É difícil definir a vida. Quanto mais planos fazemos, mais eles teimam em nos escapar por entre os dedos, e a vida segue seu curso, soberana, indiferente às nossas vontades. Muitas vezes, o mundo dá voltas e voltas e a gente para no mesmo lugar. Em tantas outras, basta botar o nariz para fora da janela e, pronto!, o que tínhamos como certo, como estabelecido, acabou-se. Para sempre. A vida é um minuto de felicidade perdido num relógio frenético, cuja badalada final não conseguimos ouvir. A vida é trágica, a vida é engraçada, a vida é única. A vida é uma piada que não faz o menor sentido e que quase nunca nos provoca risadas no final. O inesperado sempre nos reserva uma surpresa qualquer. Quando ruim, o sofrimento é dobrado e parece que não vai ceder nunca. A gente se lamenta, padece, chora, se desespera, e de nada adianta. Em sendo assim, é melhor se concentrar nas boas surpresas da vida — até porque são elas as mais raras. E, cá pra nós, não é tão difícil assim se surpreender com a beleza da vida, né? Um bem-te-vi que canta num tom um pouco mais agudo numa manhã de sol, uma criança pequena que nos sorri enquanto recebe um afago da mãe, a flor que tardava a desabrochar e finalmente se abre para o mundo. É o que nos resta: achar graça das poucas coisas que a vida nos oferece de belo. As reviravoltas que a vida dá caem como uma luva para um roteiro de filme e a lista da Bula de hoje apresenta cinco histórias cheias de idas e vindas, níveis de tensão que aumentam e arrefecem conforme a necessidade da cena, anticlímax a cada meio minuto. “Mãe!” (2017), do diretor Darren Aronofsky, traz a história de um casal que tenta ter um filho e, quando afinal consegue, uma série de eventos sombrios começa a aterrá-los. Já em “A Chegada” (2016), de Denis Villeneuve, o espectador se depara com uma trama tão surpreendente quando genial, em que uma especialista em línguas é requisitada a fim de esclarecer as mensagens deixadas por extraterrestres. Os filmes estão todos no catálogo da Netflix, se sucedem em ordem contracronológica, do mais recente para o lançado há mais tempo, e não seguem outros critérios de classificação. Não adianta tentar se munir de dente de alho, pé de coelho, figa. Quando a vida resolve nos aprisionar num labirinto, só nos resta encontrar a saída.

Andy foi mordido por um zumbi e agora está infectado por um vírus mortal. Ele tenta desesperadamente salvar a filha Rosie do mesmo destino e, para tanto, tem apenas 48 horas para encontrar um lugar seguro e assim garantir a vida da menina. A solução talvez seja ir para uma tribo aborígene isolada, mas para poderem ser incorporados ao grupo, ele terá que ajudar uma jovem indígena a vencer um perigoso desafio. Apesar de este ser um filme de zumbis, o roteiro vai mais além e aborda questões não muito assíduas do gênero, como compaixão, perseverança e fé. Andy é o típico herói de tramas desse filão, carismático, confiante e disposto a sacrifícios sobre-humanos quando a vida de quem ama está em jogo.

Em “Durante a Tormenta”, o diretor Oriol Paulo continua firme em seu propósito de submeter a narrativa às mais impensáveis reviravoltas, distorcendo a ordem natural do tempo numa história de ficção científica que se bifurca entre 1989, no dia da derrubada do Muro de Berlim, e 2014, 25 anos depois. Os dois caminhos se cruzam quando da precipitação de uma tempestade prolongada, cuja duração deve ser de três dias. A enfermeira Vera, seu marido David e a filha do casal, Gloria, se mudam para uma nova casa. Ao fazer uma faxina, Vera encontra fitas de vídeo antigas, registros feitos por Nico, um garoto que vivia ali com a mãe há muitos anos. A enfermeira faz uma busca na internet e descobre que Nico já morreu, atropelado. Por meio de uma televisão velha, Vera e Nico conseguem ver um ao outro. A fim de evitar sua morte, ela o adverte sobre seu destino, mas, ao acordar no dia seguinte, não reconhece mais sua vida: não é mais enfermeira, mas neurocirurgiã; David está casado com outra mulher, e ela não tem filhos. A viagem no tempo é, na verdade, apenas metafórica. O que Oriol pretende é deter ao máximo a atenção do espectador e, para isso, oferece uma pletora de eventos inusitados ao longo do roteiro. O público é levado a acreditar que foi transportado para uma outra realidade com a protagonista. Como está completamente deslocada, exilada numa vida que não é a sua, Vera precisa retomar sua verdadeira história. Todavia, só o irá conseguir se convencer as pessoas à sua volta sobre o que aconteceu. Ao longo do enredo, se desdobram várias subtramas, mas a um ritmo de fácil digestão para a audiência, de forma que cada personagem seja absorvido ao máximo. Oriol Paulo propõe uma espécie de jogo com o espectador, torcendo a história conforme sua vontade, nessa metáfora acerca das incertezas da vida. Com “Durante a Tormenta”, o diretor confirma sua obsessão em apontar os caprichos do passar das horas, expediente também usado em “Contratempo”, e desenvolve uma questão interessante: o homem se submete ao tempo, mas raramente ganha alguma coisa em troca. O tempo dispõe do homem, e são poucos os que ganham sua confiança.

