Caro leitor: você deve ter conhecido meninos e meninas que na descoberta do corpo, e também dos amores, por algum motivo desconhecido descobriram que a poesia acalentaria os seus despudores. Alguns crescerem assim, sem entender as razões pelas quais ficariam para sempre presos à tentativa do verso. Esse poeta, sobre o qual narrarei um dia (seja lá o que for isso), foi, ainda jovem, considerado um promissor poeta por uma importante revista cheia de listas e grandes cronistas. Seguiu então a cartilha dos “eruditos”: isolou-se do mundo, não concedia entrevistas, tudo isso para criar mistérios em torno de si. Pagaria um preço alto pela empáfia e pela imitação. Um preço de tempo.
Naquele começo de tarde, sentou-se para escrever em versos livres e até para arriscar alguns versos dodecassílabos. Pensou e pensou, como pensa um matemático prestes a escolher entre os números e aquelas loucuras quânticas cheias de X, Y e teorias. Ou terá pensado como um bêbado, que fica em dúvida sobre como começar o seu exercício diário do copo?
Do nada, num reflexo da reflexão, olhou para um antigo livro em cima da escrivaninha e percebeu que o amor e a dor não lhe eram presentes naquele momento. E filosofou sobre a poesia, perguntando-se como ela seria possível sem esses dois elementos da vida.
Sabia que muitos poetas haviam tentado explicar a poesia e, como de costume, procurou-os nas estantes. Em seu tempo, os mestres tinham imaginado que essa indagação poderia se resumir à mítica existência de um poema universal, em que a inspiração serviria como uma vara de pesca e o verso, como um grande bagre místico; mas como não era muito chegado às alegorias metafísicas, ficou de saco cheio e desceu.
Na rua, caminhando para comprar mais cigarros, leu versos numa parede: “A poesia não cabe em papel. Grito na parede para escrever que você se foi por entre ela”.
A frase pretensiosa não o tocou, mas o deixou em alerta para captar o que os poetas sempre têm como exercício: uma simples frase entre dois amantes o levou a imaginar suas vidas, a cópula, o desamor ou mesmo a honraria maior: o silêncio entre casais, maior do que qualquer sonho de luxúria ou de dor.
Ao entrar na mercearia, deparou-se com a televisão. Era reprisada uma novela da sua primeira musa — pois é; musas vêm e vão, dia após dia, pelo menos para os poetas. Só isso foi o bastante para ele se sentar, pedir um café e esperar por ela, como num encontro do acaso que ocorresse todos os dias e à mesma hora.
Riu de si mesmo e, ao rir, mudou os planos para aquele dia. Com um simples olhar para o balconista trocou o pedido de café para um copo de aguardente e se prometeu que o dia estava terminado. Depois que perdeu a forma de contar — de copos para meia garrafa — relembrou que viver é diferente de viver a poesia. Raros são os poetas que escrevem olhando demais para o seu ofício e não para essa senhora de tempo contado. Pensou em seus poetas preferidos e achou um absurdo que Dylan tivesse acabado de vencer o Nobel de literatura.
Enquanto isso cantarolava “Though I know that evening’s empire has returned into sand/ Vanished from my hand/ Left me blindly here to stand, but still not sleeping/ My weariness amazes me, I’m branded on my feet/ I have no one to meet/ And the ancient empty street’s too dead for dreaming”.
Preconceitos são assim: ou você os nega, praticando-os, ou os confirma, cantarolando-os. Ao contrário de atrapalhar, a música azeita versos na matemática dos acordes.
Três quartos de garrafa depois ele se foi pela rua. Testemunharia beijos, desencontros, placas de carros e pessoas que não tinham feições comuns até que, ao passar na frente da igreja, fez um leve, acanhado e inconfidente sinal da cruz. Nesse instante percebeu, vindo detrás da igreja, um som delicioso de batidas, semelhante a uma roda de samba. E também que três ou quatro casais seguiam para lá depois de beijar a mão do padre.
Andando timidamente, como se pisasse em esmeraldas, percebeu que a entrada estreita era uma servidão muito simples, mas bem cuidada. Para seu espanto, ao final do corredor percebeu que acabara de entrar num terreiro, o que lhe despertou desconfiança e indignação. Os cantos de Oxóssi — que até aquele momento desconhecia — iam lhe chamando, convocando-o de uma forma estranha.
