O homem segue seu caminho, topando com uma ou outra pedra, caindo, se machucando, tentando se levantar. Quando finalmente consegue, retoma a estrada, mas a vida sempre prepara uma surpresa na primeira curva. É da natureza da vida as suas muitas — e, claro, inesperadas — reviravoltas. À medida que ganhamos experiência, que percebemos que determinados eventos se sucedem com alguma constância e previsibilidade, conseguimos esboçar a reação desejada e, no melhor dos cenários, evitar a causa daquelas circunstâncias. Mas e quando tudo é muito mais nebuloso do que se apresenta? As narrativas com uma espécie de realidade líquida, em que nada se constitui da forma como se compõe na essência, geralmente vêm à tona por meio da mente de personagens cuja índole já pende para o incomum, para o irregular, para o anormal, desencadeando os diversos anticlímax da história em subtramas plenas de obsessão e psicopatologia. Ao se apropriarem de componentes típicos do mistério, da paranoia e do drama, condimentados com uma mancheia generosa de ação, os thrillers psicológicos continuam a figurar na preferência do público, seja qual for o critério que se admita, se por faixa etária, escolaridade ou poder aquisitivo. A gente aqui na Bula comprova a frieza das estatísticas sempre que divulga nossas famosas listas com filmes cujos enredos dão aquela pirada, de leve ou pra valer, mas sempre calculada: vocês (e a concorrência) adoram! Clássicos do gênero permanecem soberanos no coração do espectador, mas cedem algum espaço para quem vai conseguindo cavar seu lugarzinho ao sol. É o caso de “Onde os Fracos não Têm Vez” (2007), dirigido pelos irmãos Ethan e Joel Coen, cuja trama todo mundo já sabe de cor — os mais fanáticos têm até os diálogos na ponta da língua —, disponível no canal pago Paramount+ — é possível testar o serviço de graça por sete dias. “Joias Brutas” (2019), um dos caçulinhas da turma — e injustamente desconhecido —, também de uma dupla de irmãos, Ben e Josh Safdie, traz a história de um joalheiro metido a esperto que apronta a maior fuzarca por exercer seu ofício de uma maneira, bem, vejam e me digam. Todos os títulos estão no catálogo do Amazon Prime Video e da Netflix, à exceção da produção dos irmãos Coen, que espera a sua milésima apreciação no Paramount+. É muito filme bom para uma plataforma só, né? Aperte o cinto e aproveite essa montanha-russa no conforto do seu sofá.

O Meio-Oeste americano até parece o cenário perfeito para as narrativas de desintegração moral, violência, tragédia, caos, com seus personagens cheios de uma pretensa sabedoria cósmica advinda da mãe natureza, que na verdade, não quer perfilhar ninguém, muito menos o homem, que com o avançar dos anos tem se empenhado a degradá-la com mais e mais requinte. É o que se apreende das produções dos veteranos irmãos Coen e mais recentemente de um diretor que (ainda) passa ao largo do público e boa parte da crítica, mas cujo trabalho sem dúvida merece ser conhecido e admirado. Em “O Diabo de Cada Dia”, Antonio Campos se fixa nessa premissa a fim de contar uma história que degenera em caminhos tortuosos para um veterano da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o filho dele, um reverendo implicado em casos de abuso sexual e um casal de assassinos em série nos anos 1950. Donald Ray Pollock, o próprio autor do livro a partir do qual o roteiro se desenrola, serve de narrador à trama. Pollock, um ex-operário e ex-motorista de caminhão em Knockemstiff, Ohio, deixou as funções que desempenhava aos cinquenta anos, quando conseguiu publicar “O Mal Nosso de Cada Dia”, em 2011. Campos sabe onde se meteu. Donald Ray Pollock está para Antonio Campos como Cormac McCarthy para os irmãos Coen: os três diretores bebem da fonte dos romancistas, cujas obras tratam da falta de rumo do homem, cada vez mais perdido e cada vez mais selvagem. Pode-se tentar desqualificar Campos sob o argumento de ser ele um mero adaptador de uma história cuja profundidade não alcança. Grosso engano. Seu cuidado na escolha dos atores, muito bem ambientados na aridez — metafórica e real — do coração da América (para não mencionar outra vez a assertividade do livro em que seu filme se baseia), são predicados justos o bastante quanto a capacitá-lo como um diretor, no mínimo, aplicado. Antonio Campos tem muita bala no tambor.

