Todo leitor que se preza chega ao texto esperando algo em troca, pois tem mais o que fazer da vida. No caso de textos científicos, jornalísticos, ensaísticos e correlatos, espera encontrar informação e reflexão de qualidade, de preferência em linguagem clara e elegante. Em se tratando de ficção, subscrever com sucesso o pacto narrativo (deixar-se levar por uma mentira) e acompanhar com interesse as peripécias de uma história. Da relação autor/leitor deriva uma sub relação que a crítica literária chama de narrador/narratário.
Há nessas relações todo um protocolo de boa conduta, solicitude, elevada estima e respeito mútuo. Sequiosos de agradar essas criaturas tão fofas que dá vontade de um beijo, de cuja inteligência convém não duvidar e a quem a lei garante um rol de direitos, editores e redatores da grande imprensa se esmeram na arte da deferência e da cordialidade, não economizam em expressões como caro leitor, querido leitor e amigo leitor, frequentemente acompanhadas de abraços fraternos, felicitações e votos de bem-aventurança, saúde e prosperidade.
Objeto de mimos, elogios e afagos, o leitor está um passo à frente do autor no jogo da mediação textual, uma vez que não escreveu coisa alguma e, portanto, não há nada do que se possa culpá-lo. “Escrever um livro e publicá-lo é expor uma parte nossa de maneira que não permite nenhum tipo de defesa, para então sermos julgados por quem não arrisca nada” cravou o escritor norueguês Karl Ove Knausgard sobre a estranha compulsão de publicar textos, correndo assim o risco de expor-se ao ridículo de livre e espontânea vontade.
Esses seres anônimos que não arriscam nada são em geral tão autoconfiantes, seguros de si e cheios de amor-próprio que ao lerem uma expressão como “todo leitor que se preza” não encontram dificuldades em se vincular a essa eminente categoria do apreço. Tamanha consideração por si e pelos outros, tão destacada reserva de gratidão do leitor amigo, digno de glória, aliás grato por continuar lendo, muito gentil da sua parte, é consequência direta de uma personalidade incrível e de um caráter ilibado, acima de quaisquer suspeitas, qualidades que fazem dele uma pessoa excelente, que, como se não bastasse, domina noções de direito civil e literatura, companhia deveras agradável, craque em interpretação de texto, um luxo.
O leitor ideal, esse lindo, também chamado de leitor grau-zero, é alguém culto e generoso, entusiasta das críticas construtivas, capaz de reconhecer o mérito, nem um pouco obscurantista ou preconceituoso, uma pessoa do bem, ótimo papo. É dado como certo entre os entendidos, contudo, que o leitor grau-zero não existe, é uma ficção, uma abstração, o que existe é o leitor virtual — ou seja, o leitor possível. Não precisa sacar todas as piadinhas, se pegar o contexto está de bom tamanho. Durante o processo de fruição do texto, o leitor virtual se transforma no leitor empírico. Você, no caso.
Desnecessário mencionar que o mínimo que se espera de todo leitor é que seja alguém higiênico, do tipo que lava as mãos quando vai manipular um texto, como certamente o fez antes de manter qualquer interação táctil com os caracteres que seguem habilmente dispostos na tela ou na página, pois guarda para si a própria sujeira, obrigado.
Chamada, na dramaturgia, de “quebrar a quarta parede” (o limite que separa real e fantasia, público e palco), a técnica de conversar diretamente com o leitor é, como você bem sabe, uma das principais características da prosa de Machado de Assis. Mas nem tudo são flores nessa conversa.
Quantidades expressivas de estudos literários já observaram que à medida que a obra de Machado amadurece a relação do narrador com o narratário fica menos condescendente e mais tensa. Essa mudança de perspectiva se deve tanto às transformações históricas das quais a obra de Machado é um espelho quanto às inovações estéticas que forjaram um estilo único, cujo sabor se torna mais encorpado com o tempo. O narrador de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, por exemplo, não deve satisfações a ninguém, pois está morto.
Se, nos primeiros livros do autor, o narrador tende a dirigir-se ao narratário em tom amistoso e gregário, valendo-se de expressões típicas como caro leitor, amigo leitor e dileto leitor, na fase madura lança mão de recursos mais ousados. O entertainer desejoso de agradar a plateia dá lugar a um tipo mais solitário, cínico, não raro rabugento, que conversa com ares de intimidade, dirigindo-se a alguém cujo comportamento prevê, comenta e ridiculariza, chegando a pedir favores e contar bravatas. Ao tecer uma reflexão metalinguística sobre o livro que está escrevendo, Brás Cubas se atreve a declarar: “o maior defeito deste livro és tu, leitor”.
Embora digno de nota, o atrevimento do narrador-defunto machadiano não configura exatamente um caso raro na prática narrativa. Pululam exemplos de autores e narradores que viram o jogo da mediação textual, movem as peças no tabuleiro montado sobre a geologia do texto, pisam nos calos, ferem os brios, questionam e insultam. O leitor, que tanto se preza, se torna objeto de desapreço. Como lidar?
