Ninguém pode negar que o contexto em que os grandes gênios da humanidade viveram influenciou muito sua produção. Escritores, atores, artistas plásticos, filósofos e cineastas são diretamente afetados pelas condições da dureza da vida como ela é: apuros de dinheiro, uma família que cresce além do desejável, rupturas, mortes repentinas e em circunstâncias trágicas ou o simples descrédito de tudo — esse talvez o pior cenário, porque inescapável. Isso atinge em cheio a obra de alguém que pensa e sente em medida superior aos demais. Ernest Hemingway (1899-1961), em seu autoexílio em Cuba se deixou dominar gostosamente por um laissez-faire, um dolce far niente, uma letargia, uma leseira invencível, passando os dias a tomar sol e conversar com os trabalhadores do mar enquanto pescava. Todas essas experiências morreriam com ele, não fosse uma provocação de seu editor. Assim, veio à luz “O Velho e O Mar”, a maravilha que o alçaria novamente ao panteão dos melhores literatos do século 20. Outrossim, quando se vive num lar frio, lúgubre, de cujos cômodos escuros só brota uma tristeza que assola todo o viço que quer germinar, igualmente se observa a força do talento se sujeitar a tais amarras do espírito — ainda que o que venha depois seja sublime. Não se sabe ao certo de onde surgiu a insanidade que colheu com fúria Friedrich Nietzsche (1844-1900), um dos maiores pensadores da história, se da convivência forçada com a irmã, Elisabeth — essa, sim, uma genuína lunática, que veio a se casar com nada menos que um dos pais da ideia da supremacia germânica, o berço do nazismo — ou Nietzsche, alma sensível que era, foi se dando conta da enrascada sem remédio em que se constituía a vida e, não sabendo se livrar dela, só encontrou um remédio: se entregar. É palpável o niilismo em quase todos os textos nietzschianos, a exemplo de “Ecce Homo”, publicado postumamente em 1908, ou “Humano, Demasiado Humano”, de 1878, trabalhos que reverberaram em outros livros, peças, quadros e, claro, filmes. A lista da Bula de hoje se impregnou do pensamento de Nietzsche e enumerou dez histórias levadas à telona que têm muito de seus ensinamentos acerca das trevas da existência. “Dogville” (2003), do incensado diretor dinamarquês Lars von Trier, encarna à perfeição muito do que o filósofo quis dizer ao mostrar uma mulher completamente perdida que pensa ter encontrado seu lugar no mundo —- e é aí que se perde de vez; já “Apocalypse Now” (1979), de Francis Ford Coppola, retrata os horrores da Guerra do Vietnã (1955-1975) sob a ótica dos soldados americanos, que voltaram para casa derrotados (e humilhados). Os filmes aparecem do mais recente para o mais o antigo, e não seguem nenhum outro critério. Vista sua armadilha e vá em frente. Assisti-los vai reforçar suas defesas.

O Cavalo de Turim, laureado com o prêmio especial do júri e vencedor do troféu da crítica no Festival de Berlim, na Alemanha, narra o famoso caso em que Friedrich Nietzsche, indignado com os maus tratos a um cavalo que não obedecia a um carroceiro, interveio e exaltou-se de tal modo que entrou em surto. A frágil condição psíquica de Nietzsche se agravou muito a partir de então; sua saúde mental deteriorava ano a ano, com episódios de histeria cada vez mais frequentes, até a morte do filósofo, dez anos depois. O filme descreve em detalhes onde se passa a história e resta clara a natureza hostil do lugar, à medida em que também faz contrapontos a fim de falar um pouco sobre a personalidade do camponês, dono do animal. Vê-se um homem conduzindo sua carroça fustigado por uma ventania intensa; sua apreensão é captada graças à excelente fotografia em preto e branco de Fred Kelemen e pela música de acordes monótonos de Mihály Vig. Aos poucos, também se percebe o quão esse esplim, esse tédio de tudo se espraia para toda a vida do homem; para ele, não resta além de acordar antes da aurora, vestir-se, sair para trabalhar, voltar, comer e dormir o quanto antes, a fim de que aquele tormento passe. Mas não passa nunca. Circunstâncias que, decreto, levariam qualquer um a tomar as atitudes que tomava. Béla Tarr, um dos mais idiossincrásicos diretores da história do cinema, apresenta um ensaio dolorido sobre o inescapável estado do homem, termo caro à filosofia de Nietzsche, sempre partida entre a ideia da prisão do espírito e a eterna aspiração humana por liberdade.

