Para muitos, a metafísica é o nada absoluto: o homem não veio de lugar algum, vem à luz e ao morrer, não lhe resta mais nenhuma alternativa além dos vermes. E, claro, há os que dizem que a metafísica, ao contrário, se refere à um ser sobre todos os seres, uma espécie de matéria impalpável a reger a vida, tanto material como a do espírito. A metafísica, o mais caro legado de Aristóteles (384-322 a.C.), é a ciência de tudo; enquanto cada campo do conhecimento humano dedica-se ao estudo de determinada ciência, a metafísica compreende a ciência como um todo, um saber particular e universal, que paira sobre todas as descobertas do homem sobre a Terra. Aristóteles antecedeu o filósofo Andrônico de Rodes ao classificar os seus estudos acerca da metafísica de filosofia primeira, ou seja, um arrazoado de conhecimentos livres da prática e mesmo da mera percepção carnal. Metafísica e filosofia seriam noções correlatas, haja visto que a filosofia é o estudo do ser na sua condição primeira, isto é, a filosofia se debruça sobre a natureza das coisas e sua forma de se ordenar, independentemente do querer do indivíduo e do mundo físico. Para entender melhor todos esses conceitos, a Bula organizou uma seleção com os dez filmes mais bem-sucedidos quanto a trazer à luz a vastidão do espírito do homem valendo-se da ideia de metafísica. “Melancolia” (2011), do diretor dinamarquês Lars von Trier, trata das reações antagônicas de duas irmãs frente à possibilidade do fim de tudo, enquanto em “Waking Life” (2001) Richard Linklater explora as insondáveis fronteiras do inconsciente ao tratar do sonho e das experiências filosóficas que temos nesse estado híbrido de vida e morte. Os filmes foram elencados do mais recente para o mais antigo e não seguem nenhuma outra norma de classificação. Você deve estar achando esse papo cabeça demais, né? Que nada! É só prestar atenção em cada detalhe que um mundo completamente novo há de se abrir para você.

Autor nenhum consegue adaptar uma obra literária para o cinema de maneira inteiramente fidedigna. Sempre há que se fazer uma ou outra correção de rota, a fim de tornar fílmica uma narrativa pensada exclusivamente para o papel. O caso se complica o seu tanto em se tratando de textos religiosos, independentemente do teor místico do que vai ali escrito, seja em que religião for. Em “Noé”, Darren Aronofsky se desdobra sobre alguns versículos do livro do “Gênesis” a fim de extrair deles um épico dotado de fúria, toques de psicologia e o máximo de rigor histórico que consegue. Sua interpretação da parábola do dilúvio, cercada de lirismo e fantasia, é digna de figurar como uma das grandes passagens do cinema. O diretor banca suas ideias, a despeito de elas serem ou não rentáveis para a indústria. Russell Crowe dá vida ao Noé que boa parte do inconsciente coletivo conhece, um homem de princípios sólidos e incorruptíveis, filho direto da linhagem de Adão e Eva. Deus, indignado com o que o homem tem feito da Sua criação, decide começar tudo do zero. O expediente de que Ele lança mão para isso é um dilúvio que irá durar quarenta dias e quarenta noites, a fim de não restar pedra sobre pedra. Para salvar os animais – puros por natureza, mesmo as feras predadoras, que o são só porque seguem seus instintos — e a descendência humana, Noé é incumbido da hercúlea tarefa de erguer uma arca pantagruélica, no intuito de abrigar todas essas criaturas e sua prole. O enredo de Aronofsky é dividido em três atos, e cada qual tem o condão de representar uma fase da trama. Noé peregrina rumo à montanha habitada por Matusalém, personagem mítico que, segundo as Escrituras, teria vivido quase mil anos e seria o patriarca da humanidade; seguem-se os instantes anteriores à catástrofe e a situação irremediável dos ímpios, em polvorosa. Este ponto da saga se conclui com a reclusão de Noé e sua família na arca, até que as águas sequem. Aronofsky é pródigo em se aprofundar na psique de tipos angustiados e obsessivos, como em “Cisne Negro” e “Pi” e tirar dali a razão mesma para a história que está sendo exibida: Noé foi o escolhido por Deus porque certamente seria o único capaz de entender Seus desígnios sem maiores conflitos existenciais. Ele cumpre a missão, guardando para si qualquer sombra de pavor ou dúvida. Pode-se especular um pouco a respeito da índole do personagem-título ao se analisar o comportamento de seus familiares, escanteados na história original. É por meio deles que o público enxerga em Noé a sua dimensão humana, frágil, errante como qualquer outra, mas empenhado em sua missão, decerto apreensivo com o que será do mundo depois da daquela resolução divina o seu tanto drástica, o que o espectador claramente percebe.

