”.

Em dezembro de 1976, considerando que Gary havia renunciado aos seus direitos, a Suprema Corte revogou a suspensão da pena de morte. Bessie tentou salvar o filho mais uma vez, porém Gary a convenceu a retirar a ação.

Na prisão, Gary tentou se suicidar pela segunda vez, e quase o conseguiu.

Mesmo sabendo que era uma missão impossível, Mikal decidiu visitar Gary mais uma vez, com o objetivo de convencê-lo a não se deixar matar. Mas se perguntava: “Como se podia salvar a vida de um homem cuja alma já estava perdida?”

Vernon e Ida, tios de Gary, estamos interessados no dinheiro resultante da venda dos direitos da história do criminoso. Na prisão de Draper, quando Mikal foi visitar o irmão, Vernon mostrou-lhe camisetas com a frase “Gilmore — desejo de morte” e uma foto do assassino. Gary, o “vivo-morto”, havia se tornado um “produto”.

Ao se encontrar com Larry Schiller, Mikal interrogou, irritado: “Para você, Gary vale mais vivo ou morto?” A resposta: “Estou aqui para registrar a história e não para fazer história”.

Insistente, Mikal abordou Gary mais uma vez sobre a possibilidade de comutação da pena. Mas o irmão reagiu mal: “Eles nunca me soltariam, e eu já passei tempo demais preso. Matei dois homens. Não quero passar o resto da minha vida na prisão”. Chegou a sustentar que mataria o advogado que conseguisse libertá-lo.

“Fui destruído. Agora sou eu quem destrói”

Mais tarde, Frank Jr., o irmão mais velho, disse a Mikal: “Você acha que se Gary não tivesse passado vinte e dois anos preso ele teria atirado na cabeça daquele homem em frente a sua mulher grávida e seu filhinho? E o outro cara? Ele matou o sujeito no posto e dizem que o sujeito levou horas para morrer. Estou convencido de que os vinte e dois anos de treinamento que Gary recebeu na animalesca sociedade penitenciária em que vivia o transformaram no animal que gerou essas tragédias. Ele tinha visto muitas coisas na prisão. Tinha visto pessoas serem mutiladas — viu as mãos de um homem serem cortadas — e tinha visto homens serem assassinados. Tinha visto tantas agressões e, quando mais jovem, ele próprio tinha sido agredido, espancado, estuprado. À medida que foi ficando mais velho, maior e pior, passou a ser o agressor. Ele podia dizer: ‘Eu fui destruído, mas agora sou eu quem destrói”.

Para Frank, Gary “queria a libertação por meio da morte. Ele tinha descoberto a maneira perfeita de vencer o sistema ao levar o sistema a matá-lo. Depois disso era a liberdade. Ele acreditava que tinha vencido”.

Gary Gilmore: julgado por assassinato de dois homens mórmons, em Utah | Foto: Reprodução

Numa das visitas, Gary disse a Mikal que o cantor e compositor Johnny Cash (1932-2003) lhe havia dado um livro e ele queria deixá-lo para a mãe. Era a autobiografia do cantor e compositor, “The Man in Black”. Para o irmão, deixou um desenho que havia feito de Nicole. Era bom desenhista. Gary pediu ao irmão que pedisse a uma rádio para tocar a música “Valley of Tears”, de Fats Domino. “Era sua canção de rhythm and blues favorita.”

Apesar de saber que Gary representava um perigo para as pessoas, Mikal o queria vivo. Amava o irmão problemático. Mas era tarde. “Quando discuti com Gary, estava discutindo com a própria morte — ele era a morte, que elegeu a ele mesmo para saciar-se. Ele tinha armado para si o que ele considerava uma espécie de expiação. Ele queria a morte, o palco derradeiro de sua redenção, sua libertação final das garras da lei. Para Gary, a maior ironia era que a lei — que a seus olhos sempre procurara esmagá-lo — finalmente queria salvá-lo, justo agora, quando ele não queria mais salvação. A fim de vencer a lei, ele teria que perder tudo — tudo exceto sua inabalável definição de dignidade.”

