Quantas vezes a gente não se pegou chorando, assim meio às escondidas, mil pensamentos na cabeça, tantas atitudes mais por tomar, enquanto o relógio corre e a vida avança? São muitas as premências do dia a dia, muito compromisso, muita conta a pagar, mas, felizmente, sempre resta um tempinho para o devaneio, para o sonho, para o delírio, por que não? Se o homem pode se dizer verdadeiramente dono de alguma coisa no mundo, é da sua alma e do que vai nela. Podemos afirmar que temos tantas outras opiniões a respeito do que quer que seja, mas se estamos de fato sendo sinceros, só nós mesmos sabemos. Só nós próprios conhecemos do que se constitui nosso coração e por que meios se pode chegar aos recônditos mais secretos de nosso espírito. Muitas vezes, a vida se nos apresenta como uma sucessão de problemas, uma pletora de situações difíceis, mas, se paramos para refletir um instante, a solução não está assim tão longe. A vida vai esquentando, vai esfriando, vai se moldando conforme as circunstâncias, mas no fundo tudo que a vida quer de nós é coragem, para lembrar o grande João Guimarães Rosa (1908-1967). Ficamos na corda bamba, oscilando depois de dar um passo largo além da conta, espreitando o picadeiro sem rede lá embaixo. Há que se retomar o fôlego — e o equilíbrio — e seguir, ora refreando nossos ímpetos, ora, ao contrário, deixando que nossas emoções decolem, e nós com elas. Que sensação boa a de descobrir um filme que nos permita liberar tudo o que nos fica represado por uma ou outra razão! A lista dos mais mais de hoje traz 11 filmes que arejam nosso espírito e fazem com que saia de lá o que precisava vir à tona. “Milagre na Cela 7” (2019), do diretor turco Mehmet Ada Öztekin — considerado por alguns críticos o mais triste do cinema —, narra a reviravolta provocada na vida de um homem depois que ele sofre a acusação de um crime. No caso de “Paddleton” (2019), de Alexandre Lehmann, dois amigos vão desviando da tristeza pela morte iminente de um deles, levando a vida como um jogo meio tolo, sem vencedores no final. Todos os filmes estão no acervo da Netflix e vem relacionados de acordo com o ano em que foram lançados, do mais recente para o mais antigo. Não economize no lenço e chore, e reflita. Emocione-se!
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Pelos vestígios que alguém deixa, é possível conhecer um pouco de como viveu, o que passou, que postura assumiu nos diferentes momentos de sua trajetória. “A Escavação”, do diretor Simon Stone, vai fundo nesse argumento a fim de contar a história de uma jovem viúva que passa por mais um embate pessoal depois da morte do marido. Em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Edith Pretty e o filho Robert continuam levando a vida como podem, apesar das vicissitudes pela perda recente. Pequenos montes de terra na propriedade em que moram, em Suffolk, na Inglaterra, lhe despertam a curiosidade e ela recorre a Basil Brown, arqueólogo amador, a fim de saber o que pode haver ali. Brown de fato descobre algo de importante, tanto que a notícia se espalha e até o Museu Britânico demonstra interesse pelo que existe de misterioso no terreno de Edith. Enquanto Brown conduzia as escavações, afloravam também sentimentos, também plenos de relevância. Em meio a tantas reviravoltas, Edith, mãe extremada, retém o quanto pode a devastadora melancolia que a consome devido a uma grave doença, a fim de poupar o filho, mas ao mesmo tempo, teme pelo destino do garoto. A trilha, decerto mais um dos trunfos da produção, acompanha o processo de desgaste emocional a que a viúva se entrega, bem como a ambientação da história, que acertadamente opta por cenas pontuadas pelo cinza dos dias de tempestade e uma condução mais sutil. Se a intenção do filme foi transmitir alguma lição ao espectador, Stone pode se considerar realizado. Em “A Escavação” fica claro que a vida vai muito além da superfície.