Shane Carrruth é um diretor obstinado. Em “Cores do Destino”, parece que Carruth deseja se passar por David Cronenberg, que nunca teve medo de uma boa polêmica, a começar pela forma como lida com o corpo em suas histórias. Voltando à Carruth, “Cores do Destino” narra a história de Kris, que sofre um sequestro e é liberada algum tempo depois. Durante o crime, ela parece ter sido submetida a uma espécie de experiência: sob sua pele alguma coisa como um parasita agora faz parte do seu organismo. Uma noite, ao entrar num trailer, a personagem se depara com uma figura estranha e porcos, que, ao que tudo indica, também vão passar por algum experimento. Tudo é pensado a fim de chocar, para que o espectador saiba desde logo onde está pisando. Se for em frente, será rapidamente tragado pelo mistério. A identidade do tal homem, conhecido apenas como The Sampler, nunca vem à luz. Só se nota que ele está sentado no meio de uma pocilga repleta de porcos — o que se revela um fetiche de Carruth, como a nos lembrar a todo instante da imundície da condição humana —, gravando sons da natureza. É evidente que tudo isso em alguma medida se relaciona com o verme que agora habita o corpo de Kris, embora o espectador não faça a menor ideia do que pode ser. A protagonista volta à cena, transcorrido algum tempo, embarcando num ônibus. Jeff, outro personagem sob o signo do desconhecido, se próxima dela e demonstra um temperamento obsessivo. Fica no ar a sensação de que já tinham uma história em comum antes. A partir deste momento, mesclam-se sequências da viagem dos dois com trechos centrados no homem dos porcos. Resta cada vez mais e mais evidente que eles passaram pela mesma experiência. Vagando por um lugar ermo onde aquele personagem registrava os sons, sentem como se algo os impelisse a estar ali, como se tivessem sido programados para este deslocamento. A pouca poesia do filme pode ser depreendida da passagem em que os protagonistas trocam impressões sob uma revoada de pássaros — o que também soa como metáfora acerca da instabilidade do homem, ora aqui, ora acolá, sempre em busca de um recanto em que possa se sentir verdadeiramente acolhido, mas, no fundo, sempre aprisionado (e incapaz de voar). Experimental, mas sem nunca prescindir da linearidade, “Cores do Destino” é lapidar ao inserir o público num cenário de calculada esquizofrenia, ora o conduzindo ao desespero, ora ao refrigério. A solidão de Jeff e Kris nos remete às dificuldades comezinhas da vida numa grande metrópole, ambiente dia a dia mais inóspito que nos lança ao rosto a ânsia por fugir. Quem resistir aos desafiadores primeiros dez minutos de filme, vai verificar que, ao final, passara por uma experiência — sem trocadilhos — impactante, mérito da narrativa que não se deixa pautar pela necessidade de um desfecho convencional.

Miguel Gomez literalmente brinca com coisa séria e arranca gargalhadas ao falar de nada menos que o apocalipse de maneira jocosa. O diretor costarriquenho começou a atrair o olhar do público ao levar às telas “El Sanatorio”, em 2010. Com “El Fin”, Gomez pretende chamar atenção para um tema tão antigo quanto polêmico — e que nunca sai de moda. Mesmo forçado a trabalhar com orçamentos irrisórios se comparados aos das produções hollywoodianas, mesmo as mais chinfrins — o longa custou inacreditáveis 80 mil dólares —, sua inventividade, a originalidade de suas ideias, a grandeza de seu talento falam mais alto. Aqui, os personagens centrais, os amigos Nico e Carlos, descobrem que o mundo se aproxima do fim. Dispostos a não desperdiçar nem um minuto, decidem fazer uma viagem e aproveitar o último dia de vida. A depressão que aprisionava Nico em casa desde a morte dos pais há seis meses dá lugar a um fiapo de esperança ao chegarem a Nosara, um shangrilá perdido na costa do Pacífico do qual eles guardam lembranças felizes. Desde esse momento, passam a se deparar com situações que os movem rumo a uma nova percepção do mundo, ajudados pelas figuras impagáveis que se lhe apresentam ao longo da jornada. Por mais paradoxal que possa parecer, “El Fin” é um filme pontuado por lances cômicos, mas sério, que vai na contramão das tendências catastrofistas das produções do gênero. Gomez põe o espectador à prova ao sacudi-lo de todas as suas ideias pré-concebidas sobre o assunto. O fim sempre é o princípio de alguma outra coisa.

