A vida é difícil, todos sabemos. Como se não bastassem os problemas tão comezinhos do dia a dia — pagar contas, administrar os conflitos que inexoravelmente surgem nas diversas situações, uma ou outra doença que se impõe ao longo da jornada -, precisamos lidar também com as questões que surgem da casca para dentro. A alma do homem é cheia de meandros, reentrâncias, lugares tão escondidos e tão poucos iluminados que ninguém é capaz de acessar. Há quem encare problemas de qualquer natureza como uma forma de se autoconhecer, se testar, se superar, saindo, em correndo o ouro sobre e azul, muito mais resistente para a próxima dificuldade ao final do processo. Por outro lado, existem os que simplesmente bloqueiam a mínima possibilidade de que passe um feixe de luz sequer por entre esses monólitos: quanto mais encalacrado está, mais fica e, pior, mais gosta. Depreender que a vida é uma luta desigual, em que não podemos fazer nada e só nos cabe lamentar — e resistir — pode ser uma maneira de tomar o assunto. Grandes pensadores e artistas foram niilistas convictos e aferrados, ainda que não o alardeassem e, muito menos, o quisessem empurrar goela abaixo dos outros, a exemplo de Friedrich Nietzsche (1844-1900), que legou textos com a mais completa e sábia negação da ideia de felicidade para o homem, decerto influenciado pela sua própria desdita, e Gustave Flaubert (1821-1880) cujos escritos denotam a incontornável fragilidade e incapacidade de reação do espírito humano frente às armadilhas que a sorte lhe prepara. Talvez o mundo seja mesmo uma grande massa de água, terra e ar, oriunda do nada rumo ao nada, insensível aos esforços do homem a fim de mudá-lo ou, ao menos, torná-lo menos selvagem. Nessa trilha do mais desolador niilismo, a Bula separou dez filmes que vão fazer (mais) estragos na sua cabeça. Que tal começarmos por “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2007), dos irmãos Ethan e Joel Coen, sobre o fascínio do homem pelo dinheiro — e as consequências trágicas que isso acarreta? Depois desse introitozinho suave, gente pode ir para “Cães de Aluguel” (1993), do vasto Quentin Tarantino, que conta uma história de traição entre bandidos. Os títulos aparecem em ordem contra-cronológica, do lançado há menos tempo para o mais antigo, lembrando que você, nosso melhor crítico, é que nos diz qual o melhor. Deixe lá fora toda a esperança e entre no infinito universo de devaneio e destruição por trás — e dentro — de todo homem.
Llewelyn Moss realiza uma caçada a cervos nos arredores da fronteira dos Estados Unidos com o México. Teria motivos para desânimo, já que não consegue acertar um alvo, até que se depara com uma mala, misteriosamente deixada por ali. Ao abri-la, ele verifica que se trata de dinheiro e, claro, a leva consigo. A quantia seria usada para negociações escusas e, não demora muito, Anton Chigurh, um matador profissional, começa a persegui-lo implacavelmente. Chigurh vai promovendo um banho de sangue por onde passa, sem deixar vestígios, graças à sua perícia e a uma arma de gás comprimido que faz com que o projétil volte para o cano depois de disparado. O xerife se desdobra em meio a todo esse caos, incumbido de prender Moss e agora também Chigurh. O faroeste, gênero legitimamente americano, parece ser a forma ideal que os diretores escolhem quando se prontificam a contar uma história pródiga de desencontros, flagrantes conflitos éticos e mocinhos e bandidos que trocam de lugar sem a menor cerimônia. Desde que o mundo começou a girar no infinito, vilões surrupiam a afeição do público, sem mover uma palha, por mais abjetos que possam ser. Em “Onde os Fracos não Têm Vez” não é diferente. Aqui, o herói, completamente desmoralizado, perde sua aura mítica, o que dá vazão ao pensamento niilista de que não adianta resistir porque no fim o mal sempre sai vencedor.