Assim como sádicos e masoquistas se comprazem em jogos eróticos consentidos de sadomasoquismo, o jogo da mediação textual entre autor e leitor, narrador e narratário, pode muito bem envolver elementos de violência, submissão e desprezo, nem sempre apresentados com linguagem castiça e bons modos. Não há qualquer lei que exija que o autor seja gentil com o leitor, muito menos que narrador o seja com o narratário, apenas uma convenção.
Convenção essa olimpicamente ignorada por João Ubaldo Ribeiro em “Diário do Farol”, lançado em 2002 pela editora Nova Fronteira, um livro que fala diretamente com você, mesmo que nunca tenha lido, de forma nada indulgente e desprovida de generosidade. Pois fique você sabendo, para sua própria segurança, que logo nas primeiras páginas o narrador alega que está contando apenas e tão somente a verdade, nada mais que a verdade, apesar do tratamento literário, e sugere que é melhor acreditar em tudo, pois, do contrário, irá matá-lo. Sim, matá-lo!
“A dúvida quanto a este relato é, portanto, para mim, absolutamente inadmissível e o mataria, sim, se tivesse os meios — e provavelmente os conseguiria —, caso você, que me lê, duvidasse e eu soubesse” garante.
De modo que é melhor não duvidar desse narrador diabólico que se dirige de forma contumaz ao desditoso narratário, a quem insulta, agride, ameaça e destrata seguidas vezes e com eloquente desenvoltura. Ao longo de trezentas páginas, utiliza a palavra “você’ nada menos que noventa vezes — sem contar as referências implícitas, como “se fizer isso…” — com as piores intenções e contundente falta de respeito, comprometido com o seu mal-estar e desconforto.
O narratário é chamado de muito ignorante, fracassado, voluntarista, idiota, oligofrênico, alvo de maldições e sortilégios — como que enlouqueça ou morra — e tratado com desprezo e indiferença: “Não gosto nem desgosto de você, não sei quem você é e nem quero saber”.
Fazer o narratário se sentir um nada é só uma das muitas vilanias praticadas por esse narrador inclemente que não está te convidando para embarcar numa aventura, mas para tomar parte num massacre. Chega-se ao texto como quem chega a uma orgia, uma briga de rua ou um linchamento. Inexistem protocolos de segurança. Se o leitor tem mais o que fazer da vida, é problema dele: “Foda-se você, pois. Se quiser continuar, leia”.
Satanás entra em cena com certo estardalhaço. Aproveite a oportunidade de conhecê-lo um pouco além das aparências, como sugere o narrador de “Dom Casmurro”: “O resto deste capítulo é só para pedir que, se alguém tiver de ler o meu livro com alguma atenção mais da que lhe exigir o preço do exemplar, não deixe de concluir que o diabo não é tão feio como se pinta”.
O furor infanticida de Medeia; os ardis e as intrigas de que Iago lança mão para manipular Otelo; a cobiça desmedida de Lady MacBeth; os que vendem a alma ao diabo — Fausto, Dorian Gray e tantos outros; os vilões, os demônios, os monstros; a inesgotável galeria de serial killers, psicopatas e criminosos que exibem dotes malignos e habilidades maléficas em histórias repletas de maldades. A força do mal atravessa a história da literatura.
No livro “A Literatura e o Mal”, Georges Bataille compara a expressão dos impulsos malignos com a atitude de uma criança desobediente que desafia os consensos forjados no mundo dos adultos, além de ver na busca pela infância perdida a origem de toda maldade. A figura de Satã, aqui, coincide com a de uma criança travessa, alguém que se recusa a crescer, a prescindir do seu quinhão de vileza e crueldade, mais ou menos como na canção “matador de passarinho”, de Rogério Skylab: “Aqui tem joão-de-barro, pintassilgo, pintarroxo, pica-pau e colibri. Aqui tem canário-belga, araponga, assum-preto, curió e bem-te-vi. Aqui tem tanta andorinha, caxambirra, quero-quero, rouxinol e juriti. Que servem de tiro ao alvo para espantar o tédio e o vazio de existir”.
Em “O Morro dos Ventos Uivantes”, considerada por Bataille a mais violenta das histórias de amor, Emily Brontë narra as desventuras de Heathcliff, um sujeito que viveu uma infância lúdica e primaveril ao lado de Catherine, caiu no mundo, fez fortuna e, ao retornar, encontrou-a casada. Movido por uma bestial nostalgia dos tempos de outrora, atormentado pelo amor perdido e julgando-se preterido por um sujeito a quem despreza, ele predispõe-se a destruir aquele casamento, humilhar aquela família e levar Catherine ao desespero. Uma atitude não muito evoluída da parte dele, fato.