No último encontro, Gary disse para Mikal: “A gente se vê do outro lado, na escuridão”. No final da conversa, o presidiário disse: “Diga à mãe que a amo”.

Na noite anterior ao fuzilamento, Mikal ligou na prisão e Gary disse suas últimas palavras para a mãe: “Não chore, mãe. Eu amo você. Quero que toque sua vida em frente”. Bessie redarguiu: “Gary, vou resistir firme por você até amanhã, mas sei que nunca vou parar de chorar. Vou chorar todos os dias até morrer”. Na mesma noite, Gary falou com Johnny Cash.

“Estamos todos orgulhosos de você”, frisou Mikal. “Não tenham orgulho de mim. Orgulhar-se de quê? Apenas vou ser fuzilado por algo que nunca deveria ter acontecido”, respondeu Gary.

No dia 17 de janeiro de 1975, Gary foi fuzilado. Ele tinha 36 anos. Era “alguém que tanto tempo atrás tinha sido ele mesmo assassinado emocionalmente”.

As últimas palavras de Gary foram: “Sempre haverá um pai” (leia adiante uma possível explicação a respeito).

Num artigo para a “Rolling Stone”, Mikal escreveu: “É isto que todos precisamos aprender: a vida continua. Temos que assimilar a dor, encarar as lembranças e perdoar o que pudermos. No fim, não é uma verdade tão ruim de se aprender”.

Mikal teve depressão, se tratou e, apesar de ter morado com algumas mulheres, nunca se casou. Os filhos de Frank e Bessie não tiveram filhos. Ou melhor, Gary teve um filho, que nem conheceu.

“Comecei a entender que, na realidade, nunca conseguiria escapar das garras de minha família e que carregava sua desgraça no fundo de mim, talvez desde o começo”, sublinha Mikal.

Best-seller, o livro de Mikal rendeu 2 milhões de dólares. Numa entrevista, o jornalista declarou que doou 1 milhão de dólares a Frank, uma de suas principais fontes para a escritura da obra. O irmão ficou com o dinheiro, mas não quis usá-lo.

Família pode ter sido a origem da “tragédia” de Gary

No seu belo e doloroso livro, Mikal Gilmore assinala: “A desgraça de minha família não terminou com Gary simplesmente porque não havia começado com ele”. A família era composta de Frank Harry Gilmore e Bessie Brown Gilmore, pais, e de quatro filhos, Frank Gilmore Jr., Gary Mark Gilmore, Gaylen Noel Gilmore e Mikal (Michael) Gilmore. Só dois estão vivos, Frank e o caçula Mikal, de 70 anos.

Sobre a família Gilmore, cujos integrantes parecem personagens que escaparam de um romance de Fiódor Dostoiévski, não há como deixar de citar a primeira frase do romance “Anna Kariênina” (Companhia das Letras, 808 páginas, tradução de Rubens Figueiredo), do russo Liev Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

O casal Frank Harry Gilmore e Bessie Gilmore Brown com os filhos Frank Jr., Gary (no centro) e Gaylen | Foto: Reprodução

Bessie Brown nasceu em Utah, em 1913, no início do século 20. Sua família era mórmon. O mormonismo era dominante no Estado.

Rebelde, Bessie Brown contrariava os familiares ao se postar, desde jovem, contra a pena de morte. “Ela odiava execuções.” Intransigentes, os mórmons eram favoráveis a pena duras para infratores das leis e, mesmo, dos costumes.

Revoltada com a família, Bessie Brown saiu de casa para viver por conta própria.

Frank Gilmore era filho de Fay Ingram — que dizia ter “poderes mediúnicos” — e não se sabia quem era o pai. A mãe dizia que era filho do famoso mágico Harry Houdini. Há indícios de que o sobrenome Gilmore era falso. “Essa [não saber quem era o pai] é a grande tragédia da vida de Frank. Sua raiva está em nunca poder dizer quem ele é realmente é.” Ele viveu boa parte de sua infância e adolescência em internatos.