Saberia muito tempo depois que os cantos eram para o orixá da caça e da subsistência, que por entre as selvas, usa arco e flechas para conseguir o que precisa no meio da escuridão do mato; naquele momento, apenas sentiu que precisava seguir. Estreitou seu corpo por entre os corpos vestidos de branco que cantavam e dançavam versos que lhe faziam algum sentido, nenhum deles racional.
Soubesse das coisas, teria percebido estar saindo da mata fechada para alcançar um grande lago de mistérios e encantamentos.
Oxóssi que vai e segue
Do arco que diz e mede
Da flecha que quebra em seta
Da relva cantada em bosque
Oxóssi que estica e voa
A seta certeira, em corpo
Protege teu filho, Oxóssi
Que passa por entre a morte
Oxóssi que busca e encontra
A carne que planta a alma
E leva pros teus conforto
De amanhã não se ter mais fome.
Esse ponto lhe arrepiou a alma e travou-lhe a espinha. E foi essa travada que o impediu de caminhar por vontade própria, fazendo-o seguir até onde suas pernas o levassem.
Olhando melhor para os lados, viu e ouviu senhoras dando conselhos, embora não fossem elas a falar; meninos vestidos com espadas e mantos de outrora; e viu pessoas que giravam como sufis, embora não parecessem tão propositais e nem tontos. Naquele terreno simples, sentiu pela primeira vez a riqueza do tempo com o seu ouro, chamado futuro, e suas joias, chamadas de passado. De repente uma senhora bonita, pequena de corpo e com a pele cansada, aproximou-se e estendeu a mão em sua direção, como se fosse puxá-lo para o centro do pagode.
Mal pensou que seria posto para dançar o caminho se abriu para eles, revelando que ela era a Senhora dentre todas aquelas senhoras. Ao aproximar-se da cadeira central, uma pequena e linda menina trouxe outra cadeira para que ele se acomodasse. Sentiu um frio danado quando a anciã repousou a mão entre as suas e, em silêncio, mirou para e por dentro dos seus olhos. E perguntou: o que procura, poeta? Mal fez a pergunta, recitou ao pé do seu ouvido, com uma voz docemente rouca:
“Antes de tudo e do como e quando, sonhaste com força a esperança de um já perdido encanto. E agora que a vida se foi, entre virtudes e desconsolos, ouves as vozes dos que sussurraram enquanto.
Tu sentaste e ouviste em brando silêncio, que a esperança é mentira de alívio aos quantos, que avisados, passaram a vida mentindo. E fizeram da verdade um verso em desencanto.
Diga então, e em rima, sobre o teu corajoso e fraco peito. Mas silencia a dor de teu sonoro gesto. Não esperes que versos mudem o outro desejo, pois poemas são inúteis a um corpo em alma estéril”.
Cada estrofe lhe trouxe uma lágrima guardada por toda a vida. E, estúpido, pensou que palavras tão diferentes não poderiam ser ditas naquele lugar. Era a empáfia.
“A poesia não nasce em terrenos e terreiros”, pensou o menino criado com leite Ninho. Mas já era evidente, e esse era o seu medo, que tal busca se alongaria não por dias, mas talvez pela vida toda. Ele não sabia quase nada, porque a chave dos preconceitos lhe trancara as portas.
A conversa continuou, mas ficará para outra oportunidade o que aquela voz revelou. Ocorre que todos o viram cabisbaixo, indo para um canto afastado das comemorações; ele se sentou e serviu-se de um copo de aguardente que estava em cima de um tronco.
A seu lado um senhor estava sentado em sábio silêncio, apenas observando o que ocorria ao seu redor. O poeta se assustou mesmo foi quando esse senhor também lhe pegou as mãos para um pito: “Por que filho meu pegou a minha cachaça?”.
E riu, riu como se não houvesse amanhã em nenhum dos cantos do universo de onde ele vinha. E continuou: “Busca não, meu filho, busca não. Bebe, pode beber sim, agora você tem boca pra beber e corpo pra se deitar”.
Corajoso depois do susto que tomou, perguntou com certo desrespeito o porquê daquilo “estar acontecendo”; ouviu que “aquilo” sempre aconteceu, mesmo quando a luz e a escuridão não existiam e os primeiros versos estavam ainda dentro do saco das criações.
