A necessidade de deixar o mundo como o conhecemos e embarcar rumo a outra realidade, em que as circunstâncias mais absurdas são o que pode haver de mais corriqueiro, sempre foi uma constante na vida do ser humano. A fim de continuar produtivo, de quando em quando o homem precisa largar tudo, abandonar seu próprio corpo e ir fundo no mais obscuro de si mesmo. Sonhar faz parte da vida, e cada pessoa encontra suas maneiras de dar vazão a suas fantasias. Ao longo dos séculos, a arte sempre se pautou pelo desejo e pela premência de extrair da natureza humana sua capacidade de enxergar o que não é evidente. Na literatura, o artista que mais se entregou ao propósito de mitigar a dureza da realidade por meio de histórias plenas de enredos oníricos, delirantes, que especulavam acerca das deturpações do caráter, talvez seja Edgar Allan Poe (1809-1849), um gênio dos contos do que se convencionou denominar terror, mas não só. As narrativas de Allan Poe se tornaram célebres não exatamente por seu aspecto grotesco, mas por terem o poder de mostrar ao leitor quão baixo pode descer uma pessoa comum em dadas ocasiões. É claro que as névoas da existência também foram captadas à perfeição pelos grandes de outras cercanias, a exemplo do pintor Edvard Munch (1863-1944), autor da famosa tela O Grito, que registra da maneira mais perturbadora o desespero de um homem, quase um espectro, com a boca escancarada sob um céu de fim de tarde, um retrato literal da melancolia. No cinema, a conversa vai longe. Hitchcock, Bergman, Polanski, todos beberam nem que seja um golinho — ainda que nunca tenham admitido com todas as letras — de Allan Poe. A produção de filmes que fundem a cabeça da gente nunca arrefeceu (felizmente), pelo contrário: quanto mais a gente vive, mais se torna dependente das loucuras dos diretores. A lista da Bula de hoje tem cinco histórias, todas na Netflix, e algumas estreando neste fim de semana, que prometem. Que tal começarmos do começo? “Rua do Medo: 1666” (2021), de Leigh Janiak, última parte da trilogia e que ainda está fervendo, relata a angústia da população de uma cidadezinha, há séculos subjugada pelos desmandos de uma bruxa, e finalmente junta alguns fios que foram se soltando ao longo da sequência. Já “Monstro” (2021), de Anthony Mandler, não é propriamente terror, mas é horror, e deixa a gente estupefato do mesmo jeito — quem sabe até mais — ao mostrar o empenho de uma advogada em provar a inocência de seu cliente, um rapaz negro. Os títulos seguem apenas a ordem contracronológica, do lançado primeiro para o mais antigo — e o critério alfabético, no caso de empate. Se você já tinha compromisso para este fim de semana, acho que vai ter de desmarcar…
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Muitas vezes é uma tarefa inglória apreender a atmosfera de um filme se não estamos inseridos na conjuntura social de onde foi feito. O brasileiro e o indiano são povos com muitos pontos de contato entre si, mas na Índia, as tradições, sem sombra de dúvida, têm muito mais peso. É o que se denota em “Beleza Avassaladora”, do diretor Vinil Mathew, cujo enredo, baseado no suposto episódio de adultério de uma mulher contra seu marido, apresenta situações as mais inadmissíveis, seja qual for o pressuposto que se tome. Nunca é possível se medir com exatidão as consequências de uma conduta desatinada, e tanto pior se pautada por meras suposições. A fim de garantir que sua honra permaneça imaculada, Rishu se entrega a seus instintos mais pérfidos a fim de mostrar à mulher, Rani, a abjeção do comportamento que ele acredita que a esposa tem mantido. Aqui, trata-se da possibilidade de um caso de traição, mas o buraco é muito mais fundo. Ao se julgar no direito de submeter a cônjuge aos castigos físicos mais austeros, o personagem transmite uma mensagem: cada um tem de conhecer o seu lugar, aceitá-lo e ali permanecer, como se tudo aquilo fosse um dado da natureza, imutável, ou, argumento ainda mais desumano, a vontade divina. E ninguém com mais crédito para discorrer sobre discriminação como política de estado, como modelo de tradição a manter determinados indivíduos eternamente congelados, incapazes de dar uma guinada na própria vida que um hindu, haja visto que o sistema de castas segue sem qualquer abalo no país desde sempre. É triste ser mulher na Índia.

