Para seguir firme em seu processo de dominação do planeta, o homem teve se adaptar. Nos primórdios, ainda na pré-história, o ser humano não havia desenvolvido o que se poderia classificar propriamente de idioma, um conjunto de códigos gráficos e fonéticos por meio dos quais pudesse estabelecer uma comunicação efetiva e rápida com indivíduos do grupo a que pertencia. Foram necessárias centenas de milhares de anos para que isso começasse a acontecer e a empreitada ainda não está concluída, uma vez que a língua, com o perdão do trocadilho, é viva, se submete às mais diversas transformações num período muito curto, se curvando à urgência da comunicação num mundo onde tudo se dá num ritmo que beira a insanidade em muitas situações. É tão verdadeiro o argumento de que determinado povo subjuga outro, antes de mais nada, pela palavra que, não por acaso, o inglês foi o idioma que se tornou presente em todo globo. A língua reflete a relevância, a potência de uma nação. Por meio dos mares, a Inglaterra chegou a terras desconhecidas, explorou suas riquezas, e impôs em seus novos domínios a maneira que usava a fim de se comunicar. Os Estados Unidos, uma ex-colônia britânica, preteriram o alemão e absorveram o inglês como sua língua nativa e, à medida que o país se consolidava como a maior democracia da Terra, mais o idioma se disseminava pelo planeta, sendo considerado à certa altura a língua universal. Isso mudou um tanto de alguns anos até o momento. Hoje, é crescente o interesse por línguas não exatamente dominantes — e nem populares fora de seus países de origem. Alemão, italiano, francês, mandarim e até coreano já fazem parte do repertório de muita gente por causa, claro, da situação econômica privilegiada dessas nações, que por sua vez deu azo à expansão da arte apresentada por elas. O cinema sempre registrou obras em que o inglês não é prerrogativa para que um filme seja sublime. É o que se verifica no hispano-argentino “O Segredo dos seus Olhos” (2009), de Juan José Campanella, uma história que amalgama os sentimentos mais díspares, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, ou no italiano “A Grande Beleza” (2013), de Paolo Sorrentino, sobre um escritor boêmio que, à certa quadra da vida, faz um balanço de seu caminho até ali. Dessa vez, a ordem dos filmes respeita a vontade dos nossos leitores que, por meio de uma enquete, decidiram que as produções deveriam vir elencadas a partir da que mais gostaram. É isso aí, na Bula é você quem manda. Agora, vamos à nossa torre de Babel particular.

A categoria de Melhor Filme monopolizava todas as atenções no Oscar 2010, numa disputa acirrada entre “Avatar”, de James Cameron, e “Guerra ao Terror”, de Kathryn Bigelow – a história da captura de Osama bin Laden no Afeganistão levou a melhor, bem como a própria Kathryn Bigelow sobre o ex-marido James Cameron, ganhadora do prêmio de Melhor Diretor. O que importava mesmo era a decisão da Academia acerca do destino da estatueta de Melhor Filme Estrangeiro. O belíssimo “A Fita Branca”, de Michael Haneke, que já vencera o Festival de Cannes, era mais que favorito: era aclamado. O argentino “O Segredo dos Seus Olhos”, que parecia passar ao largo, dada a campanha de divulgação muito mais sóbria, surpreendeu o júri. Foi o segundo filme daquele país a alcançar o olimpo do cinema, 25 anos depois da proeza de “A História Oficial”, de Luis Puenzo. Ao se valer do conceito do tempo elástico, a trama de Juan José Campanella expõe as consequências de um crime na vida do oficial de justiça que se empenhou no caso passados 25 anos. Aposentado, Benjamín Esposito volta a se interessar pela história, para ele particularmente desconfortável por não ter tido desfecho. O mistério que encerra o crime o motiva a escrever um livro sobre o assunto, baseado em suas memórias. Questões irresolutas do passado se impõem no cotidiano dos personagens, como também se dá em obras de Pedro Almodóvar, a exemplo de “Tudo sobre Minha Mãe” e “Abraços Partidos” — de maneira muito mais introspectiva, claro. O longa se destaca por unir eventos que podem parecer soltos na narrativa, compondo um mosaico inteligível apenas quando visto por inteiro. Nesse filme, como o título dá a pista, os olhares são vitais para não se perder nada. “O Segredo dos seus Olhos” é um filme sobre o que não se deixa ver.

