Desde que a humanidade começou a sofrer com os efeitos do surgimento da pandemia de covid-19, o tema da suposta extinção do gênero humano voltou à baila com força renovada. O homem, coitado, segue errando pelo mundo, uns piores, outros em situação um pouco menos crítica, a despeito da praga mundial que ainda não deu refresco — principalmente aos países cujos índices de desenvolvimento não saem do lugar há décadas —, buscando a tão humana (e necessária) esperança. O assunto talvez seja o que mais gera controvérsia entre os mais variados públicos. Há os darwinistas que dizem que o fim do mundo é uma questão de tempo, porque o homem, tão acomodado se tornou em meio a tanta mordomia tecnológica que perdeu a capacidade de se adaptar a possíveis mudanças mais drásticas; há os darwinistas para quem Charles Darwin (1809-1882) continua Charles Darwin, isto é, a doutrina do evolucionismo segue incólume e continua a valer, talvez ainda mais do que quando defendida pelo naturalista que a difundiu: o homo sapiens nunca há de perder o caráter de se modificar segundo as circunstâncias. Se tomarmos o ponto de vista da religião, a partir do livro bíblico do “Apocalipse”, aí a conversa vai ainda mais longe. Defensores de uma leitura literal desse trecho das Escrituras apregoam que os sinais do fim de tudo já são visíveis há algum tempo, enquanto os mais moderados, que não raro se alinham também à ciência, clamam por um pouco de bom senso e cuidado ao se abordar a questão. E esse bafafá todo, claro, sempre respinga nas manifestações artísticas do homem ao longo de sua história – no cinema, então, nem se fala. A Bula hoje fez a seleção de seis filmes que lidam com a polêmica do desfecho catastrófico do ser humano sob os panoramas mais diversos. Na distopia “Mad Max: Estrada da Fúria” (2015), do diretor George Miller, há um mundo que caminha, ou melhor, corre para o caos; já em “Gravidade” (2013), de Alfonso Cuarón, os personagens flutuam de maneira tão suave perdidos na imensidão do nada do universo que a gente até pensa que o se acabar de tudo pode ser uma coisa doce… Os filmes, todos no catálogo da Netflix, se apresentam do mais novo para o mais antigo, sem quaisquer outros critérios. Será que o mundo vai mesmo se findar algum dia? E se anunciarem e garantirem que o mundo vai mesmo se acabar e… nada?
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Passadas três décadas e meia, vem à luz a continuação da história sobre um policial que caçava androides em Los Angeles. O original, lançado em 1982, passava-se em 2019. O futuro já é passado, mas a saga resistiu. Dessa vez, a trama se desenrola em 2049 e a tarefa coube a K, um novo blade runner, que não caça androides, apenas os “aposenta”. Num amanhã ainda menos promissor, os replicantes se tornaram mais saidinhos e inspiram o medo na população e a fúria das autoridades. O trabalho de K fica um tanto mais difícil devido à descoberta de uma caixa na qual está o mote do novo “Blade Runner”. Uma androide gera uma filha, cujo pai é um homem de carne e osso. Um milagre, portanto. O diretor Denis Villeneuve aceitou o desafio de dar sequência à história, que decerto não para por aí, por temer que outra pessoa não desse ao filme o tratamento que ele merecia. Foi o diretor certo para o filme certo: “Blade Runner 2049” é fiel à ideia que lhe deu azo, sem, no entanto, ter ficado com cara de um simples pastiche do original. Villeneuve conseguiu, a partir de um filme-conceito amplamente conhecido e cultuado, imprimir sua assinatura e sua visão de mundo. Clássico com uma genealogia à sua altura.

Extraterrestres descem a diversos pontos da Terra sem dizer exatamente o que pretendem, mas com propósitos nada altruístas. É aí que entra a linguista Louise Banks (Amy Adams), desafiada a decifrar as mensagens muito sutis — e, se verá depois, ameaçadoras — dos alienígenas. Em “A Chegada”, um suspense psicológico não muito distante da ficção científica que o consagrou, o franco-canadense Denis Villeneuve imprime sua marca com uma produção muito bem cuidada, elogiada pela crítica, mas preterida pelo público por ser um belo enredo, mas cabeça demais. Se você não tiver medo de filmes que apresentam temas a princípio recorrentes, mas com uma abordagem inteiramente sofisticada e original, não deixe de assistir a essa joia rara do bom sci-fi.

A intenção de se voltar à trilogia “Mad Max” já vinha desde o fim das filmagens da história original, nos anos 1980. O diretor George Miller e o astro Mel Gibson já acertavam os ponteiros quanto à produção da quarta parte da sequência, mas dificuldades de ordem burocrática atrasaram o projeto e Gibson foi cuidar da vida. Tom Hardy assumiu o papel do protagonista, a despeito de toda a desconfiança — e da torcida contra — e o resto é história: o desempenho memorável de Mel Gibson chegou a se constituir numa sombra sobre o novo líder do elenco, mas o novato se saiu melhor que a encomenda. O público aprovou e “Mad Max: Estrada da Fúria” é considerado um dos melhores da franquia. Aqui, Max, capturado, vira uma espécie de hospedeiro, fornecendo sangue para soldados batidos na guerra. Immortan Joe, chefe da comunidade local, subjuga a população por reservar em seu poder a maior parte da água de que dispõem. Max acaba servindo de bucha de canhão na sanha de Immortan Joe por manter seu domínio de escravos com mãos de ferro. Furiosa, uma das cativas que servia de ama-de-leite aos filhos da revolução, escapa e é aí que a história pega fogo. De uma fragilidade apenas aparente, Furiosa dá um colorido todo especial à trama ao se aliar a Max — e a química entre Charlize Theron e Tom Hardy é, decerto, uma das grandes responsáveis pela grandeza do filme, que, embora tenha levado 30 anos para sair do papel, veio à luz no momento preciso, pelas mãos do homem exato. George Miller parece ter guardado toda a sua verve para “Mad Max: Estrada da Fúria”, uma prova de que um filme, para ser bom, muitas vezes só precisa de um diretor talentoso. E talento George Miller tem de sobra.