Daniel Plainview, um minerador de prata que perdeu tudo, se instala num lugar inóspito do Velho Oeste americano a fim de tentar reaver sua fortuna, apesar da reprovação do pastor Eli Sunday, o homem mais influente do lugar. Paul Thomas Anderson traça o perfil de ganância, agressividade, violência, de um personagem que busca a todo custo não ceder à força invencível das circunstâncias. Plainview é um sujeito que já passara por todo o gênero de desdita e vencera, mas o inesperado a vida insiste em nos apresentar suas surpresas. Para ele, ninguém gosta de ninguém: as pessoas têm é interesses em comum. Sua obstinação doentia em encontrar petróleo é a parte mais saborosa do filme; é por meio da riqueza que lhe traz o petróleo que Plainview garante seu distanciamento dos outros. A desordem que o domina fica visível na interpretação singular de Daniel Day-Lewis, que contraposta à figura do filho de Plainview, vítima de seus achaques sem nunca se queixar, faz com que sua dureza se mostre ainda mais. “Sangue Negro”, repleto de metáforas (como a do próprio petróleo, que jorra do mais íntimo da terra e gera a riqueza que a devasta), é um filme de vários assuntos, mas centra fogo mesmo é na desordem mental de um homem que se fragmenta, não se sabe se contagiado pelo meio em que está ou por suas próprias inconsistências.
Woody Allen parecia acomodado. Depois de passar anos gravando só em Nova York — talvez tenha sido este o motivo: o cineasta virara uma espécie de consciência crítica (e melancólica) da Big Apple —, Allen, enfim resolveu açambarcar outros domínios. “Match Point”, todo rodado em Londres, deu azo a empreitadas do diretor na Espanha, França e Itália, e sempre que o assunto vem à baila, especula-se sobre um possível trabalho dele no Brasil. Quanto a “Match Point”, o enredo é a história do ex-jogador de tênis Chris Wilton, que cansado da estressante rotina de treinos e partidas, pontuada pelas intermináveis viagens e pressão crescente por vitórias, se muda para a capital britânica, onde arruma um emprego de professor de tênis num clube de milionários da cidade. Um dos seus alunos, Tom Hewett, é filho de um magnata londrino. Chris e Tom se tornam amigos, o que dá ao ex-atleta passe livre a um mundo de luxo e excelentes oportunidades de ascender socialmente. Isso de fato acontece, mas por meios o seu tanto tortos: Chris passa a namorar a irmã de Tom e seu sogro lhe oferece um cargo de chefia numa de suas empresas. Tudo segue na mais perfeita ordem, parecia que Chris tirara a sorte grande ao poder aliar amor e fortuna, até que em sua vida surge Nola, a namorada de Tom, uma atriz fracassada cujo único meio de subsistência é o parceiro endinheirado. Chris e Nola compõem duas figuras completamente deslocadas, que dependem de seus cônjuges para ganhar a vida e, portanto, a relação dos dois não têm nenhuma possibilidade de futuro. Woody Allen se vale da gasta imagem de que, geralmente, amor e dinheiro andam de braços dados, mas aqui o tema adquire nuances filosóficos, dada a dicotomia surgida entre se deixar tudo como está ou implodir o estabelecido e permitir que floresça o amor romântico. Novamente, o diretor flerta com o novelista russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), como em “Crime e Pecados” (1989), para contar uma história de amor e degradação moral.
Oito anos depois de despontar como o grande expoente do movimento Dogma 95, o dinamarquês Lars von Trier volta a atacar de iconoclasta com “Dogville”, primeiro de três filmes do diretor sobre o caráter violento do americano médio. Grace, uma mulher aparentemente bondosa e que não desperta muito o interesse das pessoas, está em fuga, com um grupo de criminosos no seu rastro. Um morador do vilarejo, a Dogville do título, resolve acolhê-la e persuade os demais habitantes da cidadezinha a aceitá-la, até que se faça um plebiscito a fim de verificar se Grace deve ou não radicar-se ali. Em contrapartida, Grace auxilia a população em tarefas braçais, afinal eles também passaram a correr perigo. Dogville e seus cidadãos melhoram de vida, mas conforme Grace conhece melhor a verdadeira natureza da gente de Dogville, suas ilusões de ser feliz se desvanecem para sempre.