Antes de pedir para o poeta ladrão se afastar, o velho disse algo que o encafifaria para sempre: “e você se lembre, meu filho, que o que é natural não pode ser criado e o tempo não pode se adiantar quando você quiser”.
Em passos lentos, o intruso se afastou em direção à porta. Quando virou a cabeça atordoada em direção à cadeira da senhora, os quatro olhos se cruzaram e dentro da sua cabeça ouviu “segue, meu filho, não se preocupe, seus versos são seus e o tempo lhe ditará cada linha deles. O tempo é um todo”.
Não sabia mais o que era conforto, o que era espanto e o que era real. Confundiu suas pernas com versos e andou em rima para longe… como se fosse possível sair dali.
Meia hora depois, ao pôr os pés em casa, o medo não cabia nem naquele vasto apartamento e muito menos em seu frouxo peito. Revistou o lugar, olhou debaixo das camas e procurou entre os livros por sinais de espionagem de uma KGB do além. Estivesse com os pés no chão, perceberia o ridículo de pensar num outro plano da existência usando microfones escondidos, mas…
Pensou em entrar no banho, mas temeu deixar a casa desprotegida. Também pensou em fugir, mas suas paredes o protegiam do acaso da rua. Por fim, pensou em ligar para a mãe, mas ela não acreditava em quase nada nem tinha paciência para grandes questões.
Incomodar sua amante no trabalho também não lhe pareceu uma opção; além do mais, ela desconfiaria de cachaça, o que realmente acontecera.
O que era aquilo que vivera? Ele se perguntava isso de meio em meio minuto. E tentou fugir para a escrita, como se fosse um recado para alguém que encontrasse o seu corpo.
“Hoje precisei sair para comprar cigarros e não consegui escrever uma única estrofe. Meu editor tem me torrado o saco para que eu termine o livro e lhe envie ao menos o mote. Não consigo terminar. Não consigo. Desci para comprar cigarros e de repente…”.
Eram palavras tolas. Recomeçou: “Ao final do dia fui em direção…” Não, não está bom. Não posso começar assim. Meu dia não tinha direção, não pensei em sair para qualquer outra coisa que não fosse comprar cigarros. “Ao passo da tarde de encantos, as ruas tornaram-se desafio e mesmo eu, tímido de quebrantos…” Não, não, falsamente erudito. Não é possível, repetia aos gritos.
Levantou-se, furioso, e jogou no chão todos os livros que lhe pareciam vigiá-lo; reassassinou poetas mortos, deixando os corpos estendidos no chão da sala, chacinados por sua miséria e desespero.
De alguns ele chutou o corpo, como um evangélico afastando a oferenda na encruzilhada.
Respirou, olhou para a gaveta e puxou de sob da pilha um antigo papel rabiscado, que reconheceu como seu pela assinatura num canto inferior da página. E concluiu que o rabisco deveria ser de um dia qualquer em que estivera bêbado:
“Quando as palavras te perseguem, do que corres, se não tens pernas? Buscas correr por entre dores e ideias, ou mesmo ressentido, fisgas a vida em mentiras, e remoendo-te, te escondes para não te dizeres poeta? Quais foram os locais em que sentiste medo e quais as palavras, que eles te disseram, sobre um duro e falso verso? Será que vives plenamente, mesmo existindo outro de ti, que nos bares vive a tua vida, recitando as tuas peças?
Quando as palavras te perseguem, para onde corres, se não tens pressa? Quando não tens amor, por que causas à mão a insolência solitária? Por que não tens a musa, por que não secas o copo, por que não desejas o corpo, e por que não crês em ti, nos mortos?
Quando as palavras te perseguem, por que não te entregas para elas? Quando não há torpor, o que motiva em teu corpo o vexame da inércia? Por que não tens vaidade, por que não secas o gole, por que não desejas a morte, por que não crês na sorte?”.
Ao passar os olhos por tais versos, sentiu no papel a mesma textura daquelas mãos negras que o haviam tocado. Atordoado, moveu os olhos pela página e viu a data inscrita: para seu espanto, os versos seriam escritos no dia seguinte.
Entendeu, enfim, que os tambores ressoam aqui e acolá para que até na morte se aprenda que os versos são coisas da vida.