Anarquia: sistema de governo em que não há governo. A ideia, um paradoxo teratológico que dá azo ao que pode haver de pior na política e, por extensão, na vida em comunidade expressa bem o quão complexo é lidar com os desejos mais distintos e as mais urgentes necessidades do homem. Existem os que defendem que se cada um cuidasse dos seus próprios interesses, cumprisse com suas obrigações sem que fosse necessário que alguém o mandasse, o mundo seria um lugar muito melhor. Será mesmo? Qual o sentido de a humanidade ter passado por tudo o que passou, guerras, miséria, fome, indisposições sociais as mais diversas, para ao cabo sermos todos forçados a ter de desenvolver um talento para o qual não fomos talhados? É uma verdade irrefutável que pela leniência de seus líderes com a corrupção, a incúria, o desleixo com a coisa pública, a falta de decoro dos donos do poder, a democracia degringola em um regime que, na prática, deixa uma nação acéfala, sem governo, sem freio rumo ao precipício. No entanto, ainda que repleta de defeitos, a democracia é, sim, a melhor das piores formas para se gerir um país. Por outro lado, em se falando de um ponto de vista estritamente individual, louve-se, grite-se em favor da natureza libertadora, transformadora da anarquia. Felizmente, passaram pelo mundo muitos anarquistas que honraram essa sua índole de absoluto descompromisso com o que quer que fosse. Decerto um dos maiores anarquistas que o Brasil já conheceu foi o músico Raul Seixas (1945-1989), que personalizava como poucos o melhor da filosofia do pouco caso com o estabelecido, de um jeito meio cínico, meio debochado, mas dizendo grandes, avassaladoras verdades. A metamorfose ambulante, que não tinha opinião formada sobre quase coisa nenhuma, mas que abalava corações e mentes com seu timbre rasgado é o protagonista do documentário “Raul, o Início, o Fim e o Meio” (2011) de Walter Carvalho, que registra passagens épicas da vida do Maluco-Beleza, esse, sim, um verdadeiro anarquista, graças a Deus. Já o caráter deletério do modo de ser que enaltece a falta de limite também pode ser conferido na história do cinema. É o caso de “Massacre no Bairro Chinês” (2009), do diretor Tung-shing Yee, sobre uma desilusão amorosa que descamba para tudo o que não é amor. Esses e mais oito filmes que exaltam, criticam, refletem sobre a geleia geral da vida compõem a nossa lista dos dez de hoje, todos disponíveis na Netflix e em ordem contra-cronológica, do mais recente para o mais antigo, sem nenhum outro critério, bem ao modo anárquico de ser. Agora, é só se ajeitar no sofá, e ir conferindo um por um, sem pressa e na ordem que você preferir, afinal, a anarquia está declarada!

Numa prisão, detentos são alimentados por uma plataforma descendente. Esse mecanismo faz com que os que estão nos níveis mais altos comam em demasia, enquanto os dos andares mais baixos passem fome, um sistema propositalmente desigual, a fim de testar a resistência dos prisioneiros. Mas um dos confinados se rebela. “O Poço” é uma alegoria inteligente e criativa tanto sobre a sociedade num país qualquer da América Latina, disfuncional e injusto, como do próprio gênero humano, onde quer que se estabeleça: é da natureza mesma do homem subjugar seu próximo das maneiras mais vis e tirar dele todas as vantagens possíveis. Até um naco a mais de carne.

Na Barcelona de 1921, militantes anarquistas e a polícia se enfrentam em uma série de confrontos. Enquanto a instabilidade política reina, um policial se infiltra entre os manifestantes a fim de conhecer o responsável por um roubo de armas que tem o potencial de desencadear uma guerra civil. “Gun City” se vale de dois atores da prestigiada série “La Casa de Papel” para segurar a história, cujo enredo transcorre numa cidade que já mudou muito do começo do século 20 para cá. Dani de la Torre lança mão de efeitos especiais e excelentes recriações em cenários no intuito de dar o máximo de realismo à trama, além de usar tomadas mais secas e evitar enquadramentos mirabolantes, o que imediatamente remete o espectador aos grandes clássicos da belle époque.