Em “Dançando no Escuro”, o controverso Lars von Trier parece querer provocar o público com duas questões principais. Uma delas seria o amor de uma mãe por seu filho, motivação que a faz perseguir um sonho. A outra, este sonho, propriamente, e até que ponto as duas estariam amalgamadas: o dever maternal e humanitário de prover a segurança material e a as necessidades afetivas de um filho e a vaidade apenas? Lançado há mais de 20 anos, esta ainda consta como uma das obras mais marcantes de Von Trier, graças a sua mensagem nada inspiradora de um realismo surpreendente. Nos Estados Unidos da década de 1960, Selma, uma imigrante tcheca, cria e sustenta sozinha o filho Gene com o salário de metalúrgica, se equilibrando entre a urgência de ganhar a vida e seu grande sonho: tornar-se uma cantora famosa. A vida, que já era bombardeada por privações de toda a ordem, torna-se ainda mais difícil por causa de uma doença degenerativa que lhe consome a visão progressivamente. O pragmatismo com que Selma lida com a enfermidade é cortante. A protagonista se nega a assumir o papel de coitada, de injustiçada, de vítima da vida, pelo contrário: está a cada dia mais certa de que vai mesmo conseguir alcançar sua meta e, afinal, mudar de vida. A probabilidade de tudo findar num retumbante fracasso é imensa, mas ela há de tentar suprimir qualquer vestígio de insegurança e levar a empreitada a termo do jeito que der. Tudo por Gene.
Patrick Bateman é um homem jovem, bonito, bem-sucedido e, o principal, rico. Seu cargo de executivo de uma financeira em Wall Street lhe garante prazeres como frequentar restaurantes sofisticados, envergar os ternos mais elegantes, dirigir carrões e viver num verdadeiro palácio. Patrick teria tudo para se considerar feliz, mas leva uma vida vazia e, embora nunca vá admitir, não tem a menor ideia sobre porque vive assim. Numa elaborada crítica sobre as engrenagens movidas pelo dinheiro — sociedade de consumo, indústria automobilística, comércio de bens de luxo e o mercado financeiro —, “Psicopata Americano” apregoa a degeneração a que uma pessoa está sujeita se toma por guia inquestionável de sua vida o êxito por meio da ascensão social. Bateman é um exemplar do cinismo mais fino ao lançar pérolas sobre não se tirar da vida nenhum tipo de lição. Para ele, o homem é um animal como qualquer outro, tentando se valer de expedientes os mais ardilosos a fim de permanecer vivo, sempre ávido por saciar seus apetites, objetivo que nunca alcança dada a sua natureza de querer sempre mais. E é exatamente esse o caso de Bateman. Como já tem tudo, descobre algo inédito em seu plantel de anseios: tornar-se um assassino frio e metódico, sem freios morais. Em seus delírios de superioridade, o personagem passa uma descompostura no mendigo que ousa atravessar seu caminho e lhe suplicar por uma esmola. Bateman lhe joga na cara que o pedinte é o único responsável por sua penúria, que ele não tem nada com aquilo e não há qualquer aspecto em comum entre os dois, insinuando que o homem nem seria gente. Por fim, parte para cima do infeliz e o mata a facadas. Bateman é um homem patologicamente solitário, incapaz de se colocar na pele do outro, tanto menos se esse outro não tem sua pele branca, sua educação formal e uma conta bancária fornida como a dele. A diretora Mary Harron alfineta a debilidade por trás da filosofia do estilo de vida americano, em que resta implícita a ideia de que para ser é imprescindível ter. Mas deixa uma mensagem reducionista e equivocada ao sugerir que a maldade de seu personagem principal advenha do ambiente insalubre em que se constituiu.
O jornalismo literário de Gay Talese, Tom Wolfe, John Hersey e Truman Capote — talentosíssimos, mas um pouco dândis além da conta — nunca mais foi o mesmo depois do escracho de Hunter S. Thompson, o inventor de um modo muito peculiar de redigir reportagens se imiscuindo nelas, o jornalismo gonzo. “Medo e Delírio” transpõe para a tela grande as desventuras de Raoul Duke, nome-fantasia de Thompson, enviado para cobrir um off-road de motos, ao lado do advogado, Oscar Acosta. Chapados, chegam a Las Vegas a bordo de um conversível envenenado, rock ‘n’ roll no último volume, com a certeza — a certeza que somente se pode conseguir com o uso de entorpecentes em escala industrial, frise-se — de que o sonho americano é um mero deboche e só se sai minimamente íntegro dessa farsa com a ajuda de aditivos químicos da pesada.