“Melancolia”, como todos os do diretor Lars von Trier, é um filme primoroso. A despeito de toda a polêmica que despertam, como o excelente — e tenso — “Anticristo” (2009), com o qual guarda algumas semelhanças, prevalece a forca do talento do diretor. Além da presença sempre marcante de Charlotte Gainsbourg, as duas produções se valem à larga de uma trilha sonora pontuada por clássicos da música erudita, a exemplo de Wagner, e de standards da canção popular como “Smile” e “Strangers in the Night”, isso sem mencionar a segmentação em tomos, um expediente já característico da obra de Von Trier. Que não se esperem as grandes pirotecnias do cinemão de Hollywood ao abordar a questão, universal e que volta-e-meia vem à baila — em “Melancolia” o que interessa é mesmo a trama, que ao contrário do que possa dar a entender, não se pauta por registrar o fim do mundo propriamente, mas a desagregação que se abate sobre uma família. Nos dois capítulos em que se divide a narrativa, “Justine” e “Claire”, em alusão às irmãs de Kirsten Dunst e Charlotte Gainsbourg, se passam histórias autônomas que parecem filmes sem qualquer vínculo um com o outro, mas que se entrelaçam. A primeira parte contempla o casamento de Justine e Michael; já a segunda retrata a histeria que o possível choque do planeta Melancolia contra a Terra provoca na família de Claire. O destempero de Justine decerto fomenta no público a suspeita de que o diretor deseja reportar as singularidades da vida da personagem, o que logo cai por terra ao se perceber como Von Trier mostra os demais membros de sua família. Parece que para o pai de Justine a única questão fundamental é reafirmar sua masculinidade alquebrada pela velhice lançando galanteios a toda mulher que lhe cruza o caminho; a mãe não disfarça sua frustração com o casamento (do qual não abdica), o chefe insinua que ela não será uma boa esposa, por ser uma funcionária exemplar; e o cunhado arrota na cara de todos que gastou os tubos ao bancar o regabofe. Como toda verdadeira obra de arte, “Melancolia” não se preocupa em apresentar solução para nada, tampouco caminhos para a expiação de possíveis erros. Como se estivesse num carrossel, rodando sempre na mesma frequência, com suas lâmpadas coloridas, o espectador fica hipnotizado. Uma vez que se embarca, todo o tempo do mundo parece pouco e se quer usufruir de cada instante daquele outro mundo – antes que as engrenagens sejam desligadas.