No circo Barnum & Bailey, Frank havia sido palhaço e equilibrista. Sabia também um pouco de mágica. Foi domador de leões e dublê em filmes mudos e “trabalhou para Tom Mix, o primeiro grande herói de westerns de Hollywood”.

Nada dera certo na vida de Frank. Sem prestar atenção nos desastres do homem errático, Bessie decidiu se juntar ao “malandro”, 23 anos mais velho, que tinha vários filhos, um deles Robert Ingram, um jovem bonito, e teria mantido relacionamento fixo com pelo menos sete mulheres.

Bessie e Frank se conheceram, em Salt Lake City, em 1937. Ele era elegante e vendia anúncios para a “Utah Magazine”. Bessie gostou dele e decidiu segui-lo. Curiosamente, o católico Frank detestava mórmons.

Certa feita, Frank desapareceu, deixando Bessie na casa da espírita Fay. Golpista e rei dos cheques sem fundos, ele vendia anúncios de revistas que nem existiam, enganando dezenas de pessoas em vários Estados. Por isso, ele e Bessie viviam fugindo e usando nomes falsos.

Bessie não queria, mas Frank exigia filhos. Frank Harry Gilmore Jr. nasceu em 1940. “Dei-lhe este filho para que cuide de você quando ficar velha” (de fato, Frank Jr. cuidou dela até o fim, sozinho).

Quando Gary nasceu, Frank exigiu que o bebê fosse registrado como Faye Robert Coffman. Em homenagem a Gary Cooper, Bessie optou por Gary Mark Gilmore.

Frank e Bessie começaram a brigar feio. Ela era surrada com frequência, e extrema violência. Um dia, durante uma briga, ele disse para Bessie, apontando para Gary: “Este aqui não é meu filho, certo? Ele é filho de Robert, não é?” Ela negou e ele a espancou.

Nunca mais Frank pegou o bebê Gary com atenção. Gary cresceu achando que ele não era seu pai. E, de fato, Frank era pai do menino. O filho de Robert com Bessie era, na verdade, Frank. Era um dos segredos de Bessie.

Um dia, fugindo de alguém, talvez uma das vítimas de seus golpes, Frank abandonou Bessie e Frank Jr. num posto de gasolina e fugiu com Gary. Dias depois, ela descobriu que o menino estava num orfanato e Frank preso “por emissão de cheque frio”.

Preso outra vez, por passar cheque sem fundo, Frank foi condenado pela Justiça a cinco anos de detenção, no Colorado. Na época, em 1942, ele usava o nome de Harry F. Laffo e tinha 51 anos. Bessie voltou para a casa dos pais, com Frank Jr. e Gary. Eram bebês, mas já apanhavam da mãe.

Em 1943, a Justiça decide libertar Frank, considerando seu bom comportamento. Ele batia em Frank Jr. e Gary por qualquer motivo, como chorar ou não comer rápido.

Em 12 de dezembro de 1944, nasce o terceiro filho, Gaylen Noel Gilmore. Frank continuou aplicando golpes em incautos, fugindo com a mulher e os três filhos e bebendo à larga.

Em 1946, Frank decide trabalhar na construção civil. Gary começa a ter pesadelos de que “estava sendo decapitado”.

Em dezembro de 1946, Fay morre. Mesmo não tendo sido um filho carinhoso, Frank ficou desolado. Bebeu e chorou muito, por dias.

Frank continuou batendo em Bessie — seu rosto estava quase sempre inchado, dada a violência extrema do marido — e nos garotos, sobretudo em Frank e Gary. Este dormia mal, sempre com pesadelos “em que ele era executado”.

Em 1948, Bessie e Frank se instalaram em Portland, no Oregon. Ele articulou um novo golpe: captaria dinheiro de anúncios para uma espécie de Guia da Construção Civil e depois fugiria da cidade. Por se recusar a fugir mais uma vez, agora que tinha três filhos, sua mulher ponderou: “Você poderia publicar de verdade este livro”.

Publicado, o livro foi um sucesso e Frank ganhou muito dinheiro e “deu entrada em uma casinha”, em Portland. As crianças foram para a escola. Bessie estava feliz. Gary ganhou a cadela Queen, que, como eles, era espancada por Frank.