A loucura característica dos irmãos Ethan e Joel Coen continua presente em “Fargo”, com a diferença de que, desta vez, a narrativa é pontuada por alguma doçura, ainda que difícil de ser captada por olhos não treinados. William H. Macy, vendedor de carros, está encalacrado por causa das dívidas e só vê uma alternativa para conseguir o dinheiro de que precisa: forjar o sequestro da mulher e pedir o resgate ao sogro. Cabe a uma chefe de polícia grávida investigar o caso, enquanto se desvencilha de seus próprios dramas conjugais. Com uma clara intenção de desconstruir parâmetros narrativos, Ethan e Joel discorrem sobre a burrice e o cinismo do povo americano, que tudo perdoa em nome da suposta paz social, sugerindo que o dinheiro perde as pessoas. A verdade é que em qualquer sociedade do mundo se observa essa tendência, cada vez mais recorrente, que instituições sólidas têm alguma chance de reprimir. E tem lá sua graça a mensagem — voluntária ou não — de que aqui a responsável por botar ordem no caos seja uma mulher, grávida e esposa de um homem insignificante.
Em 1992, “Cães de Aluguel” havia quebrado a banca no Festival de Sundance, célebre por dar visibilidade a produções independentes. No ano seguinte, chegava ao Brasil, despertando o interesse geral graças a seu diretor, um ex-balconista de videolocadora (lembra-se delas?) até então relegado aos bastidores de Hollywood e aos circuitos herméticos do cinema autoral. A história de sete criminosos reunidos no malfadado roubo de uma joalheria e a consequente traição do grupo por um deles era o diamante rosa de Tarantino. O diretor sabia do tesouro que tinha em mãos e reservou a história, certo de que algum dia teria cacife para torná-la um filme. Foi fazendo trabalhos menores, mas de retorno financeiro garantido, o que lhe conferiu certo prestígio junto aos tubarões. Valendo-se das amizades adequadas e do mecenato de Harvey Keitel, finalmente botou “Cães de Aluguel” na praça. A fita é a pedra fundamental do que se pode esperar do cinema de Tarantino: a violência explícita, presente na cena em que Mr. Blonde tortura o policial, pontuada por passagens lúdicas, como na sequência da dança — que em “Pulp Fiction” tornou-se cult. Palavrões, drogas e a trilha sonora caprichada também se converteram num dogma quando o assunto é Tarantino. Por tudo isso, “Cães de Aluguel”, o gênesis tarantinesco, excita tanta gente. Com razão, o público, viciado ou não no diretor, tem um xodó todo especial por esses cachorrinhos.
“Laranja Mecânica” tornou-se um cinquentão com tudo em cima. A adaptação feita para o cinema de Stanley Kubrick sobre o livro de Anthony Burgess ainda é uma ode ao livre pensar. Permanece como sempre fora: um soco no estômago, que deixa o espectador sem fôlego e o derruba do pedestal de suas convicções. Alexander DeLarge é um lobo em pele de lobo, por mais mavioso, envolvente e inofensivo que possa parecer. O protagonista, vivido por Malcolm McDowell, é verdadeiramente do diabo, só não se sabe quando e em que circunstâncias o mal se apoderou dele. Uma leitura marxista do filme — que não segue à letra a história original publicada por Burgess — daria a entender que o rapaz oriundo do lumpemproletariado inglês dos anos 1970 teria muito a dizer sobre a besta que Alex se tornara, e que o capitalismo, o malvado favorito da intelectualidade de esquerda em qualquer parte da esfera terrestre, a despeito da época, em querendo regenerá-lo, só estaria sanando um problema que o próprio sistema capitalista criou. Nada mais simplista. Nada mais preconceituoso. Alex é dotado de uma natureza depravada, perversa, monstruosa, como outros drugues de sua gangue, e deve ser contido. Aliás, ele só vai parar no reformatório porque traído pelos companheiros de vadiagem, o que, desta feita à luz do conservadorismo, significaria que bandidos são bandidos e não se pejam em abandonar o navio ao menor sinal de pique, delatando-se uns aos outros. Lá, é submetido a um tal de Tratamento Ludovico, uma terapia revolucionária que o destitui de qualquer ímpeto de violência, isto é, o deixa impossibilitado de reinserir-se na sociedade, em boa medida composta de indivíduos violentos e insanos. O caráter distópico da história é a parte mais doce — ou menos amarga — dessa laranja e, como toda distopia, profética. Todos temos um Alexander DeLarge chafurfando no mais recôndito de nós e cada um é o maior responsável por mantê-lo restrito a esse lugar.