Metalinguagem é pouco ao se falar de “Um Clássico Filme de Terror”, a começar do próprio nome da fita, dirigida a quatro mãos por Roberto de Feo e Paolo Strippoli. A dupla abusa de quase todos os clichês do gênero ao contar uma história grotesca, e não se dando por satisfeita, ainda mete a máfia no meio. Deu certo? É inegável que se trata de profissionais bem-intencionados, aplicados, que conduzem uma trama que vai apresentando ao longo de sua hora e meia elementos muito familiares ao público. É evidente a inspiração dos diretores em filmes icônicos do horror movie show, a exemplo de “O Massacre da Serra Elétrica” (1974), de Tobe Hooper, ao mostrar o expediente de vilões encapuzados que arrancam língua, olhos e orelhas de suas vítimas, não com uma serra elétrica, claro, mas com o auxílio de uma machadinha. Tudo leva a crer que se está diante de uma seita voltada a cultos demoníacos, mas qualquer conclusão antes de se chegar a, pelo menos, meio filme é precipitada. A heroína, Elisa, toma assento num furgão que leva mais quatro desconhecidos, incluindo o motorista, que cadastrou o veículo num aplicativo para transporte de passageiros. A personagem ruma para o sul da Itália, a fim de encontrar a mãe, que vai encaminhá-la a uma clínica que realiza abortos — informação que resta completamente perdida no roteiro, bem como a menção curiosa a Osso, Mastrosso e Carcagnosso, os fundadores da máfia, segundo a tradição calabresa. A dado momento da viagem, o motorista, meio a contragosto, concorda em ceder o volante a uma das pessoas que transporta, mas a ideia logo se revela malfadada: ao desviar de um animal já morto na pista, ele perde o controle da caminhonete, bate numa árvore e se fere com gravidade. Tem a sorte de contar com um médico na turma e recebe os primeiros socorros, mas o que vai se ver a partir de então é um desdobramento de situações esdrúxulas, como a de, misteriosamente, terem ido parar diante da casa em que acontecem os rituais macabros. No final, esse, sim, deveras metalinguístico, chega-se à conclusão de que não se pode fazer cinema sem sangue.

Os admiradores de franquias de terror decerto constituem um dos segmentos mais xiitas da indústria cultural. Cheios de melindres, não toleram que o diretor vá mudando a narrativa a seu bel-prazer, afinal personagens merecem respeito. Fiéis a seus ídolos, contudo, esses nerds assumidos não roem a corda no primeiro solavanco do barco — e nem no último. A parte derradeira da trilogia “Rua do Medo” figura na categoria de filmes que captam o desejo de seu público por novas sensações, sem, no entanto, separar o fruto mais tenro da raiz. Aqui, a protagonista Deena viaja para o século XVII a fim de desvendar o porquê de Shadyside nunca se livrar do anátema de cidade amaldiçoada. Para isso, mergulha fundo na mente diabólica de Sarah Fier, de onde tira alguma ideia capaz de reverter o feitiço. O que ela não pressentia é que Shadyside tem muito mais inimigos que uma obscura bruxa. A diretora Leigh Janiak se aproveita da (última) deixa alegórica de “1666” para se aprofundar em tópicos de cunho social relevantes em qualquer civilização, seja há mais de trezentos anos, seja em pleno 2021, a exemplo de homofobia, misoginia e fundamentalismo religioso, sem forçar a barra em momento algum. Não é pouco. E por falar em leveza, sequer as passagens de enfrentamento entre os jovens moradores de Shadyside e os guerreiros seculares de Sarah Fier são assim tão violentas. Obedecendo uma coreografia friamente elaborada, os combates são sangrentos, mas conduzidos de modo a entreter antes de qualquer outra coisa. Com tantas situações inusitadas, reviravoltas que explodem de uma vez na tela e tipos os mais inverídicos, filmes de terror também têm sua porção cômica. E quando é de propósito ninguém fica traumatizado no final.

