Ah, os mistérios da alma… O homem, animal desde sempre partido entre sua porção divina e seus mais vulgares apetites, parece nunca conseguir se encontrar em meio ao turbilhão de emoções que o colhe todo santo dia. Talvez seja essa mesma a sina da humanidade: a dúvida, a incerteza, a desconfiança, o medo de tudo. No decorrer de sua trajetória, o ser humano fica cada vez mais desolado com que se passa no mundo, um lugar a que chega sem convite e sem que lhe consultem, sofre decepções, é desacreditado, se acovarda. Cruza mares, aprendeu a voar sobre eles, faz novas conquistas, mas não tem o condão de se dominar a si mesmo. Vacila, grita, chora. Quanto dos oceanos não será a enxurrada de lágrimas derramadas de saudade, de frêmito, de dor — e de júbilo, de gozo e de amor? Nada do que é humano é estranho à Bula e, sendo assim, preparamos aquela listinha com dez filmes plenos de tudo o que alma tem (de pior e de melhor também, claro!, até porque tudo o que molesta sempre passa, e ainda serve para deixar o couro mais grosso, né?). No cardápio de hoje, histórias com um molho que sabe ora a suspense, ora a romance, salpicadas de alguma psicodelia, a exemplo de “Estou Pensando em Acabar com Tudo” (2020), do diretor Charlie Kaufman, acerca de um casal de namorados muito estranhos, para se dizer o mínimo. Ou “Fuja” (2020), de Aneesh Chaganty, sobre até que extremo pode conduzir o sentimento de superproteção de uma mãe por sua filha. Os títulos, todos na Netflix, obedecem apenas a uma ordem cronológica, inversa, se quiserem, do lançado a menos tempo para o mais antigo, e cabe só a você decidir qual o melhor. Se o corpo precisa de alimento, cuidado, remédio, cura, a pobre alma do homem os demanda com veemência ainda maior. Submerja para o mais fundo de você, volte à superfície e retome o ar.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Quem gostou de “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” vai aprovar o filme de Charlie Kaufman, adaptação do romance de estreia do escritor canadense Iain Reid sobre uma mulher que depois de seis ou sete semanas quer terminar o relacionamento, mas mesmo assim aceita viajar para conhecer a fazenda dos pais do namorado, o que vai fazê-la repensar muitas coisas. Ao longo do deslocamento, a protagonista se percebe tomada por um fluxo de pensamentos monomaníacos que incluem, sim, romper com o parceiro, mas sugerem também mudanças muito mais profundas. Ao chegar à propriedade e conhecer o estranho casal, ela acaba sem saber muito bem onde está pisando nem o que deseja na verdade.

Todos ou, pelo menos, 90% da humanidade, tivemos problemas com nossos pais, em especial naquele inferno interior chamado adolescência. Tudo nessa fase da vida nos fede a conspiração universal contra nossos sonhos e a orientação de pais atentos é fundamental a fim de se manter a sanidade. Mas, e quando se tem uma mãe completamente descompensada, que devota sentimentos muito além de mero amor e zelo? “Fuja” expõe sem nenhum pejo a relação de uma mãe superprotetora e sua filha deficiente física Chloé, a surpreendente Kiera Allen, portadora de necessidades especiais na vida real. Chloé quer provar para a mãe que pode ser independente e levar uma vida normal, mas não tem a mais pálida ideia de como sua vida seguiu tal curso, que tudo poderia ter sido muito diferente e, o principal (sem spoilers, fique tranquilo): em que medida sua mãe é responsável pelo que lhe aconteceu.

