Velhinhos aficionados por cinema, o seu tanto rabugentos e completamente avessos a qualquer aproximação, reunidos para avaliar os filmes lançados durante os últimos doze meses. Quem poderia afirmar que isso daria em alguma coisa? Pois deu — e como deu! Passado quase um século, o Oscar reina absoluto quando o assunto são cerimônias de entrega de prêmios, monopolizando as atenções da imprensa e do público desde muito antes de sua exibição e repercutindo bastante mesmo depois da poeira assentada. A Academia nunca foi unanimidade quanto à escolha dos títulos indicados e quando aquele ator que todo mundo esperava levar a estatueta dourada fica chupando dedo, a grita é geral. O Oscar vive desse bafafá também, claro, e a indústria cinematográfica agradece não permitindo que a roda pare de girar. Todos os anos, são produzidas centenas de filmes, nos mais longínquos recantos do globo. Ou seja, são centenas de diretores, de atores, produtores, montadores, técnicos de som, maquiadores. Haja Oscar para todo mundo! A Bula escolheu dez filmes que levaram o caneco mais cobiçado do cinema em alguma categoria ao longo da última década, enredos os mais diversos, os mais impensados, que só mesmo o cinema poderia resgatar de um livro velho e esquecido qualquer ou da própria vida. É o caso de “O Jogo da Imitação” (2014), do diretor Morten Tyldum, sobre um gênio da matemática responsável por desenvolver um método para decodificar mensagens nazistas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado; já “Green Book: O Guia”, de Peter Farrelly, que conquistou o prêmio de Melhor Filme de 2018, traz a história da amizade entre um pianista, negro e sofisticado, e seu motorista e guarda-costas, um adorável brucutu que o protege quando das incursões do patrão por cidades do sul dos Estados Unidos em que negros, ainda que artistas, não eram tolerados, devido à vigência da política de segregação racial nos anos 1960. Os títulos, todos disponíveis no Amazon Prime Video, respeitam apenas o critério da ordem contracronológica e vêm do lançado há menos tempo para o mais antigo. Para quem vai o seu Oscar nessa lista?
Imagens: Divulgação / Reprodução Amazon Prime Video

Em “Era uma Vez em… Hollywood”, Quentin Tarantino declara seu amor ao cinema valendo-se da velha máxima que diz que quem desdenha quer comprar. No filme, o diretor tece loas à fantasia vendida pela indústria cinematográfica e às muitas falhas humanas cometidas ao longo da produção de uma película numa Hollywood cheia de histórias nada edificantes, um enredo que prima por chocar sem querer propor anticlímax ou reviravoltas inesperadas. Ou seja, este não é um filme previsível como pode sugerir o título, nem calculado como muitos de Tarantino, que já merece crédito por desconstruir clichês ao abordar, por exemplo, a complexidade do protagonista Rick Dalton, galã de faroestes e filmes de ação em decadência, sobre quem firma a dicotomia entre o velho ideal masculino e os conflitos interiores de um artista sensível e inseguro.

Como seria viver encerrado num mundo completamente silencioso depois de passar anos convivendo com a pauleira colérica dos shows de metal? Em “O Som do Silêncio”, Ruben, baterista de uma banda de rock pesado, não se imagina longe dos palcos em que se apresenta no circuito underground dos Estados Unidos com a namorada Lou, vocalista e guitarrista do conjunto. Sua vida se resume a isso, está tudo certo assim, mas ao perceber que sua audição não é mais a mesma depois de todo o barulho a que se expôs ao longo da carreira, Ruben se desespera. Ao consultar um médico, tem um diagnóstico pior do que esperava: um dos ouvidos está perdido e no outro só restam 80% da capacidade. Um problema grave e repentino exige solução radical e urgente, e Lou consegue persuadir Ruben a se mudar para uma comunidade em que surdos vivem reunidos como uma família, partilhando suas conquistas e aflições, como qualquer pessoa. Joe, também deficiente auditivo e responsável por supervisionar as atividades do grupo, recebe o músico, mas deixa claro que ali ninguém procura curar-se da surdez, que não há nenhum problema em não conseguir registrar os sons do mundo: a questão é saber se comunicar mesmo sem ouvir. Ruben concorda num primeiro momento, mas vende o trailer em que morava com Lou, que voltou para a casa dos pais, a fim de arranjar o dinheiro necessário para uma cirurgia que realiza o implante de um aparelho que funciona como uma nova cóclea e reverbera as vibrações sonoras outra vez. Ao saber da atitude de Ruben, Joe o expulsa da comunidade. Ruben gastara tudo o que conseguira na operação e não tem onde ficar. Vai procurar Lou, mas os dois sabem que o relacionamento esfriou. Ruben voltou ao mundo, mas o mundo como ele o conhecia já não existe mais.

