A Cosac Naify fazia um trabalho primoroso na edição de livros de escritores estrangeiros. Publicava posfácios, críticas e informava o que havia sido lançado do autor em português, dando mostras de que não se importava com a concorrência, e sim com o intercâmbio cultural. A Companhia das Letras acaba de publicar uma edição de três livros da poeta americana Louise Glück, num só volume, mas sem os mesmos cuidados.
As traduções da poesia de Louise Glück, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2020, são de alta qualidade — um trabalho meritório de Bruna Beber, Heloisa Jahn e Marília Garcia (cada uma traduziu um livro). Talvez não seja possível sugerir que tradução de poesia é “precisa”, mas, no caso, há um alto grau de acertos — o que pode ser conferido dado o caráter bilíngue da edição.
O que falta à edição patropi é uma apresentação da poesia da autora, dado o fato de ser pouco conhecida no Brasil. Há versões esparsas na internet e a tradução de cinco poemas, feita, com perícia, por Maria Lúcia Milléo Martins e publicada no livro “Antologia de Poesia Norte-Americana Contemporânea” (Editora UFSC, 262 páginas), organizada por José Roberto O’Shea.
Se informa que Louise Elisabeth Glück é professora nas universidades Yale e Stanford, a edição não reporta sequer que é norte-americana — nascida em Nova York — e tem 78 anos. Sequer se fica sabendo que a poeta é descendente de judeus húngaros. Esquecimento, espera-se, que não deve ser uma maneira de “esconder” o pequeno-gigante Israel.
Pode se argumentar que a poesia de Louise é sua apresentação — o que é convincente (entretanto, mesmo a poesia marcadamente autobiográfica ou confessional é “distorcida” pela imaginação criadora — o que acaba por tornar o singular universal). Mas os leitores em geral não pensam assim e, portanto, querem saber mais a respeito tanto da poesia quanto da persona que a criou.
Na orelha do livro, local inadequado para se apresentar uma escritora do porte de Louise Glück — uma gigante, sem dúvida (que lembra, aqui e ali, Frank O’Hara, na abordagem direta, perspicaz e detalhada do cotidiano, fazendo poesia sobre o que não parece poesia) —, se escreve: “Louise Glück tem a extraordinária habilidade de jogar luz sobre os aspectos mais variados — e por vezes sombrios — da vida. Sua poesia é capaz de abarcar a melancolia da infância, as primeiras revelações da adolescência, as paixões fugidias, os casamentos, as separações, os desenganos da vida adulta, os traumas, o luto”.
“Poemas 2006-2014” (510 páginas) contém “os três títulos mais recentes da poeta. “Averno” (2006) “retoma o mito de Persefone e atualiza a trajetória de uma jovem deusa que, sequestrada, é obrigada a viver no submundo”. “Uma Vida no Interior” (2009) “retrata o dia a dia dos moradores de uma pequena cidade no campo e o modo como se relacionam entre si e com a natureza” (diga-se que “cidade no campo” é uma informação da editora). “Noite Fiel e Virtuosa” (2014) “aborda o envelhecimento, os vínculos familiares e a perda da inocência”.
Como estou com 60 anos, envelhecendo (fico a pensar: tenho mais dez anos de vida, com saúde e cérebro alerta?), “Noite Fiel e Virtuosa” (título do livro e de um longo poema — que versa sobre a morte e sua relação com a vida, com aquilo que fazemos com nossos mortos, que sobrevivem em nós, e nossas vidas) me tocou mais. A tradução de Marília Garcia é de primeira linha. Este livro — tão belo, delicado, doloroso e complexo — vale por toda a edição. Há uma qualidade média explícita nesta obra. Nem mesmo grandes autores conseguem, com frequência, manter o nível em todos os poemas.
Trecho de Noite Fiel e Virtuosa: “Continuei abalado com/o mistério do meu silêncio;/não tanto por minha alma ter se ausentado/mas sobretudo por ela ter voltado de mãos vazias —//Ela, a alma, vai tão longe,/é como uma criança que procura a mãe/num supermercado —”. O uso do travessão lembra Emily Dickinson, mas as duas são, a rigor, poetas de linhagens diferentes. Talvez em “Uma Vida no Interior” haja maior proximidade entre ambas, cada qual com sua singularidade. Há um caráter “fabular” (e até de romance) na poesia de Louise Glück que, por certo, não há na poeta do século 19.
Finalmente, apesar de minha reclamação sobre a falta de uma apresentação, de um contexto para a poesia de Louise Glück, sugerindo sua “singularidade” e seu “parentesco” poéticos, só resta louvar a alta qualidade da edição, quer dizer, das traduções.