Ninguém pode questionar a bagagem intelectual de Karl Marx (1818-1883). Marx, autor de uma tese de doutorado em filosofia aos 23 anos, era um homem de cultura invulgar, que ao longo da vida universitária se destacou dos demais estudantes por matricular-se em disciplinas optativas como história da arte e literatura. Seu envolvimento com a política também começou cedo, em 1843, quando Marx, aos 25 anos, fora expulso de sua Prússia natal, território sob domínio alemão. O filósofo fora vítima da censura, mas não se calara: continuou a defender a democracia, agora em Paris, para onde se mudara com a família, publicando artigos num jornal que circulava em toda a França. Pode-se tecer críticas de toda natureza ao socialismo, mas afirmar que Marx era uma besta, como Nelson Rodrigues (1912-1980) dissera dele certa feita, é besteira. Seus estudos chacoalharam bastante a pasmaceira e o comodismo da Europa, perdida em meio a tantos regimes autocráticos disfarçados sob o pesado manto da monarquia desde a Idade Média. Louvem-se em Marx sua coragem, seu caráter aguerrido de não escapar aos bons combates, sua retórica, sua inteligência, qualidades das se quais valia a fim de conquistar adeptos para sua causa em todo o mundo. Karl Marx seduziu muita gente dessa maneira e parece que o cinema foi no embalo. Há excelentes filmes que tratam, ainda que de forma superficial ou o seu tanto jocosa, das crenças de Marx. Para quem quer deixar de lado o preconceito e conhecer um pouco mais do que falava o filósofo alemão, a Bula hoje destaca dez desses filmes. “Adeus, Lênin!” (2003), do diretor alemão Wolfgang Becker, faz uma sátira à inadequação da filosofia marxista fora do mundo das ideias, ao contar a história de um filho que faz de tudo para que a mãe, num leito de hospital convalescendo de um infarto, não saiba que caíra o Muro de Berlim. Já o premiadíssimo “Parasita” (2019), do sul-coreano Bong Joon-ho, primeira produção estrangeira a ganhar o Oscar de Melhor Filme, também envereda para o lado do real maravilhoso ao apresentar a história de uma família pobre que vive nos subterrâneos de um casebre em Seul. Os títulos aparecem do mais recente para o mais antigo e não seguem critérios de preferência. Cinéfilos do mundo, uni-vos!

“Parasita” é um filme de ideias. É impossível classificar sob uma única perspectiva o excelente trabalho do sul-coreano Bong Joon-ho. Mestre em apresentar obras com forte cunho de crítica social, aqui o diretor compõe uma sátira plena de lirismo, lances de humor, suspense, ação e violência, culminando num soft terror potente. Uma cornucópia de tons narrativos, portanto. A história começa narrando o cotidiano dos membros da família Kim, aninhados feito ratos no buraco que têm de chamar de casa. Ao saberem que os Park, o oposto do que são e exatamente o que desejam ser, precisam de um tutor para a filha, passam a elaborar um plano a fim de fazer o caçula Ki-woo passar como o candidato ideal para o posto. E isso é apenas o começo: a filha mais velha, Ki-jung também quer sua parte nesse latifúndio e forja os documentos que certificam que ela está apta a assumir o emprego de professora de arte do caçula dos Park. Por sua vez, o pai e a mãe também querem fazer parte do esquema, tomando o lugar do motorista e da governanta. O plano parece que vai dar certo, mas os Kim não contavam com a surpresa nada agradável que surgiria debaixo dos narizes deles.

O Estado está sempre querendo nos passar a perna. Essa poderia ser a mensagem capital de “Eu, Daniel Blake”. O personagem-título, carpinteiro afastado do trabalho depois de um infarto, peregrina de repartição em repartição em busca da licença que lhe garantiria o direito ao benefício previdenciário. Em sua saga kafkiana, Blake tenta administrar o desespero, a descrença, a revolta com o sistema que o oprime sem justificativa. Ao contrário do que possa dar a entender, o filme não se deixa embarcar na sanha de demonizar a direita e defende que o problema é estrutural em diversos países cujos governos ignoraram solenemente o fato de suas populações estarem vivendo cada vez mais e, por isso, precisam da ajuda do governo por mais tempo, sem contar casos como o de Blake. Seu único alento é o contato que passa a travar com Katie, mãe solteira com um terço de sua idade que enfrenta as mesmas dificuldades que ele. Só aí ele se dá conta de que sua vida não é tão ruim quanto supunha.

Ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1964, Martin Luther King Jr. (1929-1968), reverendo da Igreja Batista, foi uma das figuras centrais no combate ao racismo e nas reivindicações pela plenitude dos direitos civis para negros nos Estados Unidos. A fim de dar mais visibilidade ao movimento, no ano seguinte Luther King organizou uma marcha de que participaram cidadãos de todas as etnias e fiéis das mais variadas religiões, de Selma, no Alabama, a Montgomery, capital do estado. Em “Selma”, a diretora Ava DuVernay conta a história dos bastidores da marcha, empreitada levada a cabo depois dos assassinatos dos militantes negros Malcolm X, Jimmie Lee Jackson e James Reeb, também mencionando a láurea recebida por Luther King, mas se concentrando nas negociações com o presidente Lyndon B. Johnson (1908-1973) quanto a garantir a sanção de uma emenda que possibilitasse o poder de voto a “pessoas de cor”, segundo a terminologia em voga à época. Ao longo da trama, acompanha-se em detalhes a destreza do reverendo em seus encontros com Lyndon Johnson, a ênfase com que discursava, sempre pregando um comportamento pacífico, e suas relações pessoais, com a mulher, Coretta, sempre apavorada frente às constantes ameaças que o marido recebia, e com os amigos mais próximos, Abernathy, Young, Orange e Nash. Durante o filme, surgem na tela inscrições que facilitam a compreensão do público no que tange a datas e em que circunstâncias se dava cada evento, dados do próprio FBI, que, incansável, estava sempre no encalço de Luther King, no intuito de detê-lo com uma desculpa qualquer. Histórias de filmes como “Selma” parecem mera ficção — especialmente para a população negra mais jovem, já nascida num mundo em que cidadãos negros conquistaram posições de poder, a Presidência dos Estados Unidos, inclusive —, mas nos lembram de um passado que volta-e-meia teima em dar as caras. Para se virar essa página definitivamente, é necessário o engajamento de todos, independentemente do nível de melanina que sua pele apresenta.

O ofício mais antigo do mundo já viveu dias mais gloriosos. No início do século 20, o bordel L’Apollonide, a última casa de tolerância de Paris, está prestes a fechar. O filme se propõe a escrutinar a vida de todos os personagens a orbitar nesse universo, as prostitutas, clientes dos mais variados gêneros, a cafetina responsável por administrar a casa. O lupanar é um mundo a um só tempo feérico e obscuro, em que existem homens apaixonados por mulheres que nunca irão desposar, e os as que veem como um simples brinquedo e dele tiram a maior vantagem que podem. Em meio a tudo isso, as meretrizes, dividindo umas com as outras confidências, anseios, apreensões e mágoas. Escrito e dirigido por Bertrand Bonello, “L’Apollonide — Os Amores da Casa de Tolerância”, estreou sob o signo de uma polêmica o seu tanto forçada, e sua participação no Festival de Cannes de 2011, passou em branco. Entretanto, os que se abrem para questões sobre as quais não têm entendimento se veem diante de um filme belo como poucos, que vai muito além de retratar a pretensa vida fácil de um século atrás e sopra temas de teor filosófico como as constantes mudanças pelas quais passa a sociedade ao longo do tempo e suas consequências, inclusive na vida particular dos indivíduos.

Em “Filme Socialismo”, Jean-Luc Godard (1930) continua fazendo o que faz como ninguém, há mais de sessenta anos: provocar. O diretor instiga o público, brinca com ele, como a propor um jogo, uma espécie de quebra-cabeça a fim de saber de que jeito vai se apresentar a imagem no final. Godard é mestre em mostrar ao espectador novos horizontes, novas percepções acerca do cinema e, assim, transformou o jeito de se apreciar a sétima arte. O filme é um arrazoado de ideias emboladas, cabendo a quem assiste dar a interpretação que melhor lhe convier. Ao se levantar um assunto, surge alguma representação pictórica. A história se divide em três segmentos. No primeiro, vê-se um navio singrando o Mediterrâneo. Passageiros falam de filosofia e história, enquanto outros estão dançando (destaque para a poetisa punk Patti Smith, com um violão a tiracolo). No segundo tomo, uma família interiorana participa de algo como um reality show na tevê. Há uma garota lendo Balzac num posto de combustível, e uma lhama, amarrada a uma bomba de gasolina (?!). No último fragmento, Godard lança mão de imagens de faroestes americanos antigos, fitas de Charles Chaplin e do clássico russo “O Encouraçado Potemkin” (1925) — filme-fetiche de marxistas ao redor do mundo em todas as épocas — no intuito de linkar a narrativa a tópicos como globalização, conflitos israelo-palestinos e insegurança alimentar. E no lugar do “The End”, a frase “Sem comentários”. Mais Godard impossível.