O choque entre dois mundos, gerando um universo novo. Esse poderia ser o resumo de “Green Book: O Guia”, do diretor Peter Farrelly. Na Nova Iorque dos anos 1960, Tony Vallelonga é segurança do célebre dancing Copacabana, conhecido de “Os Bons Companheiros”. Tony Lip, o bom de lábia, como o chamam os muitos amigos, consegue tudo o que quer com uma conversa, mas sabe usar a força bruta direitinho se necessário. Como o Copacabana vai ficar um tempo fechado e Tony, chefe de uma família numerosa, não pode se dar ao luxo de ficar sem trabalho, aceita servir de chofer e guarda-costas para o refinado Don Shirley, talentoso pianista negro que se prepara para uma turnê no sul dos Estados Unidos. As “habilidades” de Tony serão de grande valia para Shirley, já que ainda vige a política de segregação racial que determina o que cidadãos negros podem ou não fazer e onde devem se hospedar em viagem ao sul, tudo publicado num guia de capa verde. Conforme se conhecem um ao outro, vão se estranhando, mas vão também reconhecendo afinidades. A exemplo de Shirley, Tony não pode se definir como um americano típico, já que é ítalo-descendente e católico; o músico, por sua vez, enxerga no empregado um homem digno, que como ele não tem medo de trabalho e que constituiu uma família unida, feito cujo valor o solitário pianista reconhece. Todo o enredo é costurado por essas passagens, ora sob o ponto de vista do segurança, ora priorizando as opiniões — e preconceitos — de Shirley, que vai se tornando cada vez mais tolerante com Tony à medida que identifica suas próprias fraquezas.

Filmes que retratam a roda-viva do mercado financeiro parecem mesmo ter caído no gosto do espectador, mérito de Martin Scorcese com sua versão para “O Lobo de Wall Street”, justiça se lhe faça. E o diretor Adam McKay parece ter se inspirado no trabalho de Scorsese para compor o seu retrato sobre a crise gerada depois da farra dos empréstimos nunca quitados a fim de financiar a aquisição de moradia para fatias menos endinheiradas da população americana. McKay tem singular destreza quanto a tornar palatável para o grande público no que implicou a confusão do mercado imobiliário dos Estados Unidos na vida do cidadão comum, dando ênfase à falência do american way of life, que tem custado um sacrifício inútil a tanta gente há pelo menos setenta anos. Os protagonistas, investidores inescrupulosos que visam ao lucro (fácil) seja como for, partem da premissa pela qual sempre se pautaram e não veem mal nenhum em continuar garantindo o seu, ainda que boa parte dos demais pereçam. O enredo, bastante original, se vale de saídas interessantes a fim de tornar o assunto mais leve, como ao contar com o depoimento de celebridades a exemplo da atriz Margot Robbie discorrendo sobre cenários específicos da conjuntura econômica.