É possível estabelecer algum paradigma que enuncie que da relação familiar surjam grandes filmes? Tomando-se por exemplo Ethan e Joel Coen e mais recentemente Ben e Josh Safdie, pode-se fazer tal apontamento sem medo. Com o subestimado (e bota subestimado nisso!) “Joias Brutas”, os irmãos Safdie cristalizam a potência de seu talento, já aprofundada em “Bom Comportamento” (2017). Aqui, eles mostram que não têm nenhum medo do queixo pra cima na cara dos críticos e que trabalham duro a fim de alcançar um resultado digno da excelência pela qual o público anseia sempre. O personagem principal, Howard Ratner — sujeito ensaboado, dado a trambiques, que administra seu negócio, uma joalheria meio megalomaníaca, sem muito capricho (e nem muito apreço às leis, diga-se) —, parece na marca do pênalti num jogo sem goleiro. Ratner conseguiu para o seu plantel uma gema rara, ainda em estado natural, contrabandeada da Etiópia no ventre de um atum congelado. Muita informação para uma simples fita de suspense? Que nada! Tudo se encaixa à perfeição conforme a trama central se desenrola, mostrando um Ratner mais e mais acuado pelas circunstâncias que seu procedimento criminoso gera, a tensão exata de que um bom filme do gênero não pode prescindir. Adam Sandler apresenta um desempenho que beira o primoroso, saindo completamente da pele do comediante histriônico, e convence, mesmo não abandonando de todo os costumeiros tiques adquiridos de anos e anos nos besteiróis que lhe garantiram fortuna, mas depõem contra o currículo de qualquer ator que se preze. Num filme tão invulgar, sobra espaço até para um astro da NBA abiscoitar uns instantes de glória também no cinema. Kevin Garrett, igualmente muito persuasivo no “papel” de um novo-rico ávido por um pouco de sofisticação, dá ainda mais arrojo à história, corajosa e bem-sucedida empreitada de dois diretores que partilham o dom de tornar um filme tão valioso quanto quiserem.

Um organismo debilitado dá margem a ataques de invasores oportunistas de toda ordem — e assim também acontece com as relações. O casal de protagonistas de “The Gift” parecia feliz, mas não resiste à entrada em cena de Gordo, um antigo colega de Simon, o marido. Sua mulher, Robyn, vai com a cara dele, malgrado o desconforto de Simon. Gordo logo se revela de fato um sujeito inconveniente ao frequentar a casa de Simon e Robyn sem prévio aviso, como se também fizesse parte da daquela família ainda por se constituir, frágil depois de alguns desencontros. Quanto mais a figura espaçosa de Gordo se avoluma no ambiente — e se dissemina por toda a parte, devido aos presentes que envia aos novos amigos, a quem devota um afeto que os asfixia aos poucos —, mais o casamento de Simon e Robyn se deteriora, até que uma situação de irremediável descontrole termina por se instalar. Tudo no filme é incerto, a começar do absurdo do plot: ninguém pode ser obrigado a deixar de mandar presentes a um amigo, ou seria muito difícil de se conseguir tal feito — legalmente, pelo menos. Enquanto Simon e Robyn vão tentando descobrir uma maneira de afugentar o invasor de seu paraíso até então inabalável, é intelectualmente estimulante para quem assiste especular sobre as verdadeiras pretensões de Gordo. Ele seria só um homem um tanto descompensado, talvez pela própria solidão, ou haveria alguma coisa de sinistro por trás do caráter bonachão de sua aparência? A verdade é que Simon e Robyn estão entregues a Gordo, tanto que são incapazes de dar um basta a seus excessos e, pior, parecem gostar de ser subjugados, como se Gordo os libertasse, enfim, de um matrimônio já sem qualquer chance de felicidade. Fica cada vez mais evidente a insignificância de Robyn na vida de Simon e o final tem algo de surpreendente. Ao se encerrar em si mesmo, um casamento começa a se extinguir de fato. E não há nada que desculpe a negligência afetiva que certamente advém disso.