Jep Gambardella, escritor de um livro só já raspando na velhice, passa por uma crise existencial que o impele a refletir sobre como fora sua vida até ali. A mediocridade que jamais o incomodara passa a ser um verdadeiro peso para Gambardella, ainda que ele não saiba muito bem o que fazer com isso. Esse é o plot de “A Grande Beleza”, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2013, uma história não exatamente original, mas que fomenta discussões interessantes. Gambardella, mesmo incomodado, segue com a rotina de sempre: quando não está envolvido em debates sobre os mais variados temas com os amigos desfrutando da boa comida de um dos restaurantes de luxo que tem por hábito frequentar, esse dândi inveterado organiza festas não menos ostensórias, no intuito de assim encontrar algum sentido para a sua vida. O diretor italiano Paolo Sorrentino propõe uma viagem ao interior dessa alma em frangalhos. Nas caminhadas de Gambardella por uma Roma completamente envilecida, infestada de gente fútil que contrasta com a beleza da arquitetura da cidade, podem-se tecer algumas premissas: o escritor reflete a cidade ou é o contrário? Ele detesta Roma por causa da mediocridade das pessoas ou por ele mesmo ser prosaico? Nesse aspecto, Sorrentino emprega a câmera em planos fechados no semblante dos personagens, de forma a parecer que os encara, que deseja saber quem são. Sem dúvida, um acerto, claramente inspirado pela obra de Fellini. “A Grande Beleza” sai da superfície do que comumente se encontra na praça e instiga o público a pensar no Jep Gambardella que vive em cada um de nós.

No início de “Amor”, um casal de velhos assiste a um concerto. Não se vê o que acontece no palco, só a plateia se destaca. O espectador parece também tomar parte na história, como se tivesse sido deslocado para a sequência. O casal em questão se compõe de Anne e Georges, juntos desde sempre. Fragilizada, Anne está sem os movimentos do lado direito do corpo, completamente à mercê dos cuidados do marido. Ela tem esperança de recobrar a saúde, mas por um capricho do destino, seu estado só faz se deteriorar. Georges dá o melhor de si pela mulher, mas também vai adoecendo, por dentro, ao se ver incapaz de tirá-la daquela situação. Os personagens falam muito mais pelo que deixam de dizer que pelo que de fato dizem. Pelas expressões de Georges, de uma tristeza contagiante, se percebe que ele trata de Anne não por obrigação, mas pelo amor que nunca deixara de sentir por ela. Amor implica em lealdade e, conforme o juramento dos nubentes no altar, casamento é na saúde e na doença, principalmente na doença. Nos raros momentos em que consegue ficar sozinho, ao fumar ou admirar o céu, o protagonista também deixa transparecer suas fraquezas. Um dos ápices do longa é justamente as atuações memoráveis de Jean-Louis Tritingnant e Emmanuelle Riva, que imprimem toda a carga dramática de dor, sofrimento, peso dos anos, amor, cumplicidade, perseverança, sentimentos misturados e apresentados na hora exata. Mesmo a aridez da fotografia conta a favor: Haneke certamente não tinha em mente glamourizar ou mesmo romantizar os obstáculos à felicidade que a velhice impõe. A grande beleza de “Amor” está na dignidade do sentimento que ainda resiste a seus protagonistas.

“Amores Brutos”, primeiro longa do diretor mexicano Alejandro González-Iñarritu, daria origem a uma trilogia cujo propósito seria o de narrar histórias que unissem o destino de personagens desconhecidos, cada qual dono de seus próprios sentimentos, carregando suas emoções mais íntimas e chorando suas tragédias particulares. Tomando esse ponto por base, González-Iñarritu iniciaria uma comunhão profissional com o roteirista Guillermo Arriaga a fim de dar corpo a outros dois trabalhos, “21 Gramas” (2003) e “Babel” (2006). Aqui, as narrativas se cruzam a partir de um acidente de trânsito, a que segue uma investigação da vida dos envolvidos. O primeiro, Octávio, um adolescente problemático que cria cachorros que usa nas rinhas que promove, tem um caso com a cunhada e se determina a fugir com ela. A vida como ela é em “Amores Brutos” é eivada de violência, enodoada, em nada semelhante à dos filmes americanos protagonizados por adolescentes rebeldes. A trama apresenta nus, mas de forma realista, com gente comum. Nos trechos que seguem, é possível assistir aos acontecimentos de uma Cidade do Médico imperfeita, em decomposição, habitada por modelos agora em franca decadência. Com esse expediente, o diretor demonstra que ninguém está a salvo da decrepitude. Em “Amores Brutos”, não se vislumbra qualquer chance de regeneração ou justiça. A natureza humana sempre combinou muito mais com a desdita do que com romantismo.

