Carta a Proust (por seus 150 anos)

Carta a Proust (por seus 150 anos)

Não me sinto confortável em parabenizá-lo formalmente, Marcel Proust. Como um acadêmico que pesquisa, de maneira oficial, a sua obra, vejo-me em uma posição nada cômoda nesse dia 10 de julho de 2021, quando se comemora os 150 anos de sua chegada entre nós, de seu nascimento, em Auteil, nos arredores de Paris.

Eu não sou um pesquisador de doutorado que estudou Proust, e você sabe disso. Eu o estudo, em primeiro lugar, e por isso faço pesquisa em nível de doutorado a seu respeito, infinita pesquisa. Primeiramente, você, sempre você e seu livro, pois no seu caso, mais do que em qualquer outro, vida e obra constituem-se simbiose.

Sua coragem frágil, seu silêncio, sua força de lutar contra a morte mesmo diante de sua evidente inescapabilidade, morte que lhe rondou desde cedo, alçada na sua obsessão pela vida e curiosidade pela morte, fortificadas no incontornável: o tempo. Você repercute em forma de arte muitas das máximas sobre o tempo professadas por Aristóteles, em seu “Física”, e muitos de seus leitores insistem nessa ponte tortuosa e fácil dos dizeres de seu primo torto, Henri Bergson. Muitos insistem em lhe entender, e poucos tem a humildade de lhe conhecer. É que seu livro é infinito, e a sede por fama e reconhecimento é sempre limitada.

Nunca mais deixei de ler o seu livro desde que o li pela primeira vez, no Ensino Médio, aos 17 anos, sem saber que estava prestes a mudar a minha vida; não, mais do que isso, prestes a viver verdadeiramente, depois de o ler. Eu mal sabia que viver verdadeiramente não era uma meta, mas sim uma busca, uma recherche, uma procura, uma pesquisa, e sei, pela vida acadêmica, por você, por tudo o que de você veio, que viver dói como um doutorado turbulento; mas com você soube que não viver em busca da própria vida e de seu sentido é miserável por demais.

Desde criança eu amo a literatura. Tive a sorte de ter uma mãe versada naquilo que seria a minha vocação, e com disposição para fazer com que eu encurtasse o caminho e lesse, desde muito cedo, aquilo que interessava. Se há duas pessoas para as quais devo qualquer relevo em mim que mereça reconhecimento, são você e minha mãe. Ela, pela óbvia sensibilidade de perceber em uma criança um talento, e nele investir com leituras, incentivo, desafios, livros sem fim, os melhores. Tínhamos eu e ela conversas sobre isso, e não eram sequer partilhadas com outras pessoas para que, em uma país que não se lê, semblantes tortos para a nossa paixão não tirassem a criança dessa dádiva maravilhosa, que tornei minha profissão.

Você foi a segunda pessoa, e “apenas” por não ter desistido de nós, humanos com menos olhos e escuta do que você. Deve ter sido difícil ser desprezado nos salões que você retratou. Deve ter sido difícil esconder-se de sua sexualidade, até mesmo de sua mãe, mãe que você amou como eu entendo amar, com idolatria.

Hoje faz 150 anos que você nasceu, e se tivesse nascido junto com o seu livro, e eu junto dos dois e ali mesmo tivesse começado a ler — a ambos, por que não? —, eu tenho certeza, ainda não teria entendido a sua obra com a completude que almejo, porque eu não me canso de ler a seu respeito, a respeito de tudo o que você escreveu. Mas acho que, de certa forma, eu e você partilhamos de uma coisa que nos une mais — falo sem qualquer arrogância idiota dos salões ou da má academia (pois há a boa, como em tudo), mas com absoluto amor, gratidão a você, amizade: eu não me canso de lê-lo, pois sem medo de me parecer um excêntrico, o meu dia seguinte depois da última página, nesses 22 anos, tem sido ler a primeira. Ler a primeira, Proust, nunca reler, nem ler de novo — ler como quem nunca leu, porque eu de fato nunca li aquela primeira página depois de ter atravessado as três mil: distância jurássica, não entre as páginas, mas entre esses dois que se sabem mas não se conhecem mais após a busca do tempo de tudo e todos.

Solidão que me causas, pois fico sem mim depois de lê-lo e saio em busca de quem eu posso vir a ser, pois você me modificou todas as vezes, me fez nascer e morrer, acreditar e substituir as crenças; amar e odiar, e deixar de fazer essas duas coisas; você me fez querer mais das pessoas, das coisas, da vida, da matéria, da memória, do tempo e da narrativa, do sono e do sonho, dos beijos de boa noite, dos amanheceres, das bebidas e comidas, das festas, dos salões, das benesses da saúde, das nuanças da doença, do desejo conquistado, da frustração, da ilusão, do acerto, do engano, da música, da pintura, do teatro, de Corneille, de Molière, de Shakespeare, George Sand e até dos que você sequer conheceu.

Sem saber, com a disparidade entre mundo interior e exterior, fez-me amar mais a James Joyce do que a você. O irlandês, que lhe incomodou com o fumo dentro de seu transporte na volta de um salão no único encontro que tiveram em vida — ele foi à sua despedida, o nome dele consta no livro de presença, e o homenageou em seu último livro —, com sua trajetória errante. Sabemos o quanto ele é mais sedutor do que a sua vida, mas até nisso nos entendemos, pois somos um fracasso em matéria de conquistar pessoas e amores.

Proust, eu não poderia ter outro autor, outro objeto de pesquisa, outro livro senão o seu, despudorado em ser prolixo, incapaz de bajulações, a não ser as que nos deixam em situações embaraçosas. Enganam-se os que te conhecem só pelo que falam de você ao lhe dizerem bajulador, e fizeram a leitura desavisada: ora, bajulador só será se não se notar que foi. Terá o bajulador ardil de costurar bajulações que se assemelham a amizades.

Você era um inseguro genial, maior do que as pessoas ao seu redor, incapazes de verem a sua ótica. Ao menos na insegurança, nos parecemos. Os que você amou, amou de fato. Eu te imitei, amei de fato a quem amei e aprendi contigo a jogar os pratos para o alto se meu coração pedir. Se Paris inteira lhe injuriou por um tempo, mais uma, meu amigo em que estamos juntos, pois os recalcados sem motivos de minha cidade natal amarraram o meu nome na boca de sapo do brejo que seu tradutor, Manuel Bandeira, sequer imaginou que existisse.

Claro, Proust, nós não somos parecidos: você me fez nas minhas parcas possibilidades diante das suas, infinitas. Minha vida e destino é tentar imitar você mesmo sabendo que sou incapaz de conseguir, como faço em minha religião cristã, tentando o impossível, ser como Cristo. Como diz São Tomás de Aquino, essa tentativa é que é santa. No seu caso, essa tentativa é o que me move e me explica.

É o mínimo — dar-lhe minhas tentativas — para lhe agradecer à altura de sua arte.

Um obrigado, salva de palmas, parabéns, é pouco. Para honrá-lo só indo, para sempre, em busca do tempo perdido de ser como a sua arte, mesmo sendo menores do que ela. Sempre.

Seus 150 anos são menores do que 150 páginas que você tenha sonhado gozar escrever. Maior do que o tempo.