Uma câmera na mão, uma ideia na cabeça. O lema do cineasta baiano Glauber Rocha (1939-1981) parece ter sido o norte para o diretor Tom McCarthy, que segura as pontas da audiência sem maiores pirotecnias ao narrar uma história tão chocante quanto envolvente. A equipe de repórteres especiais do jornal “Boston Globe”, a Spotlight, chega a passar um ano inteiro se dedicando a um caso, a fim de produzir material profundamente analítico, sobre cuja autenticidade não reste a menor suspeita. No momento, Michael Rezendes, Sacha Pfeiffer e Matty Carroll, liderados pelo editor Walter Robinson, se debruçam sobre um evento particularmente escabroso. Padres de paróquias locais são flagrados em episódios de abuso sexual contra menores, mas nunca sofrem qualquer penitência: a Igreja covardemente os acoberta e apenas os transfere de jurisdição, o que eterniza o problema e faz com que a anomalia se alastre. O público acompanha a saga desses quatro cavaleiros do apocalipse bem de perto. Ao descobrir e apurar os fatos, os personagens explicitam detalhes do expediente jornalístico interditados ao cidadão comum. É como se McCarthy tivesse a intenção de fazer quem assiste se sentir também um pouco repórter, ressaltando a motivação dos profissionais e a importância do tema, tratado de maneira cínica por clérigos hipócritas aliados a autoridades corruptas, que mexem seus pauzinhos para que as denúncias nunca venham à luz. O livro que deu origem ao roteiro ganhou o Pulitzer e a polêmica, afinal, deslanchou, com a interferência do próprio papa João Paulo II (1920-2005), visivelmente escandalizado quando da eclosão mundial da crise.

Alejandro González-Iñárritu deixou o México a fim de perseguir o sonho de se tornar um diretor de prestígio em Hollywood. Conseguiu. Desde que aportou em terras ianques, ele não se cansa de apresentar trabalhos plenos de originalidade sem prescindir do rigor intelectual, característica que se converteu em verdadeira marca sobre sua carreira. Em “Birdman”, resolveu comprar uma briga justa — mas perigosa — ao apontar os problemas de… Hollywood. A frivolidade da indústria cinematográfica, o pouco caso de produtores, a vaidade do elenco, a intransigência de diretores, está tudo lá. O protagonista, ator de sucesso questionável graças à franquia de histórias sobre um super-herói tornado popular, decide mudar de vida e não aceita fazer a quarta produção da sequência. Resultado: Hollywood acabou para ele. Certamente não foi nenhuma coincidência a escolha de Michael Keaton para o papel, ele mesmo ex-intérprete de um personagem — o Batman, no caso — com essas características, e também caído no ostracismo por um longo tempo. Uma ironia muito bem pensada, e louve-se o savoir-vivre de Keaton. Determinado a virar a página de vez, decide se aventurar pela Broadway ao dirigir e estrelar uma peça de teatro – afinal, teatro é coisa de gente que pensa. Acontece que nessa sua nova vida ele vai continuar se deparando com os conflitos de antes, ainda que sob outra roupagem, ao ter de administrar toda a sorte de conflitos do elenco, enquanto pena com um agente que continua tentando extrair algum níquel dele e a filha, que reclama sua afeição. As situações mais disparatadas criadas por Alejandro González-Iñárritu, ora non sense, ora comoventes, conquistam o público e permitem que os atores decolem. Crítica inteligente — sem ser sisuda — sobre um assunto espinhoso (e relevante).

Filão que acerta em cheio o público, cinebiografias nunca são demais e (quase) sempre têm alguma coisa a dizer. Com “O Jogo da Imitação” não é diferente. Ao retratar a vida atribulada de um gênio — como também acontece em “A Teoria de Tudo” —, o filme de Marten Tyldum é um libelo em defesa das liberdades individuais. Se o físico Stephen Hawking (1942-2018) combatia a doença implacável que o consumia com as armas que se lhe foram apresentando ao longo da vida, o matemático Alan Turing (1912-1954) não foi capaz de se desvencilhar do estigma da homossexualidade que passou a pairar sobre sua vida, por maior que fosse seu talento. Considerado um dos pais da informática, Turing desenvolveu um algoritmo capaz de decifrar as mensagens enviadas pela Alemanha nazista de Adolf Hitler quando dos enfrentamentos ao longo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Transposto para um equipamento altamente sofisticado para a época, a equação de Turing foi a responsável por abreviar a guerra e poupar milhões de vidas. Vítima de uma triste ironia — e da sociedade rasteira de seu tempo —, ele não conseguiu poupar a própria vida na medida em que se viu completamente cercado e precisou se submeter a um “tratamento” a fim de sufocar sua natureza. Cada vez mais tomado pelo desalento e arrebatado por uma infelicidade sem remédio, Alan Mathison Turing se mata aos 42 anos, em 1954.