“Rede de Ódio” já impacta pelo nome. Certamente não foi por acaso que optou-se por traduzir com essa expressão o título da produção polonesa, “The Hater” no original, ou “o que odia”. O filme de Jan Komasa deve muito de sua genialidade ao personagem principal, mas ampara-se, por óbvio, no contexto histórico em que está inserido e da época em que vivemos, no Brasil, sobretudo. O uso deturpado da inteligência artificial — cada vez mais inteligente, ao passo que o homem, por sua vez, parece emburrecer a olhos vistos — fomenta a discussão sobre em que medida um indivíduo agressivo pode se dizer afetado pela toxicidade da internet ou se sua truculência é fruto de sua própria natureza patológica. Komasa explora essa dicotomia — logo resolvida, em face da superioridade da segunda hipótese — à luz de Tomasz, que sai do interior da Polônia para a capital Varsóvia a fim de estudar direito, graças à generosidade de familiares distantes. O rapaz não é simplesmente ambicioso, e a perspicácia do diretor aliada ao talento soberbo de Maciej Musialowicz, desde sempre deixam muito claro que está ali um sociopata que, como quase sempre sói acontecer, é um sujeito cuja capacidade intelectual supera a de quem o rodeia. Ele se vale das facilidades que as redes sociais proporcionam para levar a termo os objetivos que busca alcançar, sem poupar quem quer que seja. Não se deve deixar passar nada ao longo das 2h15 de duração da trama, que oferece uma mensagem edificante, sem ser — ou parecer — moralista. Há que se estar sempre atento para os Tomasz que nos apresenta a vida.

Em “Tempo Compartilhado”, dois homens unem forças para resgatar seus familiares de um lugar paradisíaco quando ficam convencidos de que um conglomerado americano quer expulsá-los dali. A todo momento, a trama se equilibra entre a crítica acerba à indústria de sonhos artificiais — consumidos sob a forma de férias perfeitas por uma sociedade hedonista, ávida por prazer a qualquer custo — e a sutil comicidade das situações que cada plot insinua. Neste terror nada convencional, a ação sucede à luz do surrealismo, ou feito uma comédia bizarra, que provoca risos involuntários. Uma história nada óbvia sobre personagens nada comuns que consegue manter o espectador interessado até o desfecho.

Money, condenado por homicídio culposo após um acidente de trânsito, ganha a liberdade, mas não se livra da prisão. Agora, está preso aos desmandos de uma organização criminosa que quer usar sua experiência no cárcere para arquitetar um plano de fuga para seus membros. Mesmo inconformado, ele acata a investida dos bandidos, a fim de proteger a família. O enredo de “Sem Perdão” poderia facilmente se dissipar em meio ao sociologismo fácil e dizer que o protagonista é apenas um fraco ou, no sentido oposto, defendê-lo do ponto de vista da tibieza do sistema penitenciário americano. Não toma nem uma nem outra postura, elaborando a composição de um tipo profundamente dramático. O personagem se angustia por não saber em quem confiar e, pior, não ter a certeza de que está fazendo o certo, se não haveria um jeito de não embarcar nessa e manter sua família a salvo. O público acompanha essa jornada rumo à face mais obscura de Money — e é aí que o filme ganha, como ao mostrar a névoa pesada que paira sobre ele e a ex-mulher num breve reencontro dos dois. O personagem vai se tornando alguém muito diferente do que imaginara que seria ao retomar a vida em sociedade — até porque esse retorno não acontece. Money continua alijado dos valores civilizatórios, permanece tão marginalizado quanto na cadeia, talvez até mais perdido do que quando vivia por trás dos muros do cárcere.

Arlette herda um pedaço de terra de seu falecido pai e quer vendê-lo, bem como a propriedade de seu marido. Wilfred, um sujeito dissimulado e ambicioso, tenta dissuadi-la. Ao constatar que não terá sucesso na empreitada, dá a entender que está de acordo com a esposa, mas elabora um plano para assassiná-la, ajudado por Henry, único filho do casal. A trama, mais uma boa adaptação de um thriller do escritor Stephen King — há décadas incólume no posto de best seller do gênero —, toca em pontos delicados, a exemplo de casamentos que se prolongam além da conta, por puro comodismo de parte a parte, e acabam redundando em finais como o dessa excelente história de indiferença, cobiça e um amor em acelerado processo de decomposição.

Em “Buster’s Mal Heart”, a diretora Sarah Adina Smith conta a história de um homem excêntrico vivendo como uma fera predadora numa região afastada nas montanhas. Tudo leva a crer que o personagem tem um passado nebuloso, pois não tem pouso certo, está sempre fugindo das autoridades, e só sobrevive ao rigor do inverno por causa dos furtos que realiza nas casas da região, desocupadas porque seus moradores saíram de férias. Em sonho, o protagonista está perdido no mar e daí lhe vem uma revelação: ele vive fragmentado em dois organismos. Ao longo do filme, o espectador é convidado a divagar com o personagem, a fim de descobrirem de que forma isso foi acontecer.