Ao longo da guerra fria, o mundo fica rachado entre duas ideologias: o capitalismo americano e o socialismo da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). A Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial foi o país que mais sentiu os efeitos da disputa, o que resultou, em 13 de agosto de 1961, na sua divisão em duas partes, por meio de um muro na capital Berlim: a Alemanha Oriental, adepta de um regime de inclinação marxista, e a Alemanha Ocidental, capitalista. A Segunda Guerra acabara, a guerra fria também, mas o Muro de Berlim permanecia impávido, como se as grandes transformações pelas quais passou o mundo não tivessem ocorrido, o que deixava esperanças quanto à volta do velho regime em fogo brando. O diretor Wolfgang Becker e o roteirista Bern Lichtenberg partem desse argumento central para contar um drama de família em “Adeus, Lênin!”. Durante as manifestações pela queda do Muro, Christine Kerner, mãe solteira de dois filhos adultos e socialista convicta e ferrenha, assiste pela tevê à detenção de Alexander, um de seus filhos, que prega a reunificação alemã. Christine sofre um infarto, é hospitalizada e fica em coma por oito meses, tempo bastante para que o Muro fosse derrubado. Os médicos são taxativos: a paciente não pode se exaltar; se ela tiver outro ataque do coração, decerto não resistiria. A partir de então, paira um dilema: como fazer com que Christine não tome conhecimento da derrota do socialismo? Num mundo cada vez mais globalizado — e agora também a própria Alemanha aberta a esse mundo — essa era uma tarefa inglória, mas Alexander se desdobra em nome da recuperação da mãe. É memorável a cena em que ele e alguns amigos gravam um vídeo numa biblioteca pública à guisa de gabinete presidencial, como se falassem em nome dos antigos mandatários. Os esforços de Alexander não frutificam, o final não é feliz, mas a mensagem é: o amor pode curar.

Baseado no conto “Eight O’clock in the Morning” (1963), de Ray Nelson, o personagem central é um operário que abandona o Colorado em que nasceu e cresceu e se muda para uma grande cidade, à procura de melhores condições de vida. Durante uma operação policial chocantemente violenta, a polícia destrói todo um quarteirão do bairro pobre em que ele passa a viver, talvez o único branco em meio a uma massa de negros e latinos. No corre-corre entre os escombros, ele se depara com um par de óculos escuros que lhe permitem enxergar o que há por trás da capa de humanidade de certas pessoas, e não gosta do que vê. Além de ser capaz de desvendar a verdadeira natureza desses indivíduos, consegue também decodificar as mensagens subliminares cifradas transmitidas por eles em outdoors e pela televisão, a fim de dominar o mundo. O candidato a salvador do homem junta-se a um companheiro de trabalho e os dois passam a liderar um movimento de resistência. “Eles Vivem” é o próprio filme de autor, engajado, que serve de alegoria quanto a mostrar a alienação da maioria esmagadora da população mundial, sempre sequiosa de um messias. Não é tolice pensar que John Carpenter fez da história mais que uma sátira. O filme é um clamor em defesa dos revolucionários do mundo.

A epopeia de Bernardo Bertolucci, com mais de oito horas de duração na versão do diretor, compõe um vasto painel do século 20, desde seu ano inaugural até o desfecho de sua primeira metade, ao findar a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Isso não é à toa: Bertolucci pretende com essa escolha explicar o surgimento e a perduração do fascismo na Itália — até hoje cindida entre os que se inclinam a apoiar o governo e aqueles que simplesmente têm asco de política, seja ela feita por quem for. E se o fascismo é o mote central da narrativa, nada mais óbvio que ter ido filmar na Itália. O esboço de tudo começa com os confrontos entre lavradores e grandes proprietários de terras no princípio do século e a escalada de ataques de uns contra os outros. A velha — e equivocada — máxima do comunismo representando o bem e todo o resto como a face perversa da humanidade, encarnada aqui pelo regime de Benito Mussolini (1883-1945). Personificam um e outro lado Olmo, filho de camponeses, e Alfredo, filho de latifundiários. A amizade entre os dois é fortemente abalada ao se encontrarem, como se por geração espontânea, cada qual numa trincheira da disputa. Há lances memoráveis ao longo da trama, toda pontuada por cenas de apuro estético acima de qualquer ideologia, feito de Vittorio Storaro — um dos maiores profissionais da fotografia no cinema —, bem como, do ponto vista narrativo, a do velho fazendeiro que seduz uma ninfeta, filha de um seu empregado, mas não conseguir finalizar o ato, numa metáfora que explicita a impotência de Mussolini. A Itália é, ainda hoje, uma nação dividida em duas partes, e partes que se odeiam, como ensina Ernesto Sabato (1911-2011) em seu “De Heróis e de Tumbas”. O sonho da conciliação voltada a um projeto comum, que nunca se concretiza, decerto é a raiz do gosto por práticas antidemocráticas, mesmo no seio de uma democracia inquestionavelmente consolidada. O Brasil que se cuide.