É muito difícil um casamento resistir à perda de um filho — e o casal que consegue tal proeza pode reivindicar essa vitória. Ao se sobrepor à vida, a morte reafirma seu inesgotável poder sobre os homens, por mais escondida que possa estar. A frustração, a tristeza, o desespero de ver morrer um filho, a vida tendo desrespeitado seu sentido mais primevo, é o que se absorve da maneira mais brutal em “Pieces of a Woman”. Ao espectador, é concedido o direito de observar de perto — perto demais — o trabalho de parto de Martha Weiss, ao longo de sombrios 25 minutos — e só ao fim dessa agonia o nome do filme surge na tela. Com essa decisão artística, o diretor Kornél Mundruczó quis fazer o público tomar parte no tormento da personagem principal, fazê-lo perceber que havia uma vida se abrindo para o mundo e essa vida, por alguma razão, escapou. Martha é absorta por uma espiral de sentimentos múltiplos: a alegria fugaz de se sentir mãe logo é substituída por um luto que se prolonga na vida da protagonista indefinidamente, estado do qual ela não consegue se livrar, e que vai impactar de modo decisivo seu relacionamento com o marido, Sean, e a mãe, que reconhecem sua dor, insistem para que ela redescubra o prazer na vida, mas não sabem como persuadi-la, e metem os pés pelas mãos. Sean, em particular, passa a demonstrar uma ligeira indiferença, primeiro pelo sofrimento da companheira, depois pela própria Martha. O roteiro faz com que se entenda que também ele padece com a tragédia, mas que isso não lhe serve de licença para sua covardia. Enquanto isso, Martha se desintegra ao ponto de nem ostentar mais qualquer coisa de humano. Torna-se uma criatura algo transcendental, como um espectro que ronda a matéria que lhe compunha, ansiando por voltar àquele corpo, impressões que a audiência só nota graças ao espantoso talento de Vanessa Kirby. Sua Martha Weiss é um dos retratos mais pungentes de um personagem em sua condição mental, uma mulher despedaçada que possivelmente nunca volte a estar por inteiro outra vez.
Ao compilarem em seus acervos filmes independentes e “alternativos”, as plataformas de streaming prestam um grande serviço ao público. Só assim não se perdem belezas como “18 Presentes”. Sempre que celebra mais um aniversário, Anna recebe um presente que a mãe, Elisa, lhe comprara antes de morrer de câncer, logo depois de ter lhe dado à luz. De início, ainda em tenra idade, a menina se alegra em saber que a mãe conseguira se lembrar dela ainda que doente, mas conforme passam-se os anos, Anna se rebela com o ridículo da situação e não se conforma com a trapaça que o destino preparou em sua vida. Finalmente, ao completar 18 anos, se envolve num acidente e, ainda que por um breve instante, tem a oportunidade de se juntar a Elisa. O terceiro vértice dessa trama é Alessio, viúvo de Elisa e pai de Anna, que soube conduzir a relação que deveria ter com a filha de forma madura e redobrou a atenção de que Anna fosse precisar. A figura paterna é o grande diferencial aqui, na medida em que dá uma nova perspectiva à história. Alessio também sofreu todas as consequências da perda de Elisa, mas soube virar o jogo, e o fez com tamanha maestria que se mantivera são e capaz de se dedicar de perto à filha. Não é pouca coisa. Ao falar de assuntos tão díspares quanto gravidez, câncer, morte e a possibilidade de se continuar a viver numa outra dimensão, “18 Presentes” é uma grata surpresa, que certamente restaria perdida num site de filmes de arte qualquer. O público não merece.