Casais desfeitos e suas chagas maltratadas e ainda sangrando, um argumento precioso ao cinema desde pelo menos a força do clássico “…E O Vento Levou” (1939). “The Invitation”, da diretora Karyn Kusama, não contradiz essa premissa ao levar à tela a história de um ex-casal que se reencontra em circunstâncias nada amistosas — por mais que o cenário dê a entender o oposto. Ainda que eles mesmos não acreditem, Will e Eden já foram um casal — e se amaram. Contudo, a morte de um filho tem o condão de mudar tudo, mesmo num casamento feliz e é o que fatalmente ocorre. Eden, assombrada pelo desespero e tomada pela tristeza, vai embora sem dar explicações. Dois anos mais tarde, ela reaparece, casada com David, o homem que conheceu em uma seita religiosa. Eden convida o ex-marido para um jantar que oferecerá para reencontrar amigos em comum aos dois. Tudo na reunião tem um quê de grotesco, de farsa, ao ponto de Will começar a se sentir ameaçado pelos eventos insanos de que sem querer passa a tomar parte. Pelo rigor com que é conduzida, a trama não abre o flanco para interpretações delirantes ou ocasionais subterfúgios quanto ao desfecho do longa. Tudo ali é exatamente o que aparenta.

Amy Dunne simplesmente some no dia do seu quinto aniversário de casamento, deixando o marido Nick em desespero. Ele vai se descontrolando cada vez mais, abusa das mentiras que conta para a polícia a respeito da vida com a cônjuge e acaba se tornando o principal suspeito pelo desaparecimento. Sua irmã gêmea, Margo, se compadece dele e o ajuda. Enquanto tenta provar sua inocência, Nick procura descobrir o que de fato aconteceu com Amy. “Gone Girl” corresponde às expectativas de um grande trabalho de David Fincher e, de lambuja, ainda fomenta uma discussão interessante sobre a vida a dois ao apresentar ao público um homem e uma mulher que já se amaram algum dia, mas se transformaram nas pessoas que outrora criticavam: o marido frio e a mulher neurótica.

Uma trama muito acima da média, um bom elenco, a fotografia perfeita e… voilà!, se dá a mágica. O detetive aparentemente clichê de Leonardo DiCaprio se vê no meio de uma investigação nada convencional em que ele próprio adquire papel de destaque. O personagem de DiCaprio precisará esquecer qualquer estereótipo do detetive de filme ambientado nos anos 1950 se quiser desvendar o caso do paciente assassinado num sombrio manicômio presidiário no meio do mar: deverá também ele se imiscuir na história e se tornar um dos lunáticos ali encerrados – ou pelo menos se aproximar o quanto puder disso. A ilha não tem nada de paradisíaca; sua possível natureza de idílio fora totalmente deformada, à guisa de derradeiro refúgio para a loucura criminosa que habita o coração de determinados homens. Nesse Éden demoníaco tudo fica ainda pior quando a cólera de um furacão deixa o lugar incomunicável, vários internos fogem e o caos se instala de vez.

A categoria de Melhor Filme monopolizava todas as atenções no Oscar 2010, numa disputa acirrada entre “Avatar”, de James Cameron, e “Guerra ao Terror”, de Kathryn Bigelow — a história da captura de Osama bin Laden no Afeganistão levou a melhor, bem como a própria Kathryn Bigelow sobre o ex-marido James Cameron, ganhadora do prêmio de Melhor Diretor. O que importava mesmo era a decisão da Academia acerca do destino da estatueta de Melhor Filme Estrangeiro. O belíssimo “A Fita Branca”, de Michael Haneke, que já vencera o Festival de Cannes, era mais que favorito: era aclamado. O argentino “O Segredo dos Seus Olhos”, que parecia passar ao largo, dada a campanha de divulgação muito mais sóbria, surpreendeu o júri. Foi o segundo filme daquele país a alcançar o olimpo do cinema, 25 anos depois da proeza de “A História Oficial”, de Luis Puenzo. Ao se valer do conceito do tempo elástico, a trama de Juan José Campanella expõe as consequências de um crime na vida do oficial de justiça que se empenhou no caso passados 25 anos. Aposentado, Benjamín Esposito volta a se interessar pela história, para ele particularmente desconfortável por não ter tido desfecho. O mistério que encerra o crime o motiva a escrever um livro sobre o assunto, baseado em suas memórias. Questões irresolutas do passado se impõem no cotidiano dos personagens, como também se dá em obras de Pedro Almodóvar, a exemplo de “Tudo sobre Minha Mãe” e “Abraços Partidos” — de maneira muito mais introspectiva, claro. O longa se destaca por unir eventos que podem parecer soltos na narrativa, compondo um mosaico inteligível apenas quando visto por inteiro. Nesse filme, como o título dá a pista, os olhares são vitais para não se perder nada. “O Segredo dos seus Olhos” é um filme sobre o que não se deixa ver.