Darren Aronofsky levou cinco anos para conseguir filmar “A Fonte da Vida” e, mesmo assim, encarou questões delicadas na pré-produção. Brad Pitt e Cate Blanchett, originalmente escalados para os papéis principais, acabaram abandonando o barco e foram substituídos por Hugh Jackman e Rachel Weisz, mulher de Aronofsky. Só aí, o longa sofreu um corte de 75 milhões de dólares para 35 milhões — o que talvez tenha contado para a excelência do filme, na medida em que o diretor tenha passado a ver sua feitura como uma verdadeira questão de honra. Todos os obstáculos ao longo da estrada foram superados galhardamente por Aronofsky, que compôs um belo poema de amor, usando o difícil mote da morte como consequência e parte de um processo evolutivo da vida.

Muita gente ficou perdida, sem saber o que Lars von Trier tinha em mente ao levar adiante as filmagens de “Manderlay”, uma continuação de “Dogville”, com tudo de melhor (e de pior) que isso representa. Aqui, o expediente do diretor de se divorciar do cinema “normal”, com passagens situadas em cenários ou locações, permanece. A história é encenada num palco vazio e cada ambiente não passa de um xis no assoalho. É óbvia a inspiração de Von Trier em mestres do teatro, a exemplo de Brecht e Beckett, tudo friamente pensado. Quanto à trama, em “Manderlay” — o segundo tomo da trilogia com sua visão sobre os Estados Unidos, também filmada na Europa —, a violência implícita do povo americano continua sendo a tônica, desta vez se fixando nas consequências do regime escravagista na história do país e elaborando hipóteses interessantes acerca do possível peso disso na sempre difícil relação entre brancos e negros. Agora, em 1933, Grace — a mocinha incompreendida, embora cheia de boas intenções —, parte com o pai pelo Alabama. Em certo momento da viagem, eles se defrontam com uma fazenda em que ainda vigora um sistema muito semelhante à escravidão, abolida há 70 anos. Inconformada, Grace resolve impor a liberdade à força, ajudada por jagunços do pai. Além de querer libertar de fato os ex-escravos, ela tenta mudar a forma como a fazenda é gerida, a fim torná-la um modelo do que se pode fazer numa propriedade em que os trabalhadores são tratados sob uma perspectiva democrática. O plano fracassa, devido à mentalidade atrasada dos próprios ex-cativos, que não saberiam garantir sua subsistência por si sós.

Oito anos depois de despontar como o grande expoente do movimento Dogma 95, o dinamarquês Lars von Trier volta a atacar de iconoclasta com “Dogville”, primeiro de três filmes do diretor sobre o caráter violento do americano médio. Grace, uma mulher aparentemente bondosa e que não desperta muito o interesse das pessoas, está em fuga, com um grupo de criminosos no seu rastro. Um morador do vilarejo, a Dogville do título, resolve acolhê-la e persuade os demais habitantes da cidadezinha a aceitá-la, até que se faça um plebiscito a fim de verificar se Grace deve ou não radicar-se ali. Em contrapartida, Grace auxilia a população em tarefas braçais, afinal eles também passaram a correr perigo. Dogville e seus cidadãos melhoram de vida, mas conforme Grace conhece melhor a verdadeira natureza da gente de Dogville, suas ilusões de ser feliz se desvanecem para sempre.