Michael Haneke não tem nenhum pejo de retratar a história como ela se apresenta. E a história está repleta de ódio — e de crimes de ódio. Em “A Fita Branca”, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2009, o diretor se dedica a uma tarefa difícil, mas gratificante. Aqui, ele especula acerca das raízes do maior crime de ódio de que se tem notícia ao longo do século 20 (e do qual o cinema já falou reiteradas vezes), o Holocausto. E o faz da forma que melhor sabe. Numa pequena vila alemã, às vésperas da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), três homens detêm a aura de poderosos: o médico, o barão e o pastor. Uma voz em off esclarece que aquele é o palco do que veio a se configurar como a ideologia supremacista germânica, berço do nazismo, e que se alastraria por todo o país. É clara a intenção de Haneke quanto a vincular o comportamento dos habitantes do lugar ao Holocausto, conduzindo a narrativa de modo que o espectador reaja como ele espera. Principia uma sucessão de eventos misteriosos: ao voltar para casa, o médico do vilarejo cai do cavalo, por causa de um arame esticado entre as cercas, o que derruba o animal. O caso nunca é esclarecido. Algum tempo depois, a vítima é o filho do barão. A única relação entre os dois episódios é o método, a fim de deixar claro que aquilo não era casual. O criminoso, cuja identidade não se conhece, está transmitindo uma mensagem. A população da vila logo entende que se trata de uma espécie de lei tácita, que pune qualquer um que não aja conforme o que se poderia considerar como o certo. O medo do castigo — e da vergonha — toma o inconsciente coletivo, e todos intimamente sabem que é o pastor — que obriga dois de seus filhos a ostentar uma fita branca como evidência de que se desviaram – quem está por trás do mistério. O fato de discriminar os que não se adequam com uma fita branca também é uma antecipação do que iria acontecer ao longo da vigência do regime nazista, quando judeus eram identificados com uma estrela amarela logo no começo da Segunda Guerra. “A Fita Branca” é, assumidamente, mais um filme sobre as origens do totalitarismo nazista e do antissemitismo, mas cujo enredo – de uma originalidade que não se vê com frequência em histórias do gênero – tem sacadas brilhantes, como a sequência final, na igreja, muito similar aos gabinetes do Terceiro Reich. Haneke pode ser acusado de maniqueísmo ao conduzir o olhar e a reflexão do público, mas o espectador reage muito bem a isso.

Nunca é fácil inserir o público na pele de um protagonista e pode se considerar vitorioso quem o consegue. E a vitória tem um sabor todo especial quando o protagonista não tem nada a ver com quem está assistindo. Jean-Dominic Bauby, editor da revista “Elle” francesa, sofreu um derrame cerebral e, de uma hora para a outra, perdeu tudo, inclusive aquilo com que ganhava a vida. Não consegue mais se comunicar como antes, nem andar, nem comer e o universo repleto de glamour do trabalho que o locupletava está completamente interditado para ele. Passou a depender de um “escafandro”, um tubo acoplado à sua traqueia, para se manter vivo. Por dentro do aparelho, uma extensão de seu próprio corpo com o qual ainda não lidava muito bem, Bauby se mantinha em pleno gozo de suas faculdades mentais, mas para quê, se tudo ficava retido, como uma borboleta eternamente aprisionada num casulo e que nunca se liberta para o mundo? Ainda assim, não queria se entregar: desenvolveu uma técnica tão rudimentar quanto fundamental. Ao piscar o olho esquerdo uma vez, queria dizer “sim”; duas vezes, “não”. A história do jornalista é uma lição de como dar aos problemas a dimensão que queremos. Jean-Dominic Bauby foi capaz de ditar suas memórias — em que o filme se baseia — só com o movimento do olho. Graças à direção cuidadosa de Julian Schnabel, a história nunca resvala na pieguice ou no banal. Primeiro, a câmera se passa pelo olho esquerdo de Bauby, perdido em seu novo estado, como se tateasse o ambiente sem as mãos. A perspectiva segue dessa forma por meio filme, como se registrasse o processo de amadurecimento do protagonista, cujo rosto finalmente se conhece. Só aí, quando resolve deixar a autovitimização de lado, surge sua imagem torta, como a borboleta, bela, mas desajeitada, se livrando da cápsula que a limitava. “O Escafandro e a Borboleta” não se furta a retratar o impacto da débâcle de Bauby sobre a vida de todos ao seu redor. A cena em que a ex-mulher serve de intérprete para a namorada dele é tocante, se permitindo leves pinceladas do humor involuntário da situação. Schnabel é hábil em usar a câmera a seu bel prazer, e também essa sua característica mantém “O Escafandro e a Borboleta” longe do chororô e da vulgaridade, muito diferente de muitos filmes do gênero. Para quem não tem receio de filmes com personalidade e aprecia um diretor de estilo próprio, “O Escafandro e a Borboleta” é magnífico.