“Nós Somos Jovens, Nós Somos Fortes”, alerta para uma questão cada vez mais delicada e carente de solvência: a inclusão de imigrantes na vida social de um país, a Alemanha no caso em tela. O filme relata um dos ataques xenófobos mais cruéis da história alemã no pós-Segunda Guerra Mundial. Em 24 de agosto de 1992, vândalos neonazistas atearam fogo num abrigo para moradores de rua em Lichtenhagen, bairro de Rostock, cidade localizada no estado de Mecklemburgo, na Pomerânia Ocidental. Milagrosamente, ninguém morreu. O atentado é dissecado sob diversos prismas, sem, todavia, aliviar o lado dos criminosos, um grupo de jovens desempregados e desiludidos, ameaçados pela crescente presença estrangeira, mas no fundo nada mais que arruaceiros que encontram nessa chaga recém-aberta (cuja profundidade sua ignorância não lhes permite chegar nem perto) no corpo já tão cheio de cicatrizes da Alemanha a válvula de escape para dar vazão às frustrações de uma existência falta de significado. A constatação de o diretor do longa ser ele mesmo um homem não-germânico dá uma carga dramática ainda mais vibrante à trama, que nem de longe conseguiu a projeção que merece.

Raul Seixas virava outra pessoa no palco. Raul começou a acessar esse território mágico em que podia ser o que quisesse ainda menino em Salvador, quando encampou uma verdadeira peregrinação pelas rádios locais a fim de divulgar sua insipiente carreira. Finalmente, alguém se interessou pelo garoto franzino de cara meio amarrada, uma espécie de Elvis nordestino e logo toda a Bahia cantarolava os sucessos de Raulzito and The Panters, conjunto que liderava e que o projetou para o estrelato. “Raul — O Início, O Fim e O Meio”, documentário dirigido por Walter Carvalho, um dos maiores fotógrafos e iluminadores do cinema e do teatro nacionais, se empenha em dar alguma ordem à caótica trajetória da metamorfose ambulante do showbiz brasileiro. Raul desde cedo decidiu que queria ser artista e, para isso, tratou de deixar a Bahia o mais rápido que pôde. Tomou o rumo do Rio de Janeiro, sem saber muito bem em que encrenca estava se metendo — logo estava duro, desacoroçoado, passando por necessidades severas, mas virou o jogo — e a odisseia foi tema de uma das mais bonitas canções de Raul, “Ouro de Tolo”, que cala fundo em qualquer um, tanto mais em quem, como ele, deixou seu Bodocó e partiu levando só a coragem e a cara, com ganas de vencer. Na Cidade Maravilhosa, Raul conheceu Paulo Coelho e o resto é história. Ao longo da vida, o Maluco-Beleza se envolveu em polêmicas as mais diversas, conquistou multidões — e mulheres —, teve filhos, foi um adepto do misticismo, desceu ao inferno das drogas e aí se dá a guinada de autodestruição que o marcou. O longa apresenta depoimentos de parceiros como Marcelo Nova, responsável por ressuscitar sua carreira depois de um longo ostracismo forçado devido à drogadição, os jornalistas e críticos musicais Tárik de Sousa e Nelson Motta, e familiares do astro. Passados mais de trinta anos de sua morte, Raul Seixas ainda tem lugar cativo no público de todas as idades, que entoa seus versos a plenos pulmões. A propósito, seu nome virou uma espécie de senha entre os mais jovens para quando a festa tá meio borocoxô. Se no meio de uma apresentação alguém gritar “Toca Raul!”, certamente é hora de invocar o pai do rock brasuca. E ele sempre vem.

