Um jornalista cuja carreira está totalmente estagnada parte para o Rio de Janeiro em busca de melhores oportunidades de trabalho. Pano rápido. Praia do Leme, outubro de 2019. Gravações de uma série biográfica sobre um dos maiores bandidos a já terem ocupado as páginas de Polícia de todos os jornais, primeiro na Cidade Maravilhosa, depois no país inteiro, graças a particularidades de sua condição: bem-nascido, bonito, filho de policial civil. O que uma e outra coisa têm em comum?
Antes de mais nada, permita-me o leitor o relato em tom abertamente confessional que se vai desenrolar aqui. O jornalista a que se refere o parágrafo anterior sou eu, este vosso humilde servo. Cheguei ao Rio de Janeiro — que considero, sem nenhuma demagogia, de fato uma cidade maravilhosa — em 8 de maio de 2019. Depois de quase década e meia em Brasília, lidando com assessoria de imprensa — quase sempre para políticos, e tudo o que isso implica —, resolvi que era hora de mudar. Estava infeliz na profissão há muito tempo, procrastinava uma mudança de vida que poderia não vir nunca (e tanto pior se não viesse) e havia perdido meu pai há cerca de duas semanas, fustigado por um câncer no cérebro que começara no intestino delgado. Como o homem é insignificante, meu Deus!
Fiz milhões de planos para a minha conversão do planalto para a praia — e todos deram assustadoramente errado. O dinheiro não tardou a acabar; na primeira noite sem um vintém no bolso, dormi na areia fresca de Ipanema, quase fronteira com o Leblon, tendo o céu à guisa de cobertor, um cobertor como que todo esburacado pelo fulgor pálido das estrelas. Esse, a despeito da poesia que extraio de tudo na minha vida, talvez tenha sido um dos piores momentos da minha trajetória. A segunda noite não poderia ser ali outra vez, claro. Eu nunca pensei que fizesse tanto frio numa cidade mundialmente famosa pelo sol, pelo calor, do clima e das relações humanas, mas fazia, especialmente à noite. As temperaturas no Leblon e cercanias podem de fato ser glaciais — e ainda faltava um mês para o inverno! A noite parecia durar mil anos. O frio não dava trégua, mas dormi assim mesmo, vencido pelo cansaço, pela tristeza. Amanheceu, e me senti o mais sortudo dos homens. Suspirei, levantei acampamento e fui à cata de trabalho.
Ainda na praia, cortando as franjas das ondas, me deparei com uma folha de jornal. Eram os Classificados, aquela seção cada vez mais negligenciada, principalmente em tempos de internet, e ainda mais na praia. Quem lê os Classificados na praia?! A publicação era daquele dia, começo de junho de 2019. Parece que a sorte estava virando a meu favor: poderia poupar o dinheiro para tomar uma média com pão na chapa, não no Leblon, nem em Ipanema. Em Copacabana, talvez.
Comecei a vasculhar os anúncios como um cão fila num mato sem coelho, um por um. Ia assinalando com um “X” os que me interessavam — aprendi desde sempre a andar com caneta e um bloco de notas. Um em particular me chamou a atenção. Tratava-se de uma agência de figurantes para novelas e filmes. Eu já havia feito teatro amador em Brasília, um pouco antes de ingressar na faculdade de jornalismo. Subi ao palco da sala Martins Pena, no finado Teatro Nacional (um teatro como aquele, com aquela estrutura, apodrecendo em pleno coração da República, é uma coisa que tem o condão de me deixar verdadeiramente revoltado). Gostei da experiência. Apreciaram meu desempenho. Por que não?
Raspei minhas economias e fiz o cadastro na tal agência. Depois de quatro meses, a fortuna talvez estivesse mesmo sorrindo para mim. Fui selecionado para um trabalho, ou job, como eles dizem. Deveria estar em frente ao restaurante La Fiorentina, no número 458 da avenida Atlântica, às duas da tarde de um dia de outubro — o indulgente leitor há de me fazer a fineza de perdoar a imprecisão das datas; nunca fui bom com números e a premência por sobreviver ao longo desse período fez com que minha memória ficasse ainda mais seletiva. Acho que cheguei ao meio-dia. Andei do Leme ao Forte mil vezes, e nada da hora passar. Até que passou.
Fade out. Meu primeiro trabalho pela agência seria em “Pedro Dom”. Figuração, nada de mais, ninguém me iludira. Eu, caxias toda vida, dei um jeito de pesquisar alguma coisa. A história me pareceu boa. Um tal de Pedro Machado Lomba Neto, nome pomposo, virara o tal Dom, vocativo que na gíria carioca quer dizer “cara”, “amigo”, “irmão”. Pedro Dom se viciara em cocaína logo cedo e, para sustentar o vício, passara a roubar casas de alto padrão em toda a capital fluminense. É claro que ele se viciou nisso também.