Ao contar mais uma história de tribunal, “O Advogado do Diabo”, de Taylor Hackford e estrelado por Al Pacino e Keanu Reeves, parece que vai ser só mais do mesmo. O grande trunfo da fita, contudo, são as muitas e sutis reviravoltas, com drama e suspense bem dosados, entretendo, mas também propondo reflexões sobre até onde pode ir a busca do homem por poder — e em que ponto ela se torna ilegítima. Por ter um talento que permite ganhar todas as causas que defende, o jovem advogado de Keanu Reaves é recrutado para trabalhar para o maior profissional da área de Nova Iorque, o personagem de Al Pacino, a própria encarnação do mal. Ao passo em que se torna cada vez mais prestigiado, ele deixa aflorar seu lado demoníaco. A partir desse argumento, o enredo aborda temas como o livre arbítrio — muito valorizado pelo diabo — e de que maneira ele aprisiona o homem numa existência cada vez mais perversa e esvaziada de sentido.

Phil, repórter que apresenta as previsões da meteorologia na tevê, é escalado para cobrir o Dia da Marmota numa cidadezinha do interior. A data, uma grande celebração que reúne telespectadores de todo o país, garante à emissora uma audiência considerável, por isso Phil tem de se esmerar, a fim de agradar o chefe e, por óbvio, manter seu emprego. O jornalista se sente desprestigiado ao ser incumbido da tarefa, por entender que seu talento e seu tempo estão sendo desperdiçados. Contra sua vontade, ele vai, mas acha tudo uma droga e faz questão de deixar claro seu desgosto. A lei de Murphy é implacável: sem nenhuma explicação lógica, o tempo para ele não passa e Phil fica retido naquele mesmo dia, dois de fevereiro. Ele terá de encarar o esdrúxulo incidente como uma forma de reavaliar o que tem feito, refletir sobre seu temperamento arrogante, a fim de ter alguma chance de retomar sua vida. Do contrário, estará condenado a viver num eterno e tedioso Dia da Marmota.

No decorrer da carreira, um oftalmologista desenvolve um talento todo especial: ao analisar de tão perto os olhos de seus pacientes, passa a conseguir enxergar o que guardam no mais fundo da alma. O problema é que ele há muito ficou cego para as necessidades do homem; na verdade, não sabe mais nem quem ele mesmo é, completamente tomado pelos apetites da matéria. Woody Allen é conhecido por trabalhos nos quais consegue como poucos penetrar nos meandros do inconsciente do espectador e tirar dali coisas que o próprio público jamais conheceu, tudo isso pontuando as situações dramáticas com um teor humorístico na exata medida. Espécie de ensaio sobre o romance “Crime e Castigo”, do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), o filme é sobre a relação desandada entre o médico e sua amante, que ameaça procurar a esposa dele e contar sobre o caso dos dois — e, pior, revelar seus podres com o Fisco — se não deixar sua condição de mero passatempo. Para se livrar de uma vez por todas do inconveniente, ele resolve assassiná-la. Allen deixa claro que Judah age movido pelo temor de se ver de uma hora para a outra destituído de sua vida de prestígio profissional e dos privilégios que o dinheiro compra, preservar o casamento é uma mera consequência. O próprio Woody Allen também é protagonista do longa numa história que corre em paralelo à do mote principal, dando um caráter ainda mais autoral à obra.