No início dos anos 1990, chineses emigraram em massa para o Japão na expectativa de uma vida menos ordinária. Aqui, Jackie Chan dá vida a um mecânico que junta o útil ao agradável: quer subir, mas também reencontrar a namorada, que foi para o país vizinho há alguns anos com as mesmas motivações que ele. Desde então sem notícias da garota, está ávido por achá-la, mas tem o coração partido ao saber que ela está casada com um mafioso da Yakuza. O protagonista perde todos os documentos, o que o retém no Japão, e fica ainda mais vulnerável, só conseguindo arrumar subempregos. Numa dessas quebradas, se envolve com gente de reputação duvidosa, ganha a confiança dela e se torna líder de uma gangue de imigrantes.

“Boa noite, damas e cavalheiros! Eu sou o entertainer desta noite!” A despeito do começo eletrizante, com as precisas cenas de tensão durante um assalto a banco, parece que só depois que essa frase é dita pelo personagem principal é que começa “Batman: O Cavaleiro das Trevas”. É claro que não estamos falando do Homem-Morcego, muito menos de Bruce Wayne, sua porção à paisana. No roubo ao banco, o Coringa já havia roubado também a cena, mas é na sequência da festa na casa do multimilionário que tudo começa a fazer sentido, inclusive termos incluído o filme nessa lista. O protagonista-antagonista, levado com uma performance mediúnica por Heath Ledger em um de seus últimos trabalhos, é a mais completa tradução da visão de mundo mais diabolicamente anárquica que alguém pode ter. O vilão deixa uma marca de ódio e perversidade por onde passa, nada preocupado em sofrer alguma retaliação. Batman passa a trama inteira ansiando por botar as mãos no homenzinho do terno roxo, façanha que só consegue no final — e mesmo assim a gente lamenta. Na versão da franquia que coube ao diretor Christopher Nolan, um dos mais talentosos e devotados de Hollywood, de fato são as figuras noir as que ganham — e merecem — o centro das atenções. Outro ponto alto da fita é o destaque dado à subtrama de Harvey Dent, o mocinho decaído que literalmente se transfigura no bandidão Duas Caras. Aqui, é possível entender direitinho como se deu essa mutação. Como sói acontecer, Nolan se arriscou, apostou alto e quebrou a banca, inclusive na bilheteria bilionária do filme, um dos recordistas no quesito.

A ação do filme se desenrola no Reino Unido, tomado por um governo totalitário e baseado no terror, que infunde nos cidadãos a crença de que estariam completamente perdidos sem o Estado a guiá-los. Após o 11 de Setembro, levar a termo uma história com essa temática e essa mensagem adquire outra importância, outro peso. O terror não quer tomar o poder; ele tem por propósito se encarniçar sobre os dramas mais íntimos das pessoas, descobrir seus medos e se infiltrar lá, a fim de dessa maneira dominá-las. E ai de quem não se sujeite. “V de Vingança” poderia ser entendido à luz da teoria política, das ciências sociais ou mesmo da filosofia. Compreendido do ponto de vista da arte, como é o caso, o filme de James McTeigue enuncia uma sede por se discutir temas de fundo sociológico sob o viés da participação popular nas sempre necessárias mudanças a se fazer no mundo. E muitas vezes, a arte parece ser a alternativa mais plausível.

John Singleton se esmera em mostrar a realidade das ruas de South Central, subúrbio de maioria negra de Los Angeles, nos anos 1980. Ao narrar a história de Tre Styles, um garoto que vai morar no bairro com o pai porque a mãe não tem mais condições de sustentá-lo, Singleton maneja habilmente as emoções do público, como quando fala de negligência parental, abuso da polícia e a presença pulverizada do tráfico de drogas por toda a parte, em especial num lugar ermo, pobre e esquecido. Tre é rebelde, mas de uma inteligência invulgar. Furious, o pai de Tre, se esforça por passar ao filho valores como ética e moral em meio à sufocante atmosfera de pobreza e violência do lugar. Ao longo da estada em South Central, Tre conquista a amizade de Ricky Baker e Doughboy e os três parecem inseparáveis. No entanto, eles mesmos não têm a mínima ideia do quanto suas vidas vão mudar.