A história só se repete como farsa. A frase, atribuída a Karl Marx (1818-1883), é genial em sua exatidão. A humanidade nunca passa duas vezes pelo mesmo evento; se dois fatos históricos são particularmente semelhantes, alguma coisa está fora da ordem. Em “Rosa e Momo”, o diretor Edoardo Ponti converte em filme a adaptação do livro de Émile Ajar, pseudônimo do escritor francês Romain Gary (1914-1980), ganhador do prêmio Goncourt, o mais importante da França, em 1975. A história já havia ganhado as telonas em 1977, com Simone Signoret no papel principal. Agora, quem brilha na pele da ex-prostituta Rosa é ninguém menos que o mito Sophia Loren, inteiraça (em todos os sentidos), e não por acaso mãe de Ponti — o que poderia contar como um fator negativo para ela, para o diretor, para o filme, o que não acontece. Rosa teve uma vida pautada pela tragédia. Depois de ter conseguido sobreviver aos horrores do nazismo num campo de concentração em Auschwitz, emigra para a Itália e se estabelece na provinciana Nápoles. Não vislumbra outra perspectiva para si além de vender a ilusão de seus afetos, se agarra a isso e se conforma em viver assim. Mais de setenta anos depois, continua em Nápoles, cuidando de crianças negligenciadas pelos pais, quase todas filhas de prostitutas, como ela mesma já fora um dia. Ao fazer compras numa feira local, a figura delgada (mas violenta) de Momo se impõe em sua vida: o garoto, filho de uma refugiada senegalesa assassinada de maneira brutal, lhe rouba os castiçais que havia acabado de adquirir. O doutor Coen, médico que atende a vizinhança e tutor de Momo, faz o garoto devolver o que subtraíra à Madame Rosa. Convencido de que a ex-prostituta é a pessoa ideal para educar Momo, Coen convence Rosa a ficar com o menino, em troca de algum dinheiro. A relação improvável e complexa entre essas duas almas fragmentadas, dois infelizes cada um a seu modo — e igualmente estigmatizados por condições históricas desfavoráveis —, é o que capta de forma decisiva a atenção do espectador. Rosa e Momo são sobreviventes, unidos graças a um motivo torto, e por isso mesmo ainda mais significativo. Constatar que Sophia Loren, aos 86 anos, consegue ser ainda mais do que a linda mulher de outrora é uma emoção à parte. Uma metáfora involuntária sobre o que é a verdadeira beleza — representada pela própria atriz — e o que é ser verdadeiramente bom, como o é sua personagem.
Por mais que a melancolia de “Se Algo Acontecer… Te Amo” não deixe transparecer, o casal que protagoniza esse curta de animação já foi muito feliz algum dia. Reconforta saber que tentam se reencontrar, mas a dor de ter perdido a filha da forma como tudo aconteceu os assola. Ao realizar a viagem rumo à vida que tinham até que a tragédia os colhesse, têm uma ideia de como podem voltar não aos bons tempos de antes — o antes está morto —, mas, pelo menos, resgatar o sentimento que os conduziu até ali. A técnica empregada na produção, estreia dos diretores Will McCormack e Michael Govier, é primorosa. Com desenhos feitos à mão, o filme torna-se uma verdadeira relíquia em meio a tantas invencionices da tecnologia, e a força da mensagem se intensifica. A narrativa se caracteriza por manter passado e presente juntos, suscitando a ideia da necessidade de os encarar dessa forma a fim de que a trama faça sentido. Os protagonistas são acompanhados por sombras, como que a atormentá-los, numa alusão à força das lembranças, capazes de interferências severas na vida dos indivíduos: a experiência de cada um é regida também pelas memórias que temos acerca dos mais diversos eventos pelos quais passamos. A começar do nome, “Se Algo Acontecer… Te Amo” é um conselho a nos rememorar a efemeridade da vida. E que é sempre possível — e necessário — dar às lembranças seu verdadeiro peso.
“Milagre na Cela 7”, do diretor turco Mehmet Ada Öztekin, é emoção à enésima potência — e talvez por isso alguns o rejeitem. Ao contar a história de um homem com atraso intelectual acusado injustamente do homicídio de uma garota com idade próxima à de sua filha, a produção flerta com a megalomania ao se pretender um guia sobre como vencer o mal do mundo, mas tem muitos méritos. Memo, o protagonista, como o roteiro faz questão de esclarecer, é inocente, na acepção lata do termo, inclusive. O pacato aldeão de um povoado no interior da Turquia, é incapaz de sequer pensar em uma barbárie como aquela. O maniqueísmo da trama decerto joga contra ao insinuar que o pai da menina assassinada é o grande vilão por se tratar de um homem poderoso, mas Memo é um personagem carismático demais para se perder em meio a tacanhezas como essa. É tocante ver a forma como ele se relaciona com os colegas de cela, que passam a ver na sua figura um mascote, uma criatura em que podem despejar sua necessidade de afeto sem receio de mal-entendidos. Talvez fique um pouco vaga que espécie de desencontro teria se dado na vida de Memo para que se visse na obrigação de criar sozinho a filha. Outrossim, incomoda que ninguém se envolva na vida dos dois, como se a deficiência intelectual de Memo tivesse qualquer coisa de infeccioso ou, pelo contrário, se isso se constituísse numa credencial de bom pai por si só. Seu comportamento para com a menina mais parece o de um irmão mais velho, no máximo de um tio. Pessoas com suas limitações demandam cuidados especiais, por mais independentes e encantadoras que sejam — e são. Excetuando-se essas ligeiras mancadas, “Milagre na Cela 7” se arvora num farol sobre a complexidade do homem ao iluminar seu lado negro e realçar suas luzes. Contraindicado para almas sensíveis demais.