O caçula Michael Gilmore — que se batizou de Mikal — nasceu em 9 de fevereiro de 1951. O pai tinha 61 anos e sua mãe 38 anos.

Frank ficou feliz com o nascimento de Mikal e Gaylen deixou de ser o filho favorito. Um dia, possivelmente com depressão pós-parto, Bessie tentou matar Mikal. Frank surrou a mulher, de maneira impiedosa.

A família mudou-se para Salt Lake City, onde Frank comprou uma casa, que, por ser “assombrada”, acabou sendo vendida. (Mikal: “Descobri que lidar com a memória e o legado desses rostos”, os familiares, “podia ser aterrorizante o suficiente”.)

O início da vida criminosa de Gary Gilmore

Aos 11 anos, Gary começou a furtar e escondia os objetos na garagem de sua casa. À noite, acordava gritando pela mãe, devido aos pesadelos.

Os meninos, inclusive Gaylen, de 7 anos, continuaram sendo surrados. “Em vez de simplesmente estapear, meu pai agora aplicava surras ferozes, usando fitas de couro de afiar navalha e cintos e, às vezes, os próprios punhos cerrados. A cada golpe que lançava, meu pai estava dando ordem para que seus filhos o amassem, mas a cada golpe que recebiam, os filhos iam aprendendo a odiá-lo a e aniquilar a própria fé no amor”, assinala Mikal. Uma vez, bateu tanto em Frank e Gary, porque este furtara dinheiro de sua escrivaninha, “a ponto de o sangue atravessar-lhes as calças jeans”.

Mikal Gilmore, irmão caçula do criminoso e crítico de música da revista Rolling Stone | Foto: Reprodução

Frank não batia nos meninos para “ensinar alguma coisa”, pontua Mikal. “Exceto ensinar-nos a ter medo dele. Ele não nos punia para melhorarmos. Apenas para chorarmos.” Os meninos cresceram ressentidos, e não apenas com o pai. Às vezes, quando a pancadaria era excessiva, Bessie interferia.

Se Frank Jr. era resiliente, “Gary não conseguia imunizar-se: a atrocidade e a injustiça de ser surrado daquele jeito tornaram-se um ponto dolorido em seu coração. Era como se, pelo resto de sua vida, ele revivesse o drama dos castigos que o pai lhe impôs toda vez que se visse diante de uma figura de autoridade. Anos mais tarde, quando estava preso, Gary se esforçava ao máximo para desafiar a força dos guardas”.

Quando adulto, preso na penitenciária estadual do Oregon, Gary disse para Frank Jr.: “Eu só odeio a autoridade porque ela me lembra muito o pai. Convenhamos, todas aquelas surras absurdas com a fita de couro não evitaram que eu tivesse todos esses problemas”.

Na década de 1950, curtindo Elvis Prestley e Fats Domino, Gary e Gaylen começaram a tomar bebidas alcoólicas e xarope para tosse. Faltavam às aulas e passavam a noite com garotas e participavam de brigas de gangues. “O ideal de maldade de Gary foi forjado nesse período e permaneceria para ele como uma espécie de guia.”

Na escola, Gary era visto como um garoto “brilhante”, mas não gostava de estudar nem de se submeter à autoridade de professores. Ele queria ser “temido”, talvez para que não lhe fizessem “mal”, como o pai fazia.

Como entregador de jornais, quando tinha entre 12 e 13 anos, começou a invadir casas. A polícia o alertou que estava ficando com uma reputação negativa. Seu sonho era participar da Gangue da Broadway.

Numa loja, roubou uma Winchester semiautomática e cartuchos. Em 1954, Gary fugiu de casa, mas a polícia o capturou, em Idaho. “A destruição já estava em seu sangue e ele não conseguia largá-la”, sublinha Mikal.