Darren Aronofsky talvez seja um dos diretores mais sofisticados da história do cinema, predicado que se confirma ao analisar-se trabalhos como “Pi” (1998), “Fonte da Vida” (2006), “Réquiem para um Sonho” (2000) e este “Mãe!”. Em “Mãe!”, o diretor se esmera em compilar um calhamaço de ideias sobre a criação da humanidade, tomando por base o cotidiano de um casal o seu tanto apagado, opaco, levando uma vidinha frugal e sem uma razão maior. A personagem principal, Veronica, é casada com um homem mais de vinte anos mais velho, e é ela a responsável por prover as necessidades materiais e afetivas do casal, já que ele, poeta medíocre, tenta há todo custo conseguir inspiração para escrever e a empreitada nunca toma corpo. A moça não parece enfrentar quaisquer conflitos quanto à condição em que ela e o marido vivem; sua frustração é outra. Tal como o marido persegue a obra de sua vida, ela deseja com o mesmo afinco se tornar mãe. Ainda que nem um nem outra obtenham êxito em suas respectivas demandas, a vida transcorre sem maiores sobressaltos. Até que um homem, aparentemente sem um lugar onde passar a noite, bate à porta deles. O poeta, famoso por seus versos humanistas, o acolhe. Com a chegada do intruso, todo o cenário de uma pretensa harmonia rui e a casa adquire um aspecto fantasmagórico, sendo tomada por tipos os mais esdrúxulos, como se uma legião de faunos se apossasse daquele paraíso. Tudo passa a ficar um pouco menos confuso a partir do segundo ato, desencadeado com a gravidez da protagonista, malgrado o jogo com que Aronofsky pretende enredar o espectador seja perigoso demais. Aqui, o público deve equilibrar com muito zelo razão e sentimento a fim de não se permitir sequestrar por nenhum dos dois. Tudo vai sendo posto em pratos limpos sem pressa, mas de um jeito bastante óbvio, de modo que não se possa dar azo a qualquer interpretação delirante. Do ponto de vista técnico, o roteiro também foi milimetricamente pensado para encantar. A câmera persegue Veronica, como um predador, não deixando escapar uma expressão sequer. À medida que o desespero dela se exacerba, mais viva a casa se torna e mais ameaçadora também. Chama atenção a trilha sonora, composta pela papisa do punk, Patti Smith, fundamental por conduzir a audiência em meio a um amálgama de sensações, refreando e acelerando a intensidade dos eventos em cena. O desempenho de Jennifer Lawrence, intérprete de Veronica, é um capítulo à parte. É impressionante que tão jovem ela já tenha uma vasta quilometragem, arrebatando um número crescente de admiradores e defendendo um papel melhor que o outro ao se tornar a própria personagem, conforme se atesta em “O Lado Bom da Vida” (2012), pelo qual venceu o Oscar de Melhor Atriz. Seus acessos de espanto mediante a bestialidade dos penetras que lhe tiram o sossego sem clemência são inesquecíveis. “Mãe!” é uma alegoria sobre uma das emoções mais plenas de sentido a se concretizar na vida da maioria das mulheres – por mais que o mundo tenha girado tanto e tão depressa. E sobre do que essas mulheres, santas ou não, são capazes para manter a salvo o fruto de seu ventre.

Extraterrestres descem a diversos pontos da Terra sem dizer exatamente o que pretendem, mas com propósitos nada altruístas. É aí que entra a linguista Louise Banks (Amy Adams), desafiada a decifrar as mensagens muito sutis — e, se verá depois, ameaçadoras — dos alienígenas. Em “A Chegada”, um suspense psicológico não muito distante da ficção científica que o consagrou, o franco-canadense Denis Villeneuve imprime sua marca com uma produção muito bem cuidada, elogiada pela crítica, mas preterida pelo público por ser um belo enredo, mas cabeça demais. Se você não tiver medo de filmes que apresentam temas a princípio recorrentes, mas com uma abordagem inteiramente sofisticada e original, não deixe de assistir a essa joia rara do bom sci-fi.

“Um Contratempo” segue o padrão dos filmes de suspense policial espanhóis produzidos nos últimos anos: uma história com protagonistas especialmente bonitos, um anticlímax atrás do outro, locações soturnas e a dose certa de violência — neste caso, dosada até demais, o que não chega a ser algo que deponha contra o trabalho do diretor Oriol Paulo, um discípulo aplicado dos mestres Alfred Hitchcock e Brian de Palma. A premissa é simples, quase simplória: um sujeito diz ser acusado por um crime que não cometeu e procura a melhor advogada que encontra. Ela faz questão de saber toda a história, com todos os detalhes. Ao passo que ele se explica, ela o contesta —- afinal, antes ela que a promotoria, ou o júri, ou, o pior, o próprio juiz. Tudo tem de sair de forma a fazê-lo parecer de fato inocente e, assim, se livrar da cadeia. O caso é que, quanto mais ele fala, mais se enrola (até porque a situação toda é mesmo um grande enrosco), mais o crime se distancia de um desfecho satisfatório para sua defesa e mais controversa se torna a advogada, sem que o espectador saiba ao certo quem desempenha que papel ali.