Um filme de ficção científica assumidamente feminista. “Advantageous”, da diretora sino-americana Jennifer Phang, não se alinha em nada a quase tudo o que já se produziu em matéria de histórias cujo mote central é a vida — e a sobrevida — num mundo em que ser bonito e jovem conta muito na trajetória de alguém, e não só no que diz respeito a carreira, que se frise. Numa narrativa toda pontuada por tipos femininos, Gwen, a protagonista, é uma mulher de quarenta e poucos anos, veterana na indústria farmacêutica. Ela é representante de um laboratório de biomedicina, ou melhor, era, e essa é justamente a reviravolta fulcral aqui: tudo orbita ao redor da demissão de Gwen e seu desespero, não por ela, mas pela filha — mais uma mulher no coração do enredo. Ela se vira para achar alguma outra forma digna de ganhar a vida o quanto antes, a fim de não permitir que a garota passe qualquer dificuldade ou tenha de se submeter a condições degradantes de vida, como se prostituir ou casar-se prematuramente. E as coisas ficam um tanto piores para Gwen, por causa do cenário de recessão econômica em que o mundo está atolado. Por tudo isso, pode se dizer que “Advantageous” é, de fato, uma vantagem.

“Soldado Anônimo” chega a ser estranho de tão bonito. É doce e, ao mesmo tempo, amargo. Parece Fellini, ainda que se assemelhe mais a Coppola. Qual o sentido de uma guerra? O que levou tantos jovens a um cenário completamente inóspito como aquele? Eles têm a guerra como uma verdadeira missão de vida ou estavam apenas entediados, num rincão qualquer da América? O filme martela perguntas como essas na cabeça do espectador, sutilmente. Tão sutilmente que é impossível não se flagrar preterindo a guerra — o suposto assunto do filme — em favor da fotografia, um fabuloso espetáculo. O enredo, saído da autobiografia de Anthony Swafford, conta a história de um jovem fuzileiro combatendo na Guerra do Golfo, em 1989. Bem, “combatendo” não é exatamente a palavra, já que a guerra, claro, está se desdobrando em alguma parte do Oriente Médio, mas seu pelotão nunca é convocado a pegar em armas. Enquanto isso, Swafford, Troy e o restante da companhia tentam se livrar do tédio (sempre ele) treinando e, quando Sykes — o sargento responsável por botar alguma ordem na casa — se distrai, enchendo a cara. Talvez fosse o caso de advertir, ainda no intróito, quem procurasse pelo banho de sangue habitual das fitas do gênero que esta história é feita de outro barro. “Soldado Anônimo” é só o que diz o título: um filme sobre alguém que se pretendia famoso por atos de bravura num confronto sangrento, mas que só o que conseguiu foi transferir suas frustrações, agora para um lugar hostil, em meio a um apanhado de outros descrentes. Cada um travando sua própria guerra, em seu próprio mundo.

“Sleepers — A Vingança Adormecida” talvez seja o filme da vida de Barry Levinson, um incompreendido que digere muito bem essa sua condição. Responsável por joias raras — e solenemente ignoradas, seja por público, seja por critica, seja pelos dois juntos, a exemplo de “Rain Man” —, com “Sleepers” Levinson pretende o de sempre: centrar fogo no submundo, metaforicamente, por meio da história de quatro garotos do lado esquecido de Manhattan, a Hell’s Kitchen, ou “cozinha do inferno”. O bairro, célebre pela maciça presença de imigrantes, parece um lugar até digno, do qual se pode ter alguma esperança de sair, tão distante, mas, ao mesmo tempo, tão próximo do coração do mundo. A trama se desenrola de forma leve, mesmo displicente, até a molecagem dos protagonistas, o que dá origem ao plot. O oba-oba acaba aí: depois de furtarem um cachorro-quente, eles são mandados para um reformatório. A partir de então, quanta diferença! Ter surrupiado o lanche lhes custa tortura, abusos sexuais e a ameaça constante de aparecerem mortos, como se dá com vários dos internos. O diretor tenta – e talvez esse constitua o calcanhar-de-aquiles do filme — não descer tão baixo e inventa situações engraçadinhas, a fim de mitigar um pouco a referência a tanta devassidão. A estratégia é meio contraproducente, envergonha um tanto o público, mas, tomando-se o todo, Levinson diz a que veio.