Logo depois, Gary uniu-se a um grupo de colegas para vandalizar a escola onde estudava. Detido pela polícia, Gary foi levado à Justiça. O pai contratou advogado para livrá-lo. “Não me lembro de ninguém chamando-o de lado e dizendo: ‘Preste atenção. Se você continuar desse jeito, poderá acabar no corredor da morte’. Não me lembro de ninguém que estivesse realmente preocupado com o destino de Gary. A única preocupação de todos era preservar o nome da família”, disse Frank Jr. a Mikal.

Gary via o pai como “um filho da puta que não me amava. Meu pai foi a primeira pessoa que eu quis matar. Se pudesse tê-lo matado sem ter que pagar por isso, eu o teria feito”.

No reformatório aos 15 anos de idade

Adolescente, Gary juntou-se a um amigo para roubar automóveis. Foi preso, mas, convencido por Frank, um juiz o soltou. Mas o garoto roubou outro carro e o juiz o enviou para o reformatório MacLaren, em Woodburn, no Oregon. Tinha 15 anos.

Gary Gilmore, em 1975 | Foto: Reprodução

A Larry Schiller, Gary disse: “Reformatórios disseminam uma espécie de conhecimento esotérico. Eles sofisticam. Um garoto sai do reformatório sabendo de um monte de coisas que de outra forma não saberia. E ele normalmente acaba se identificando com as pessoas que têm o mesmo saber esotérico, os elementos criminosos. Portanto, minha passagem por Woodburn não foi uma coisa sem importância em minha vida”.

Mikal conta que Gary escreveu para a mãe uma carta na qual relata a história de um menino de 14 anos que estava na reformatório e morreu. O adolescente teria dito: “Quero desaparecer no nada que existe dentro de mim, onde ninguém jamais poderá me machucar de novo”. Quem era o garoto? “Acho que o menino sobre quem Gary estava escrevendo era Gary.”

No reformatório, um orientador percebeu que Gary se sentia rejeitado pelo pai, que lhe agredia com frequência. O jovem chegou a fazer terapia.

Libertado, Gary voltou para casa. “Foi-se a paz.” Bessie dizia aos irmãos: “Às vezes é tarde demais para mudar as pessoas. Às vezes, temos que amá-las assim mesmo”.

Agora, curtido pela passagem pelo reformatório, Gary passou a enfrentar a autoridade do pai. Aparecia para as refeições quando queria, o que irritava Frank.

Audaz, Gary fazia sucesso com as garotas. “Passou a roubar farmácias e outros estabelecimentos, atrás de droga, dinheiro e de uma arma. Ele gostava de juntar mil dólares ou mais e, com o dinheiro, comprar roupas, drogas e bebidas, e dar festas que varavam a madrugada.”

Armado, Gary roubou 18 mil dólares de uma loja. Depois, invadiu um escritório e roubou uma pistola automática. Foi preso e condenado, aos 16 anos, “a um ano de prisão na Rocky Butte, a cadeia municipal de Multnomah. Foi sua primeira pena série de prisão”.

Se Gary dava um trabalhão, Frank Jr. era um menino comportado, que adorava mágica. Gaylen era leitor de Salinger e Jack Kerouac. Esfaqueado ainda jovem, foi levado ao hospital, mas nunca se recuperou. “O que o matou foram as coisas que ele não conseguia parar de fazer consigo mesmo. Os crimes de Gaylen nunca foram muito graves, limitando-se a pequenos furtos e cheques sem fundo”, postula Mikal.

Gaylen era poeta. Sua poesia “era cheia de ritmos apaixonados e sensacionais quebras de versos”. “Gaylen estava com fome o tempo todo. Ele queria tudo e queria rápido, sem fazer esforço. Como alguém que não tivesse muito tempo.” Bebia, muito, desde os 12 anos.

Gary deixou a cadeia de Rocky Butte em maio de 1958 e começou a trabalhar na loja Bresse Applliances. Mas continuou roubando carros e casas. Acusado de estupro — a menor ficou grávida e teve um filho em 1960 (Gary acreditava que o bebê havia morrido) —, foi detido pela polícia. Mas fugiu da cadeia municipal.

Em San Diego, na Califórnia, Gary mudou o nome para John Rohr. Foi preso em Los Angeles e no Texas.