A sutil diferença entre terror e horror que se estabelece no cinema é flagrante no trabalho de estreia do diretor Anthony Mandler, responsável pelo registro de clipes de estrelas pop como Rihanna, Beyoncé, Taylor Swift e Shakira. Em “Monstro”, o título leva o espectador mais apressado a crer que o enredo se refira a uma narrativa fantasiosa repleta das criaturas bizarras que todos conhecemos. Bem, há seres monstruosos aqui, mas são todos de carne e osso — e podemos cruzar com eles a qualquer momento. No roteiro, adaptado da biografia homônima de Walter Dean Myers, o protagonista chama-se Steve Harmon, um garoto negro de 17 anos que mora no Harlem, subúrbio barra-pesada de Nova Iorque. Steve não tem nada a ver com os demais rapazes da vizinhança: é um estudante aplicado de um colégio de elite em outro bairro, tem a carreira de cineasta como seu objetivo maior e vive no seio de uma família unida que o ama. Ao fazer um favor para a mãe e ir até a mercearia perto de casa, acaba sendo implicado num roubo violento, que resulta na morte do dono da loja. Steve é preso em flagrante e imediatamente encaminhado a uma penitenciária de segurança máxima, onde permanece aguardando julgamento. Sua vida, como não poderia deixar de ser, é tomada por uma espécie de torvelinho em que quanto mais tenta se desvencilhar de todas as frágeis acusações a que é confrontado, mais é retido para o centro do caos de que sua vida parece que não vai sair. Relato o seu tanto furioso — mas também pontilhado de argumentos burilados ao estado da arte – contra uma justiça completamente viciada, que se deixaria levar pela voz rouca das ruas ao julgar alguém com base em indícios que não resistem a uma análise fria das circunstâncias e, por óbvio, racista, “Monstro” centra fogo na atuação da escrupulosa advogada do personagem principal, que desde o início acredita na versão de seu cliente e, dessa forma, se esmera em defendê-lo, convicta de que, ao cabo de toda aquela tortura, Steve há de receber um veredicto de fato justo, muito mais convicta do que o próprio Steve, aliás. Uma direção que opta por um tom propositalmente confessional, aliada a atuações formidáveis e aspectos de natureza técnica que se revelam essenciais — como o pop-up da câmera nos diversos personagens enquanto o julgamento do protagonista avança —, fazem de “Monstro” um filme de autor, um filme de formação, um filme indispensável. A divulgação massiva de produções como essa nunca resta debalde: são necessários menos de cem minutos para se ter uma visão renovada acerca da vida.

Depois de anos relegados ao mero culto de uns poucos cinéfilos mais antenados, os filmes de horror sem monstros fantásticos vêm ganhando visibilidade outra vez. Devido à pletora de produções com orçamentos milionários, diretamente proporcionais à quantidade de seres que habitam outros mundos retratados com assustadora precisão em seus detalhes mínimos, o grande público está voltando às boas com os thrillers psicológicos. O confessadamente feminista “Rust Creek”, da diretora Jennifer McGowan, deu um merecido chega pra lá na marmanjada da concorrência, ao falar de empoderamento feminino, estupro, provincianismo e tráfico de drogas. Aqui não há espaço para assassinos em série espreitando a próxima vítima, sangue esguichando de jugulares, vísceras arrancadas depois de um ritual satânico. Não que Jen não seja capaz. A questão para a diretora é a importância disso frente a tantos assuntos deixados de lado e sobre os quais ela pode — e sabe — falar tão bem. A história se passa à luz do dia, numa cidadezinha rural do Kentucky, gradualmente dominada pela presença do comércio de opioides. É para onde vai Sawyer, universitária que persegue uma boa oportunidade de trabalho há algum tempo. Um erro no percurso a leva para o coração de uma floresta, cenário ainda mais hostil devido ao rigor do inverno. Sawyer fica completamente ilhada, à mercê de bandidos que desejam violentá-la. Mas a moça não é tão indefesa quanto deixa parecer. Em “Rust Creek”, o terror psicológico junta o medo com a vontade de ter medo numa vertente até então muito pouco explorada do subgênero. Jen McGowan é uma adepta ferrenha desse tipo de narrativa e, portanto, se pode deduzir que outras produções assim venham à luz pelas mãos da diretora. Uma franquia com sua assinatura sensível e inteligente não seria má ideia.