Llewelyn Moss realiza uma caçada a cervos nos arredores da fronteira dos Estados Unidos com o México. Teria motivos para desânimo, já que não consegue acertar um alvo, até que se depara com uma mala, misteriosamente deixada por ali. Ao abri-la, ele verifica que se trata de dinheiro e, claro, a leva consigo. A quantia seria usada para negociações escusas e, não demora muito, Anton Chigurh, um matador profissional, começa a persegui-lo implacavelmente. Chigurh vai promovendo um banho de sangue por onde passa, sem deixar vestígios, graças à sua perícia e a uma arma de gás comprimido que faz com que o projétil volte para o cano depois de disparado. O xerife se desdobra em meio a todo esse caos, incumbido de prender Moss e agora também Chigurh. O faroeste, gênero legitimamente americano, parece ser a forma ideal que os diretores escolhem quando se prontificam a contar uma história pródiga de desencontros, flagrantes conflitos éticos e mocinhos e bandidos que trocam de lugar sem a menor cerimônia. Desde que o mundo começou a girar no infinito, vilões surrupiam a afeição do público, sem mover uma palha, por mais abjetos que possam ser. Em “Onde os Fracos não Têm Vez” não é diferente. Aqui, o herói, completamente desmoralizado, perde sua aura mítica, o que dá vazão ao pensamento niilista de que não adianta resistir porque no fim o mal sempre sai vencedor.

Patrick Bateman é um homem jovem, bonito, bem-sucedido e, o principal, rico. Seu cargo de executivo de uma financeira em Wall Street lhe garante prazeres como frequentar restaurantes sofisticados, envergar os ternos mais elegantes, dirigir carrões e viver num verdadeiro palácio. Patrick teria tudo para se considerar feliz, mas leva uma vida vazia e, embora nunca vá admitir, não tem a menor ideia sobre porque vive assim. Numa elaborada crítica sobre as engrenagens movidas pelo dinheiro — sociedade de consumo, indústria automobilística, comércio de bens de luxo e o mercado financeiro —, “American Psycho” apregoa a degeneração a que uma pessoa está sujeita se toma por guia inquestionável de sua vida o êxito por meio da ascensão social. Bateman é um exemplar do cinismo mais fino ao lançar pérolas sobre não se tirar da vida nenhum tipo de lição. Para ele, o homem é um animal como qualquer outro, tentando se valer de expedientes os mais ardilosos a fim de permanecer vivo, sempre ávido por saciar seus apetites, objetivo que nunca alcança dada a sua natureza de querer sempre mais. E é exatamente esse o caso de Bateman. Como já tem tudo, descobre algo inédito em sua lista de anseios: tornar-se um assassino frio e metódico, sem freios morais. Em seus delírios de superioridade, o personagem passa uma descompostura no mendigo que ousa atravessar seu caminho e lhe suplicar por uma esmola. Bateman lhe joga na cara que o pedinte é o único responsável por sua penúria, que ele não tem nada com aquilo e não há qualquer aspecto em comum entre os dois, insinuando que o homem nem seria gente. Por fim, parte para cima do infeliz e o mata a facadas. Bateman é um homem patologicamente solitário, incapaz de se colocar na pele do outro, tanto menos se esse outro não tem sua pele branca, sua educação formal e uma conta bancária fornida como a dele. A diretora Mary Harron alfineta a debilidade por trás da filosofia do estilo de vida americano, em que resta implícita a ideia de que para ser é imprescindível ter. Mas deixa uma mensagem reducionista e equivocada ao sugerir que a maldade de seu personagem principal advenha do ambiente insalubre em que se constituiu.

Vítimas de um ataque brutal, uma mulher morre e seu marido, Leonard, fica com ferimentos graves. Ele consegue sobreviver, mas a violência dos golpes lhe provoca um distúrbio neurológico. Seu cérebro não registra mais fatos recentes e ele esquece por completo de coisas que acabaram de acontecer. Mesmo assim, ele desafia suas limitações, se prontifica a encontrar o assassino de sua mulher e, finalmente, vingá-la. O filme se bifurca em duas narrativas: uma em cores, que expõe os fatos de modo reverso, e outra em preto e branco, sob a forma cronológica comum, explorando a amnésia do protagonista para, no desfecho, ligar as duas e, esclarecer se Leonard matou o homem certo.