Como seria um mundo em que máquinas ficassem tão perfeitas a ponto de confundir o homem? Como se daria a vida a partir do momento em que percebêssemos que organismos artificiais passaram a ser tão humanos quanto nós — no que temos de pior, inclusive? O enredo de “Ex Machina” suscita essas e tantas outras perguntas, ainda que não faça a menor questão de fornecer as respostas. Um excêntrico milionário, dono de uma empresa que se dedica ao aprimoramento de dispositivos de inteligência artificial, seleciona um funcionário talentoso a fim de realizar testes para lançar um novo equipamento: um autômato com formas de mulher, capaz de sentir como um ser humano. Numa partida de xadrez, dá-se uma disputa quanto a provar quem seria o mais intelectualmente bem-dotado, se a robô, o empregado ou o patrão, e ainda mais do que isso: eles anseiam por descobrir possíveis defeitos uns dos outros. A favorita, claro, é a máquina que, além de não se abater por nenhuma espécie de pressão, conta com a vantagem de saber os pontos fracos dos outros dois. A alegoria do jogo de xadrez não é à toa: por meio do xadrez, um jogo que exige profunda capacidade analítica, o diretor Alex Garland propõe uma reflexão sobre os enfrentamentos entre as categorias mais distintas entre si — se concentrando no conflito de classes marxista, relido à luz do século 21 com a inclusão do componente robótico —, deixando o público livre para empenhar sua torcida a quem mais o apetecer, sabendo que ninguém ali é propriamente ingênuo. Mesmo a figura da robô, que a priori seria calculista e distante, adquire um ar sensual. Aliás, um dos grandes paradoxos do xadrez é justamente esse: para se vencer, é necessário muito sangue frio, mas igualmente uma boa dose de malícia, a fim de antever os movimentos do adversário. Trata-se de uma metáfora das relações humanas, mesmo quando não envolvem apenas seres humanos: quanto mais racional se pretenda o homem, mais emotivo ele deve se tornar. A natureza humana fagocita a máquina, ao passo que os algoritmos metabolizam o homem.

O orçamento estratosférico de “Gravidade” não deslumbrou Alfonso Cuarón, que perseguiu obstinadamente a perfeição nesse trabalho e por pouco, muito pouco mesmo, não chegou lá. A premissa de astronautas que acabam tendo de encarar perrengues no plano intergaláctico não é exatamente nova — Stanley Kubrick já a havia explorado com largas doses de genialidade em “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968). O pulo do gato aqui é, além do inegável carisma da dupla de protagonistas, um componente mais do que elementar em tempos de viagens espaciais que acontecem com regularidade cada vez maior: a tecnologia. A missão comandada por Matt Kowalsky precisa ser abortada depois de uma falha no procedimento que controla a órbita da espaçonave que divide com a doutora Ryan; numa desesperança crescente, sob risco de vida, o que resta aos dois é estudar novos cenários, a fim de garantir alguma chance, primeiro de sobreviver e, se possível, voltar para casa. Nesta ou noutras dimensões, talvez o destino do homem seja mesmo peregrinar em busca de alguma razão para continuar existindo, sem nenhuma garantia de que vá encontrá-la, tamanha a sua irrelevância frente ao seu próprio mundo, frente aos mundos que passa a soberbamente querer dominar, frente à própria vida, cujos mistérios nunca lhe é dado conhecer.

Um homem, um destino, uma razão para seguir. Esta poderia ser a frase usada para trabalhar a divulgação de “O Livro de Eli”. O homem, o Eli do título é um andarilho perdido numa América destroçada, depois de sucessivos anos de guerras; o destino, reencontrar o lugar de onde foi tirado o livro que carrega consigo. Quanto à razão para continuar sua jornada, bem, o livro foi tudo que lhe restou na vida — e Eli não parece disposto a abdicar de suas convicções, ainda que as circunstâncias não sejam das melhores. Em falando nisso, por óbvio ele se depara com inúmeros tipos que tentam subjugá-lo e detê-lo em seu propósito. O protagonista responde à altura, brandindo a única arma com que pode contar, um facão afiado com esmero, mas parece confiar demais em seu destemor. O medo serve para o homem como um sistema de freios morais: quanto mais se teme alguma represália, mais se evita passar por cima do estabelecido, do sistema. O caráter antiutópico da história é digno de nota ao sugerir um mundo em que o desprezo por princípios éticos mais do que desejável, é obrigatório. Todos nós já vimos esse filme e sabemos como ele acaba.