“Apocalypse Now” não foi o primeiro filme a dissecar os horrores da Guerra do Vietnã (“O Franco Atirador”, de Michael Cimino, detém esse título), mas certamente foi o que cristalizou no inconsciente coletivo a dimensão daqueles confrontos. O cotidiano dos soldados, a exaustão por causa das batalhas que se sucederam umas as outras por duas décadas, a degradação moral de um cenário frequentemente eivado de violência, sexo, uso de drogas, tudo a fim de aliviar por alguns instantes a opressão da guerra: a obra de Francis Ford Copolla trata de tudo isso, com tamanho realismo que, à dada altura da projeção, o público começa a se questionar sobre se está diante de uma obra de ficção ou, por um feitiço do tempo, foi mandado à guerra entre o país asiático e os Estados Unidos, travada 46 anos atrás. O diretor, a propósito, chegou a declarar certa feita que aquilo não era um filme que contava a história de uma guerra, aquilo era a própria guerra. O enredo é sobre a odisseia do capitão Willard, embrenhado nas selvas vietnamitas à caça de um tal de Kurtz, ex-combatente americano que enlouquecera e se retirara dos conflitos, indo viver num lugar afastado no Vietnã. Baseado no romance “No Coração das Trevas”, de Joseph Conrad (1857-1924), “Apocalypse Now” prova que a excelência de um filme muitas vezes depende da obsessão de seu diretor. As histórias de bastidores renderiam um filme à parte — Coppola quase se matou ao perceber que já devia quase 30 milhões de dólares à United Artists, empresa responsável por distribuir o longa, sem entregar nada. Felizmente, foi capaz de sobreviver à sua guerra particular e presenteou a humanidade com sua obra máxima.

Uma civilização ancestral parece influenciar o que se passa na Terra por meio de um monolito localizado em Júpiter, sobre o qual não se sabe muita coisa. A fim de averiguar o que realmente está acontecendo, uma equipe de astronautas chefiados pelo experiente David Bowman é mandada ao planeta na Discovery, uma espaçonave integralmente controlada por HAL 9000, um sistema de computador. Durante a viagem, um mecanismo em HAL entende que ele deve assumir também o comando da missão e eliminar todos os tripulantes. “2001 — Uma Odisseia no Espaço”, em parte baseado no conto “A Sentinela”, de Arthur C. Clarke (1917-2008) discorre acerca de tópicos como a evolução do homem, tecnologia, inteligência artificial e vida fora da Terra à luz da ciência. O filme foi um dos primeiros a empregar efeitos especiais de qualidade apurada, o que lhe rendeu um Oscar na categoria e ditou regra nas produções de ficção científica a partir de então.

“Rashomon” é um sobrevivente. A fita escapou de três grandes incêndios antes de ser finalizada e redublada por duas vezes. A trilha sonora do filme foi gravada duas vezes, a segunda a toque de caixa, a fim de distribuí-lo a tempo para o mercado internacional. O enredo é uma adaptação do conto “No Matagal”, do escritor Rynosuke Akutagawa, publicado em 1922, sobre a morte de um samurai e o estupro de sua esposa. A história é contada não por um narrador, mas por meio dos depoimentos de cinco personagens: o lenhador, o monge, a mulher, o estuprador e o próprio morto, que fala pela boca de uma médium. Eles são ouvidos pelo inquiridor responsável por solucionar o crime. A linguagem literária não foi suficiente para dar à trama a firmeza de que ela precisava, era aberta demais, solta demais, inconsistente demais. Daí Kurosawa ter adaptado também “Rashomon” (1915), do mesmo autor, ligando-o de um jeito muito pessoal ao que já havia executado. O insight do diretor fez toda a diferença quanto a dar complexidade narrativa à história: no presente, três transeuntes aguardam pelo fim de uma tempestade, abrigados sob o portal de Rashomon, na entrada da cidade de Kyoto. O relato dá um pulo e o espectador é transportado às declarações ouvidas pelo inquiridor, num flashback que conduz a outro flashback e vai parar no matagal onde se deram os crimes, observando-se os detalhes do que disse cada depoente. “Narrativa” é um vocábulo que aos poucos foi sofrendo uma deturpação quanto a seu significado. Versão e verdade são faces contrárias de uma mesma moeda que orbitam em redor de um mesmo ambiente, sendo que há espaço para apenas uma delas. É sobre isso de que fala “Rashomon”, um filme sobre verdade e mentira, sobre a necessidade humana de estar sempre torcendo os fatos conforme as circunstâncias. Aqui, intencionalmente ou não, Kurosawa desenvolve um novo paradigma sobre como se tomar um fato por análise. Se o fato é um só, a verdade também deve ser — ainda que na maior parte das vezes não o seja.