Pier Paolo Pasolini passou quatro anos filmando, editando, escrevendo, reescrevendo e novamente filmando “Pocilga”. O filme estreou em 31 de agosto de 1969, no Festival de Veneza, mas na prática se antecipou aos acontecimentos de maio de 1968, que culminaram na descrença do marxismo e na consequente ascensão de forças reacionárias à esquerda e à direita, tema abordado pelo longa, ao menos sob a forma de alegoria. Considerado por Pasolini como uma contestação à sociedade de consumo, a práticas autoritárias, ao “obedeça para viver”, a trama se configurou como um de seus trabalhos mais exóticos, não por questões de fundo moral — “Saló” e “120 Dias de Sodoma” são muito mais chocantes —, mas por associar psicologia, política e sociedade numa tríade que rege tudo o que acontece sob o sol e é a responsável tanto por seu sucesso (de fachada) da civilização como pelo seu inegável fracasso. São levados à tela dois enredos em paralelo, um que preza o silêncio, no século 16, e outro, assumidamente verborrágico, no século 20. As críticas ao consumismo, à economia de mercado e, claro, ao próprio capitalismo, se fazem presentes em ambos os cenários, cada qual com um peso. O silêncio é mesmo de ouro, conforme a velha máxima, e por meio dele se pode apreender a relação entre uma e outra época. O homem é mostrado a nu, sem fantasias, um silvícola primitivo e antropófago, por um lado, e em guerra, adepto de uma religião que lhe empana a razão, por outro — ambos selvagens. “Pocilga” é um enigma de difícil resolução, mas a depender da inteligência do espectador, pode se converter numa bússola para um norte menos turbulento.

Talvez seja o caso de se dar um pequeno spoiler, a fim de mensurar a importância de “Doutor Fantástico” para a história do cinema e a genialidade de seu diretor, Stanley Kubrick (1928-1999): uma sucessão de explosões atômicas com “We’ll Meet Again”, ou “nos encontraremos de novo” ao fundo, toma posse da tela. Tudo friamente pensado para chocar. A canção, de 1939, fazia alusão à partida dos soldados para a frente de batalhas da ainda insipiente Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A letra dizia também que “vamos nos encontrar novamente, não sei onde nem quando” continham esperança, mas igualmente melancolia, já que muitos não voltariam com vida. Kubrick apresenta com “Dr. Fantástico ou Como Aprendi a Parar de me Preocupar e Amar a Bomba Atômica” uma trama repleta do mais fino humor negro por meio de uma sátira política impressionantemente original. No enredo, o general Mandrake, dominado por delírios de poder, passa a acreditar que uma conspiração comunista está em curso. Para conter a ameaça vermelha, ele ordena o bombardeio da Rússia, o que degringola num conflito nuclear. Por sua vez, na intenção de refrear o lunático, o presidente dos Estados Unidos e o Pentágono tentam contornar a situação e congelar a iminência de mais um enfrentamento entre nações. Muito mais que uma paródia hilariante sobre chefes de Estado cheios de problemas de ordem psiquiátrica que atiram seus povos a situações as mais impensadas e sangrentas, “Doutor Fantástico” fala, por meio do talento sem igual de Stanley Kubrick, da força da intolerância num mundo que parece rumar decidido de volta ao Medievo. Cada cena tem uma informação saborosa, como nas sequências em que se vê o general Mandrake reunido com seus subordinados na Sala de Guerra, na qual aparece ao fundo uma placa com os dizeres “A Paz É A Nossa Profissão”. Na guerra, a primeira vítima é a verdade.