“O Profeta” estreou no Brasil em 18 de junho de 2010. Passados mais de uma década, o público ainda se lembra muito bem do filme — tanto que ele veio parar aqui. A produção, dirigida por Jacques Audiard, conta a história de Malik El Djebena, um bandidinho pé-de-chinelo, encaminhado a um presídio francês. Malik é árabe, analfabeto e parece um coelho que entra de gaiato num covil de feras. Esquiva-se pelos corredores, olhando de soslaio, temendo levar uma estocada a qualquer momento. Aos poucos, se habitua ao clima de tensão constante, e é a forma como Malik vai se adaptando, se enquadrando à nova realidade o plot do filme: o sistema prisional não ressocializa ninguém (e estamos falando da França, certo?). O tema é batido, e desde a franquia “O Poderoso Chefão” ninguém o havia abordado sob uma perspectiva tão abrangente, talentosa e reveladora. Uma grande história de gângster, com algumas das sequências mais criativas e envolventes que o cinema já testemunhou, tecendo, ainda que despretensiosamente, um verdadeiro tratado sobre como a manutenção da criminalidade do lado de fora é depende das tramoias de quem está do lado de dentro, além de evidenciar que o conceito de que todos os detentos são iguais, não cabendo privilégios a quem quer que seja, é falso. Prova disso é a submissão de Malik a Cesar Luciani, um capo da Córsega temido por sua natureza violenta, que mesmo encarcerado, comanda com mãos de ferro a máfia local. Luciani dá a Malik duas alternativas: matar um informante árabe, a fim de provar que não é um fraco, ou morrer. Ele fica com a primeira opção, e a lembrança do crime passa a fazer parte de seu cotidiano. O pior é que ter matado não serviu de muito, além de preservar sua vida ordinária: ele é renegado pelos córsicos por ser árabe e os árabes o desprezam por ele ter se juntado à facção de Luciani. É a escória da escória. Equilibrando-se na vida dicotômica que se lhe apresenta, Malik tem o benefício de deixar a cadeia por algumas vezes, graças a seu bom comportamento. Luciani se aproveita disso para enviá-lo em tarefas como pagar o resgate de um criminoso córsico, ser o cabeça de uma negociação com um gângster adversário e exterminar um mafioso em Paris. Numa dessas, se envolve num tiroteio, em plena rua, uma das sequências mais formidáveis e apavorantes do cinema. A trama apresenta inúmeros anticlímax, sem nunca deixar o espectador à deriva, e sempre respeitando a inteligência do público. O que se verifica quando do assassinato do informante árabe: Malik é não é nenhum ás na função e sua pouca destreza ao cometer o crime só exacerba ainda mais o clima tenso da cena. O protagonista é débil e truculento na medida exata de cada coisa, um personagem que, de fato, marca um tempo. Por causa de obras-primas como “O Profeta” é que se pode ter a certeza de que o cinema acaba por nunca se render de todo aos esquemas fáceis de uma indústria que só se interessa em vender, como se filmes tivessem a mesma importância que comida congelada. Que seja mesmo uma profecia.