A solidão de Theodore, um escritor já nem tão jovem que mesmo tendo uma esposa não se sente amado, parece que vai ter fim quando ele resolve trocar o sistema operacional de seu computador. “Ela” apresenta um enredo dos mais descabidos da história do cinema, mas só à primeira vista. No decorrer da trama, resta visível o abismo entre Theodore e a mulher, alguns anos mais nova e excessivamente focada nos estudos. Seu chefe é igualmente casado e igualmente infeliz e a vizinha está pronta a também embarcar num romance puramente virtual. Felizmente, o enredo não se funda no argumento fácil do amor nunca poder se realizar em sua plenitude; a genialidade do filme reside na sacada de retratar as mais impensáveis configurações do amor num dos mais belos e originais romances já apresentados pelo cinema.

“Acusado” de filme cabeça, popular “demais”, hermético e bobagens semelhantes, “O Artista” foi, na verdade, alvo de inveja da concorrência — e de quem não tinha bagagem intelectual e sensibilidade o bastante para apreciá-lo, a minoria, felizmente. Para a maior parte do público, o enredo, escrito e dirigido por Michel Hazanavicius, só provoca encantamento. George Valentin, veterano do cinema mudo, é um sujeito extremamente vaidoso que pensa que o espectador se dirige às salas de cinema apenas para ver sua imagem na telona. Com a chegada do áudio, Valentin vai ficando pra escanteio, rejeição agravada pela ascensão de Peppy Miller, jovem atriz que ele apoiara no início da carreira e por quem se apaixonara e cujo sucesso é cada vez mais reconhecido. Inconformado com as novas circunstâncias, se determina a dirigir e estrelar um filme (mudo, é claro) a fim de provar que som e imagem nunca poderiam dar certo no cinema. O tiro sai pela culatra: a audiência esta cada vez mais interessada pelas histórias faladas — e hipnotizada pelo brilho de Peppy.

Muito comentado quando de seu lançamento, o enredo de “O Discurso do Rei” não apresenta nenhuma grande reviravolta e é exatamente o que o título sugere. Prestes a ascender ao trono da Inglaterra, George VI sabe que terá dificuldade em governar se não descobrir um jeito de se livrar da gagueira que o acomete desde os quatro anos. A situação é grave e adquire as dimensões de uma verdadeira tragédia, haja visto o fracasso de todos os tratamentos a que George já se submetera. Chega aos ouvidos de sua mulher, a futura rainha Elizabeth, o nome de Lionel Logue, um fonoaudiólogo que se notabilizara pelos métodos inovadores por meio dos quais lidava com seus pacientes. Logue adapta sua dinâmica de trabalho à vida de quem o procura e percebe que os bloqueios do próximo na linha de sucessão da monarquia se relacionam diretamente à grande responsabilidade que recairá sobre seus ombros a partir do momento em que se tornar rei. Dono de um caráter excessivamente formal e uma personalidade perigosamente discreta graças à educação austera a que fora submetido, o terapeuta exige que o monarca iminente se solte e, para tanto, a primeira medida é manterem uma relação sem escalas hierárquicas e se relacionarem como dois indivíduos quaisquer. George, como seria natural, se opõe, mas a intrepidez delicada de Logue faz com que seu cliente quebre o protocolo – pelo bem da Coroa, que fique claro. Em mais um trabalho no qual empenha toda a grandeza de seu talento, Colin Firth foi quem fez o “O Discurso do Rei” despertar o interesse da Academia na proporção necessária a fim de garantir todas as láureas que recebeu. Quem é rei sempre consegue perpetuar sua majestade.