“A Estrada”, dirigido por John Hillcoat e cujo enredo é uma adaptação fiel do livro de Cormac McCarthy pelo roteirista John Penhall, toma por base a premissa de que numa realidade pós-apocalíptica alguma alma privilegiada — ou o seu exato oposto — há de resistir. No caso são pelo menos duas: um pai e seu filho. Os dois desgraçados erram por uma paisagem cinzenta e gélida, que parece inconformada com a insistência deles, carregando uns poucos mantimentos e uma arma, rumo ao litoral. Aqui, o fim do mundo não reserva ao espectador nenhum charme. O que dá o tom é descrença de tudo, visto que um perdeu a mulher e o outro, a mãe, e agora lutam para se manterem unidos — e vivos —, não por alimentarem algum vestígio de fé, mas por pura pirraça. É lógico que uma pletora de questionamentos éticos pulula na cabeça do homem, mas tudo pelo que ele anseia é chegar à costa em segurança, com o filho a tiracolo, e lá ganhar alguma retribuição pelo esforço. Não é pouca coisa. A maneira como a fotografia é trabalhada, com a alternância brusca de luz e matiz no presente com o colorido vibrante das cenas em flashback, servem para ressaltar o seu desalento. Como se a todo instante lhe assaltasse a dúvida sobre se permanecer vivo seria mesmo a melhor opção, já que tudo é pálido, a não ser o que não mais existe. As diferenças quanto à constituição da narrativa no romance e no filme se agudizam um pouco — e quem leu o livro sabe exatamente do que se trata —, mas “A Estrada” conserva a essência do filme de ideia ao priorizar os embates filosóficos do protagonista consigo mesmo, ainda que a luta pela sobrevivência o impila a esquecer as elucubrações e tomar atitudes práticas a todo momento. A trama pode oscilar em qualidade dramática, mas o herói segura a onda ao longo da história. Resta inegável que todas as suas atitudes se pautam pelas lembranças douradas da mulher, estendida num gramado. Em “A Estrada”, presente e passado se fundem a fim de projetar alguma perspectiva de futuro. Por mais que o protagonista se negue a admitir, essa é a sua esperança.

“Viagem Alucinante” é como o controverso diretor Gaspar Noé enxerga a jornada do homem no mundo. A humanidade é representada aqui por dois irmãos, órfãos desde a infância. Oscar é assassinado e Linda, a irmã que resta, segue a vida de modo inconsequente, se apresentando como stripper. Na existência pós-morte que se inicia, passado, presente e futuro se tornam um só e se manifestam sob a forma de visões que distorcem a realidade ou tornam-na mais ampla. O que se assiste é cuidadosamente pensado a fim de compor um painel multicromático, alguma coisa como um neon vivo refletindo momentos aleatórios da experiência de maximização dos sentidos vivida por Oscar graças a substâncias psicoativas, como o LSD e o DMT. Acompanhar a euforia falsa dessa narrativa é como embarcar numa viagem em que morte, êxtase, o tempo em vazão partida e a consciência sob realidades múltiplas parece ser a última chance quanto a encontrar uma razão para viver, ou ter vivido.

O jovem protagonista de “Waking Life” não consegue despertar do sono e começa a sonhar indefinidamente. Nessa sua vida paralela, encontra-se com pessoas da vida real e com elas divaga sobre os muitos estados da consciência humana, além de discutir acerca de filosofia e religião e em que medida elas impactam a vida dos indivíduos. O que se vê ali não é um filme real, mas cenas, paisagens e atores que foram coloridos, redesenhados e tiveram a imagem refeita graças a um software desenvolvido pelo diretor Richard Linklater em parceria com sua equipe, exatamente como acontece ao longo da edição de um desenho animado. O filme torna-se literalmente um sonho. É isso: Linklater conseguiu filmar um sonho e só pela genialidade da ideia este seu trabalho já merece ser apreciado.

Em “Eureka”, Shinji Aoyama se vale de um evento traumático a fim de tecer uma narrativa que discorre acerca das reviravoltas da vida e em como todos nós estamos sujeitos a elas ao realizar coisas tão banais quanto se deslocar de transporte público numa grande cidade. Foi o que ocorreu com os três protagonistas dessa história, únicos sobreviventes do massacre promovido por um psicopata, que tomado de uma fúria sem razão aparente, se apossa de um ônibus e dá azo a seus instintos bestiais. Makoto, o motorista; a estudante Kozue; e seu irmão mais velho, Naoki, conseguiram se safar, mas a vida, pândega, sempre tem um coelho na cartola. Makoto, depois de algum tempo, volta para sua terra, mas a decisão se lhe revela infeliz: a mulher já o havia deixado. Kozue e Naoki, por sua vez, foram abandonados pela mãe quando da morte do pai, num acidente de carro e, desde então, pararam de falar, não se sabe se colhidos pelo choque ou de propósito, e terminam sendo encaminhados a um orfanato. O motorista se resolve por tornar à cidade, a fim de reivindicar a guarda dos dois, levá-los para casa e, assim, garantir a todos a possibilidade de uma nova vida. Quando tudo parece estar enfim adquirindo algum grau de normalidade, o cadáver de uma mulher, assassinada de forma violenta, é encontrado pela polícia. As suspeitas recaem sobre ele, que não se conforma. Enquanto correm as investigações, Makoto revitaliza um ônibus e sai em fuga com as crianças. Como o próprio nome do filme sugere, a trama explora as várias descobertas que somos obrigados a fazer a fim de não sucumbirmos. O enredo, cheio de anticlímax, provoca discussões sobre violência, desajuste familiar, abandono parental e a arbitrariedade da polícia. Em “Eureka”, está na vitrine um Japão muito diferente do que o exibido por apresentadores de programas de televisão, que se deixam voluntariamente tomar por uma postura alienada quanto a tudo que diga respeito ao Oriente. Aqui, japoneses mostram o Japão como ele de fato é: uma nação com suas glórias, mas que igualmente tem suas desditas. Como qualquer outra.