Um homem à beira de um ataque de nervos. Este é Rafael Belvedere, 42 anos, gerente do restaurante fundado pelo pai. As ocupações com o trabalho o envolvem de tal modo que sua vida passou a se resumir a boletos e panelas. Profissional bem-sucedido, Rafael tenta se destacar, mas está sempre um nível abaixo do que espera dele o pai, cuja sombra literalmente paira sobre seus ombros. Nem a mãe, em progressivo estado de demência, ele consegue visitar. Sua ex-mulher joga-lhe na cara o fato de não se importar com o filho e Naty, a atual namorada de Rafael, cobra dele mais comprometimento. Tanta pressão, claro, não poderia acabar bem: Rafael sofre um infarto. O infortúnio da doença volta a colocar em sua vida Juan Carlos, amigo de infância com quem vai reaprender o que de fato tem valor. Quando de sua estreia, “O Filho da Noiva” chegou pleno de expectativas: todo mundo aguardava com ansiedade pela volta por cima do cinema argentino, ávido por corresponder a todos os anseios e oferecer novas possibilidades acerca das graves questões sociopolíticas e econômicas daquele país, mirando-se na máxima pessoana do “quanto mais local, mais universal”. Ricardo Darín dá conta do recado, como sempre, frise-se. Seu homem ridículo, à moda de Dostoiévski — frustrado, atormentado com a possibilidade de não ser capaz de executar suas incumbências profissionais e cumprir com seu papel de chefe de família e parceiro amoroso — é o retrato de uma geração, em especial quanto ao que se refere aos homens, aos indivíduos do sexo masculino. Rafael Belvedere sabe que tudo na sua vida está errado — a competição com o pai, o pouco caso com a mãe, a negligência afetiva para com o filho e a companheira -, mas, no fundo, não tem ânimo nem vontade de mudar nada. Está à espera de uma estrela que o salve, como o personagem dostoievskiano. Se “O Filho da Noiva” se resumisse a uma mensagem, seria a do carpe diem latino. Há que se aproveitar a vida — e a vida não é uma coisa só.

Há duas formas de se apreender o russo “Leviatã”, filme ganhador do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes de 2014. A primeira, à luz da Bíblia, que segundo o “Leviatã”, um de seus livros, o homem era assombrado por uma criatura monstruosa que habitava os mares, parábola que ensinava que ninguém deveria se impor além de seus domínios. A outra, muito mais óbvia, é tomando-se por base a sociologia, mais precisamente o livro homônimo do filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), que por sua vez tirou das Escrituras a inspiração para o nome de seu livro mais célebre. De lá, vem a frase que poderia resumir à perfeição o longa. O homem é mesmo o lobo do homem. Casual ou não, a dado momento, o espectador se depara com um imenso esqueleto de baleia numa praia do deslumbrante litoral russo, o que demonstra que nem o homem deve se meter nas profundezas do oceano nem as formas de vida marinhas, por mais grandiosas que sejam, podem se atrever a habitar a Terra. O mundo é uma ruína em progresso e numa cidadezinha isolada nas cercanias do Mar de Barents, um homem luta compra uma briga com o prefeito corrupto a fim de não perder a casa em que mora com a família. Ele sabe que sozinho vai ser difícil se desvencilhar do bandidão, portanto considera muito justo usar as mesmas armas que ele. Procura um amigo, advogado influente em Moscou, que vai se valer de seus bons contatos para descobrir os podres escondidos do político. Este “Leviatã” reafirma os irmãos mais velhos: o homem é corruptível por natureza, todos temos um preço — e quem jura de pés juntos que não é o primeiro a se vender, muito mais barato do que pensava (e os políticos o sabem muito bem). Numa Rússia ainda completamente deslocada mais de 30 anos depois do comunismo ter dado seu suspiro final, o que os prédios públicos têm de suntuosos têm de inúteis. O cidadão comum sabe que se não rezar pela cartilha do mandatário de plantão — e eles querem estender esse plantão ad aeternum — nada feito: está condenado a vagar de uma repartição para a outra, sem nunca liquidar suas pendências, à mercê de funcionários que criam dificuldades a fim de vender facilidades, até que os prazos se esgotem e já não reste mais nada a se fazer. Ou pode se valer de métodos semelhantes aos adotados pelo protagonista. Para tempos duros, soluções duras.

Em Blackeberg, subúrbio da capital sueca Estocolmo, Oskar, um garoto de doze anos, é atormentado pelas brincadeiras dos colegas de escola, e por mais indignado que se mostre, nunca consegue externar sua fúria. Ao brincar sozinho na neve do pátio do prédio onde mora, ele cruza com Eli, solitária feito ele, e que acabara de se mudar para o bairro com um homem que se diz seu pai. Eli hesita em travar contato com Oskar, mas eles acabam se tornando amigos. Em paralelo, começam a suceder assassinatos em série com uma característica macabra em comum: o sangue das vítimas é totalmente retirado. Crônica de uma sociedade que muitas vezes não se importa em fechar os olhos à infância, “Deixa Ela Entrar” é um filme devastador pelas imagens, pelo mote, pelas perspectivas nada animadoras que semeia. A discussão acerca das situações aberrantes a que crianças, indefesas quase sempre, estão sujeitas é um dos pontos altos da trama de Tomas Alfredson, de cujo enredo se pode extrair a surrada lição de que nem tudo é o que parece.