Condenado a um ano de prisão por roubo de carro, Gary foi levado, em 1960, para o Instituto de Correção do Estado do Oregon. Na entrevista à direção do presídio, disse sobre o pai: “Não o conheço muito bem. Ele me trata do jeito que mereço ser tratado”. Sobre a mãe: “Uma ótima mulher, deixa que eu faça as coisas do meu jeito. Acha que sou grande o suficiente para tomar minhas decisões e nunca interfere. Ela respeita meu discernimento”. Na prisão, começou “a sentir terríveis dores de cabeça”.

Criminoso profissional e família de errantes

Ganhando um bom dinheiro, Frank comprou uma casa melhor. “Mas o que meus pais não entendiam era que o problema estava no que acontecia dentro de casa e não no endereço. Talvez fosse tarde demais para entender.” A mãe adorava a residência.

Em 1961, cumprida a pena, Gary voltou para casa. Na prisão, os guardas notaram que o jovem de 21 anos “era particularmente maldoso com homens mais velhos, chegando várias vezes a ameaçá-los de mortes”. Era como se fossem, de alguma maneira, o seu odiado pai.

Gary Gilmore sendo interrogado pela polícia em 1976 | Foto: Reprodução

Em 1962, médicos descobrem que Frank tinha câncer de cólon. Já Frank havia se tornado um usuário “contumaz de drogas — bolas, maconha, xarope para tosse, um pouco de heroína e muito álcool”.

Gary disse a Frank Jr.: “De mais a mais, se não voltar pra lá [a cadeia] logo, vou acabar machucando alguém. Puta merda, vou ter que machucar alguém. Sinto falta de meus amigos”.

Frank Jr. sugeriu que pensasse numa carreira. Gary replicou: “Eu já tenho uma carreira. Sou um criminoso profissional”.

Na cadeia de Rocky Butte, um guarda acordou Gary e disse: “O filho da puta do seu pai acaba de morrer. Isso deveria deixá-lo feliz”. O prisioneiro destruiu a cela, quebrou uma lâmpada e cortou o pulso.

“Meu pai estava morto. Fora muitas vezes um homem violento e insensato — mais com meus irmãos do que comigo — e conseguira constituir e sustentar uma família ao mesmo tempo que ajudou a danificar as almas e esperanças das pessoas dessa família”, lamenta Mikal. “Ambos [Mikal e Frank Jr.] suspeitamos que muito do que era ruim e forte em seus filhos veio de algum ponto de dentro dele. (…) Deixou atrás de si uma família de errantes.”

A mãe, apesar dos pesares, cuidava “bem” da família, sugere Mikal. Quando Larry Schiller perguntou por que, apesar da violência extrema de Frank, com ela e os filhos, não o abandonou, Bessie disse: “E para onde eu iria? Quem mais ia me querer? Fiquei porque não havia outra coisa a fazer”. Mikal avalia que, apesar das brigas e da violência, os “pais se amavam de verdade”. O caçula acredita que “o amor pode ser algo incrivelmente agridoce”.

Mikal acredita que os filhos “prenderam” Bessie, uma mulher forte e dedicada à família, a Frank. Os filhos, a dependência financeira e, de alguma maneira, o amor. “Que pessoas tristes e desgraçadas eram Frank Gilmore e Bessie Brown. Amo-os, mas tenho de dizer: é de cortar o coração que tenham tido filhos”, anota Mikal. “O inferno era minha família.”

Sem Frank, a família empobreceu, vivendo com a aposentadoria dele. Gary, fora da cadeia, voltou para sua casa. Estava ligado a “pessoas envolvidas em tráfico de drogas e prostituição”.

Gary roubou 11 dólares de um homem e foi preso. Na prisão, cortou os pulsos. “Foi a primeira tentativa por parte de Gary de morrer sob a bandeira da Expiação pelo Sangue” (coisa dos mórmons). Ele foi julgado em 1964 e condenado a 15 anos de prisão. Bessie “chorou muito”.