Sozinhos, sem quaisquer vínculos familiares e com alguns problemas sociais, os vizinhos Andy e Mike foram feitos um para o outro. Eles não sabem ao certo o que é a felicidade, mas felicidade para eles é comer pizza congelada todos os dias, assistir a filmes antigos de kung-fu, tentar decifrar enigmas bestas e, claro, praticar paddleton, um jogo inventado pelos dois. A vida nada empolgante desses amigos segue seu curso monótono, mas perene, até que Mike é diagnosticado com câncer no estômago e sente que não vai viver muito mais. A fim de preservar sua qualidade de vida e o pouco que lhe resta de sanidade mental, Mike toma uma decisão: prefere morrer o mais breve possível, enquanto ainda tem saúde, por meio do suicídio assistido, legalizado em alguns estados americanos.
“A Sun” começa de maneira brusca e, assim, o espectador já fica esperto quanto ao que pode esperar do drama taiwanês do diretor Chung Mong-hong. Mas que ninguém se desestimule: o enredo é todo permeado por respiros cômicos — e eles são mesmo necessários. A pobreza, ainda que num país rico, é implacável, e ai daquele que pense que pode subverter o estabelecido. Contudo, seria tolo afirmar que o risco social é o responsável por fomentar a criminalidade; o fato é que a alma de todo homem tem sua face sombria — e cada um deve mantê-la sob controle. E controle — e, por extensão, autocontrole —, é uma ideia cara aos orientais. Um pai de família honrado não se prestaria a aturar os deslizes de caráter por parte de um filho, muito menos seus delitos. Ao tomar conhecimento da prisão de A-Ho, A-Wen exige que o caçula seja sentenciado com uma pena dura, o que revolta sua mulher, Qin, mãe do rapaz. A partir daí, o que se segue é a total desintegração do que até tão pouco tempo era um lar (e uma família). Ainda que haja uma ou outra tentativa pontual de contornar a questão, o casal, juntamente com o filho mais velho, pressentem que nada vai voltar ao ponto anterior à ruptura. A vergonha que todos sentem pelo destino de A-Ho, tornado ainda mais significativo numa sociedade que valoriza sobremaneira a austeridade da conduta social, o constrangimento, o remorso, tudo converge para que não consigam se encontrar outra vez. O sol pode ser o que há de mais justo no mundo, mas só pode iluminar e emprestar seu calor a ambientes que se abram para ele. Do contrário, fica eternamente preso em meio à nuvem de ignomínia e pequenez que flutua sobre a natureza do homem desde sempre.
Que a morte inexoravelmente vai chegar todo mundo sabe. A questão é: o que fazer quando já se consegue sentir sua ameaça pairando no horizonte. O documentário “A Partida Final”, dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman, parte de uma decisão formal delicada: ao se filmar o cotidiano de pacientes já no fim da vida, dando ênfase aos cuidados paliativos que recebem para apenas suavizar os efeitos da doença, e não combatê-la, poder-se-ia estar minimizando o fato daquelas pessoas sofrerem. O argumento teria alguma força em se tratando de uma ficção, ou mesmo de um documentário conduzido de maneira inadequadamente mais leve. Entretanto, os depoimentos que Epstein e Friedman extraem são muito racionais, o que não deixa suspeita quanto à lucidez dos entrevistados sobre a pedreira que enfrentam — e que vai se tornar ainda mais dura. A morte é um tema fascinante, por mais polêmicas que se criem ao se fazer tal alegação. Ninguém sabe como é morrer, ninguém tem a mais pálida noção de como deve ser o além-vida — e uma parcela considerável de gente de inumeráveis sociedades e culturas, a despeito de quantos anos tenham ou da quantia de que dispõem no banco, acham que não há nada depois que se morre —, e é justamente isso o que seduz na morte. O homem se atrai pelo que não conhece; por paradoxal que seja, lidamos com a morte desde o berço e a morte continua a ser um dos maiores mistérios a rondar a existência humana. Trabalhos como “A Partida Final” ajudam a tirar uns tantos véus do mito.