A falta de alimentos também é um aspecto que deve ser abordado num cenário pós-apocalíptico, por que não? Em “Delicatessen”, uma distopia tão louca quanto saborosa, vislumbra-se uma sociedade em petição de miséria, em que comida vale os olhos da cara — e isso não é uma metáfora. Ao ex-palhaço Louison, alegoria de um mundo em que a ilusão não cabe mais, resta apenas o subemprego no prédio que abriga Delicatessen, um açougue — a ironia é mesmo uma constante ao longo da narrativa. Inquilino de um quarto na pensão do andar superior do mesmo edifício, o novo empregado do estabelecimento passa a ter um caso com a violoncelista Julie, cujo pai é justamente o dono do açougue, Clapet, que incorpora à perfeição o aspecto sanguinário do ofício. Louison passa a ser caçado pelo açougueiro — e essa também não é uma figura de linguagem -, pai ciumento e superprotetor, e desperta a cobiça dos demais habitantes do lugar, que planejam ganhar uns trocados com sua pouca carne. Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro, ex-diretores de clipes, se destacam nessa produção no que diz respeito à direção de arte e aos cenários. Tudo está no lugar certo, o plot do filme não chega a ser original, mas convence muito bem e o desempenho dos atores está acima da média. “Delicatessen” é divertido, sem ser tolo, e suscita a reflexão, sem ser enfadonho. Papa fina para os paladares mais exigentes.

“A Dupla Vida de Véronique” se configura como uma espécie de preâmbulo, de introdução ao que o diretor Krzysztof Kieslowski pretenderia com os filmes que vieram a constar de seu currículo, como se comprova na trilogia das três cores, Azul (1993), Branco (1994) e Vermelho (1994). Aqui, Kieslowski assume uma postura muito distinta da aura sagrada daquele conjunto, mas preserva o expediente de lançar mão de metáforas e símbolos, o que realça o aspecto passional de sua produção. Logo no começo da trama, se veem as luzes da cidade substituindo as estrelas num plano invertido, como se sugerisse a ideia de universos em confronto. Duas personagens, a francesa Véronique e Wéronika, polaca, são vividas pela mesma Irène Jacob. Kieslowski estabelece uma intersecção entre as vidas dessas mulheres, tomando a cautela de pontuar as diferenças entre uma e outra, a pouco e pouco mais evidente conforme segue a narrativa. A polaca, mais destacada no início, apresenta-se ingênua e mais suscetível a emoções, agindo sob a influência de seus impulsos e entregando-se às tentações, a encarnação da natureza dionisíaca da personagem. Já a francesa, que surge no segundo segmento, dá preferência à razão, tem um temperamento de contemplação frente à vida e controla seus ímpetos, trazendo à cena a parte apolínea da protagonista. Não se depreende do enredo se se trata de fato de duas mulheres ou das duas faces de uma mulher só. Uma responde aos estímulos da outra, as duas se retroalimentam e persiste a atmosfera enigmática da história. “A Dupla Vida de Véronique” encanta por isso: não se pauta por fornecer respostas, demandando do público que esteja sempre atento e sensível às constantes mudanças de postura da protagonista, de Véronique para Wéronika e vice-versa. O filme estuda a fundo o espírito cindido da personagem até que, finalmente, elas se tornam uma só. Verdadeiro poema sobre a dubiedade da alma humana, “A Dupla Vida de Véronique” é um tratado sobre o engano e a realidade, condições em eterno choque na vida do homem.