Mikal se tornou mórmon, atendendo à mãe, mas acabou “salvo” pela música dos Beatles, pela qual se apaixonou. Frank Jr. era testemunha de Jeová.

Em 1968, Gary “participou de um grande motim que assolou a penitenciária estadual do Oregon. Ouvi dizer que Gary jogou um martelo na cabeça de um velho desafeto no pátio da prisão e depois golpeou a cabeça do homem caído. Os ferimentos foram tantos que o homem passou o resto da vida confinado a um leito, como se fosse um vegetal. Ouvi também que ele deu várias punhaladas em um negro por ter de alguma forma ameaçado ou ferido um amigo de Gary”.

Por não pagar as prestações, Bessie perdeu sua casa. Ela e Frank foram morar num pequeno trailer. Viviam num camping na região semirrural de Oak Grove.

“A Justiça nunca me deixou em paz”

Em 1971, Bessie visitou Gary na penitenciária. O jovem “estava completamente diferente. Seu rosto e suas mãos estavam intumescidos — inchados como o cadáver de um afogado — e seus passos eram arrastados”. O prisioneiro explicou: “Deram Prolixina pra mim. O psiquiatra e o diretor do presídio me submeteram a um tratamento à base de Prolixina, um remédio pesado”. Deram uma dentadura a Gary, mas, como ela não servia direito, ele começou a protestar de maneira agressiva e ameaçou se suicidar.

A cadeira em que Gary Gilmore foi executado em 1977 | Foto: Reprodução

Os guardas amarravam e esmurravam Gary, por causa de sua resistência à autoridade. “Gary nunca foi o mesmo homem depois da Prolixina. Encheu-se de ódio e simplesmente não tinha limites. Ele fazia tudo que estava ao seu alcance para enfurecer as autoridades da prisão, mesmo que para isso precisasse ferir a si próprio. Era um homem carregado de ímpeto assassino”, disse Steve Bekins, um colega de prisão do irmão de Mikal.

Ao visitar Gary na cadeia, Mikal percebeu que tinham gostos musicais parecidos: apreciavam Duke Ellington, Hank Williams, Charlie Parker, Miles Davis, Little Richard e Chuck Berry. Como Gary desenhava muito bem, os dirigentes da penitenciária lhe “concederam liberdade em regime semiaberto para que pudesse estudar arte na universidade pública, em Eugene”.

Gary esteve na universidade, mas, sentindo-se intimidado pelo ambiente, decidiu não estudar. Acabou preso por assalto a mão armada. Na cadeia, cortou o braço direito e lacerou a barriga. Ele foi julgado, em fevereiro de 1973. Pediu “tolerância” ao juiz, alegando que esteve encarcerado “durante os últimos nove anos e meio sem interrupção e que só tive dois anos e meio de liberdade desde os 14 anos. Estou tentando dizer que há um momento adequado para se libertar uma pessoa ou pelo menos dar-lhe sossego. A Justiça nunca me deixou em paz”. O juiz o condenou a nove anos de prisão. À mãe chorosa, ele disse: “Escute, não se preocupe. Eles não podem me machucar mais do que já me machuquei eu mesmo”.

A Frank Jr., Gary repisou que odiava o pai. “Em grande parte, não consigo lembrar os motivos pelos quais o velho sacana me batia. A única lição que ele me ensinou foi o ódio. Ódio dele”.

Em 1974, Gary apaixonou-se por uma jovem de nome Becker. Mas ela morreu durante uma cirurgia. Ele ameaçou se matar. O médico Weissert retomou o “tratamento” com Prolixina.

Apavorado, Gary “disse que tinha mais medo da Prolixina que de qualquer outra coisa” e pediu ao diretor do presídio “que lhe fosse aplicada outra forma de castigo”. Ele acabou sendo transferido para a penitenciária federal de segurança máxima de Marion, em Illinois. Antes de sair, disse ao amigo Roger: “Agora o que quero é pegar uns mórmons”.

Esta é a história de um assassino e de sua família. Gary Mark Gilmore viveu apenas 36 anos.

Euler de França Belém

É jornalista e historiador.