Enquanto não era chamado à cena, aproveitava para me fartar com o fausto lanche que a produção havia providenciado. Entre um sanduíche e outro, comecei a pensar em algumas coincidências (ou quase) entre mim e o Dom. Ele era só alguns meses mais velho que eu; éramos de famílias nem pobres nem ricas, mas ele decerto tivera acesso a uma excelente educação, como eu também tive; em algum momento de nossa juventude, tudo resolvera vir abaixo. Ele se tornara um criminoso. Os possíveis pontos de contato entre nossas vidas acabavam aí.
Gravei a cena, uma das primeiras da produção. O menino Dom se encontra com Lico, filho da empregada da família e seu melhor amigo desde tenra idade, no calçadão do Leme. Se a sequência não foi mudada (ou cortada), eles tomavam um milk shake e conversavam amenidades. Eu passo em contraplano, uma espécie de hippie atrasado como nunca pensei que pudesse me tornar. Fiz esse caminho umas boas dez vezes, até que o diretor Breno Silveira achasse que tudo estava a contento. “Corta!”, gritou ele mais uma vez. Pelo tom entusiasmado da voz, notei que teria sido a última. Estava certo. Despi-me do figurino — sandálias de couro cru, uma camisa de estampa meio florida bem surrada e short bege — e me despenquei para o Estácio, onde estava conseguindo me virar.
Não cheguei a conhecer Gabriel Leone, o intérprete do protagonista. Não contracenamos, mas me lembro muito bem dele de uma ou outra novela. Seu trabalho está certamente acima da média e em “Pedro Dom” o achei bastante parecido com o personagem. Quanto MC Caveirinha, que dá vida ao Lico, deu para observar de muito perto. Salvo erro, ele estava com o braço quebrado, dizia uma galhofa entre um take e outro, e era muito paparicado pelo diretor. Pudera, o moleque tem estrela. Andei vendo umas fotos recentes dele e parece que deu uma boa espichada nos últimos dois anos. O tempo passa.
Pedro Dom seguiu firme em seu propósito — ou na falta deles. Para mim, a subtrama mais impactante do roteiro é, sem sombra de dúvida, a ida de Luiz Victor — que na série ficou apenas Victor, a fim de evitar possíveis consequências judiciais —, durante um baile funk no morro da Mangueira a fim de resgatar o filho. O criminoso já estava há dias sumido, sem dar notícias à família. Luiz Victor, policial civil, soubera que Dom não fazia outra coisa senão consumir cocaína, num estado deplorável, à beira de uma overdose, e se desespera. Chega a anunciar aos donos da boca que é da polícia, mas que se abalara até lá só para buscá-lo. Atitude de um pai amoroso e devotado, mas também marcado pela marginalidade. A série deixa muito clara a participação do pai de Pedro Dom no Esquadrão da Morte, milícia que irmanava policiais civis e militares num objetivo comum: matar. A facção havia surgido na esteira da ditadura militar (1964-1985) a fim de perseguir e executar opositores do regime. Com a redemocratização, os bandidos da lei se reinventaram e passaram a matar todo indivíduo que encontrassem “no lugar errado e na hora errada”, e nem sempre ganhando alguma remuneração pecuniária. Era a loucura que encontrava válvula de escape no cano de uma pistola ou escopeta. As milícias resistem no Rio de Janeiro há mais 30 anos. Luiz Victor Dantas Lomba foi expulso da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro por desonra e nas entrevistas que concedeu depois de destituído do posto, parecia arrependido. Luiz Victor morreu de câncer no pulmão, aos 74 anos, em 2018.
Já para Pedro Dom não houve chance de remissão. A namorada Jasmin espera um filho dele, mas o protagonista não chega a tomar conhecimento da notícia. Outra vez chapado, assaltou um apartamento na Lagoa, bairro da Zona Sul do Rio, e sai em disparada pelo túnel Rebouças, onde, tomado pela adrenalina, chega às raias do desatino e lança uma granada contra os carros. A polícia o acerta com um tiro de fuzil no peito. Pedro Dom morre com apenas 23 anos. Eu estou aqui — e se você, paciente leitor, também estiver, meu obrigadíssimo, agradecimento que estendo à sensibilidade de meu editor, que me permitiu tamanha licença e julgou este relato digno de alguma qualidade. Chega de confissões pelos próximos quarenta anos.