A trajetória de Angelina Jolie como diretora é infinitamente menos conhecida que sua carreira de atriz. Contudo, “First They Killed My Father” é o quinto longa-metragem que Jolie dirige, com o mesmo afinco com que se dedica quando diante das câmeras, aliás. O roteiro, construído com atenção nos pormenores mais sutis, se baseia no livro da autora cambojana Loung Ung, sobrevivente da matança perpetrada pelo Khmer Vermelho, o partido comunista do Camboja, no sudeste do país, entre 1975 e 1979. As pessoas foram obrigadas a deixar suas casas e rumar para o centro do Camboja, e em três dias quase 25% da população acabaram exterminados. O enredo se desenrola sob o ponto de vista de Loung, então com cinco anos quando da ascensão dos comunistas ao poder no Camboja. A hecatombe que se abateu sobre o país poderia adquirir uma natureza fantasiosa, romântica, dada a pouca idade da protagonista, mas o apuro com que a pesquisa histórica foi conduzida elimina o risco. A relação de Angelina Jolie com o país vem de longe: foi lá que ela gravou “Lara Croft: Tomb Raider” (2001) e um de seus filhos adotivos é cambojano. Aliás, deve ter contado para Jolie o fato da narrativa ser o relato de uma filha privada da convivência com o pai: ela mesma, por outras razoes, teve conflitos familiares algo relevantes. Ao longo das duas horas e dezesseis minutos de duração do filme, se esmiuçam as horas de trabalho compulsório da família, enquanto Loung se dedicava também a receber treinamento militar. Angelina Jolie não poupou esforços — nem milhões de dólares — a fim de contar a história cruel da passagem dos comunistas pelo governo do Camboja, o que lhe exigiu uma boa dose de criatividade, no intuito de não permitir que a obra resultasse num pastiche intragável de “Apocalypse Now” (1979) misturado a “Sete Anos no Tibete” (1997). Louve-se também sua coragem intelectual ao apontar peremptoriamente os Estados Unidos como copartícipes do genocídio empreendido contra o povo cambojano. “First They Killed My Father” apresenta alguns deslizes, mas Angelina Jolie está no caminho certo.
A relação entre pais e filhos já é conflituosa por natureza. Sobretudo a dada quadra da vida, quando pais querem continuar a exercer influência sobre seus rebentos, que por sua vez anseiam por criar asas e voar alto, para bem longe da vigilância paterna. Tanto pior em se tratando de um pai quase sempre longe de casa devido à carreira de músico e um filho que almeja o mesmo sucesso, mas não se sente estimulado justo por aquele que deveria lhe dar mais força — e nem amado. Cada qual teve sua importância. O pai, o Rei do baião, como um dos maiores sanfoneiros do mundo; o filho, um prodígio, uma alma sensível que transformava em composições disputadas pelos principais intérpretes do país as dores de seu peito que sangrava. Luiz Gonzaga (1912-1989) e Gonzaguinha (1945-1991) tiveram suas trajetórias cruzadas pelo olhar de Breno Silveira, que, hábil, consegue estabelecer um paralelo entre os dois artistas sem carregar nas tintas e, claro, fugindo da solução fácil de expô-los como pai e filho e ponto final. Silveira já havia experimentado êxito semelhante em outra cinebiografia, “2 Filhos de Francisco” (2005), sobre a dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano. Aqui, tal como no filme sobre os músicos goianos, a trama cresce ao preterir a carreira de Gonzagão e Gonzaguinha e se concentrar nas desavenças pessoais entre um pai omisso e seu filho rebelde. Destaquem-se as atuações mediúnicas de Chambinho do Acordeon e Julio Andrade, excelentes, e muito parecidos com seus personagens, ainda que o intérprete de Gonzaguinha, um dos melhores atores da sua geração, roube a cena em incontáveis momentos ao longo da história, mesmo quando não divide o plano com ninguém. Não é necessário ser fã nem do músico regional nem do artista pop para entender a trama de “Gonzaga — De Pai pra Filho” e ficar vidrado: por meio da ótima história, o filme serve de registro de um tempo e de duas figuras de relevo inestimável para a cultura nacional.