Bataille vê na figura de Heathcliff “a da criança revoltada contra o mundo do Bem, contra o mundo dos adultos, e, por sua revolta sem reservas, devotada ao partido do Mal”. Tanto que esse verdadeiro profissional do ressentimento não consegue deixar de pensar ao contemplar o casal de pombinhos: “Se eu tivesse nascido num país em que as leis fossem menos rigorosas e os gostos menos delicados, eu me ofereceria o prazer de proceder a uma lenta vivissecção desses dois seres, para passar a noite me divertindo”.
Profanar o corpo alheio é uma opção que não pode faltar no cardápio de vilanias e maldades, mas se existe uma forma realmente abjeta de profanação é a profanação dos mortos, da qual você será vítima quando urinarem no seu túmulo. Segundo a teoria de Bataille, Proust teria exercido essa arte com maestria no colossal “Em Busca do Tempo Perdido”, obra na qual, ao devassar a memória da infância, o narrador devassa, por tabela, num furor investigativo coalhado de impulsos edipianos, a memória de tudo ao redor, com destaque para a mãe, a quem despe pouco a pouco, para deleite do narratário, até ficar nua em público.
Muito freudiano, decerto, aliás como a tese que lança sobre Kafka. Seguindo a linha de raciocínio, Bataille interpreta o humor inexplicável e endiabrado do autor de “A Metamorfose” como uma forma de zombar do pai e desafiar a família. Um menino introspectivo e inteligente cuja criatividade era implacavelmente desautorizada pela autoridade paterna, talhado para a vida burguesa e os rigores da burocracia, Kafka teria expressado sua rebeldia em textos que desafiam a lógica, subvertem as regras e satirizam a suposta normalidade do mundo dos adultos, uma farsa encenada por atores péssimos.
Seria a obra de Kafka uma grande travessura? Bataille cita um diálogo que o escritor teria encetado com Max Brodi a respeito do último trecho do conto “O Veredito”, em tom de bazófia infanto-juvenil, soando como o letrista de uma de banda punk-rock ao comentar seu último petardo antissistema: “você sabe o que significa a frase final? Pensei, ao escrevê-la, numa forte ejaculação”. Se você está pensando que já leu esse conto, só não lembra especificamente dessa ejaculante passagem, convém lembrar que deve estar confundindo “O Veredito” com “O Processo”, o qual, a bem da verdade, tampouco leu.
Assim como também não li “Diário de um Ladrão”, de Jean Genet, embora pretenda fazê-lo. Bataille garante que se trata de um livro brilhante, uma ode à corrupção onde viceja a celebração do crime e o orgulho da infâmia. “Genet exige o Mal aprofundado, radicalmente oposto ao Bem, o mal perfeito que é a beleza perfeita”, sustenta. Apresentados em tópicos com títulos trevosos e em caixa-alta como “a consagração sem reserva ao mal” e “a soberania e a santidade do mal”, os apontamentos do pensador francês apontam para o fato de que Genet só tinha uma coisa na cabeça ao escrever tão hediondo diário: a glória infinita e a força luminosa da maldade.
“Que ação voluptuosa a da destruição! Não conheço quem se deleite mais deliciosamente; não há êxtase semelhante ao que se saboreia ao se entregar a uma divina infâmia” celebra um dos algozes de “Justine”. Bataille vê em Sade, cuja obra não parece ter outro objetivo senão regozijar-se com a perversidade, a depravação, o estupro, a violência gratuita e o que de mais sórdido houver nas altas esferas da iniquidade, um gênio da literatura, e não é para menos. Com ele, a relação autor/leitor, narrador/marratário, adquire novas dimensões e revela novos contrastes. Lançado numa espécie de Paraíso ao contrário, onde delinquir é a lei e pecar um ato sagrado, o narratário torna-se parceiro no crime, testemunha de cenas ultrajantes, cúmplice de feitos tenebrosos.
Numa entrevista concedida a um canal de televisão francês, disponível no Youtube, Bataille reitera que a literatura e o mal são domínios inseparáveis e afirma que a estratégia de deixar o leitor em posição desconfortável é o gatilho que faz a literatura dinâmica, concluindo: “se a literatura se afasta do mal, rapidamente se torna um tédio”.
Entre as figuras que espantam o tédio e habitam o mundo das trevas, como a criança endiabrada, o gênio do crime, o tirano glutão, o profeta do caos e o destruidor de lares, não há quem rivalize, no quesito sedução, com o poeta rebelde. Bataille dedica ainda um ensaio a Willian Blake, em cujos versos, marcados pela audácia juvenil e pela recusa de limites, vê “uma turbulência de festa”, e outro a Baudelaire, dileto condutor de missas negras, apologista do vício e guardião do jardim da maldade.
Mas se há um poeta que representa a fina flor da rebeldia, não pode haver outro senão Rimbaud, o jovem que sonhou em alcançar impossível, viajou por lugares distantes e lendários, se relacionou com piratas, mercadores, traficantes e escreveu “Uma Temporada no Inferno” — “a idolatria e o amor ao sacrilégio; — oh, todos os vícios: cólera, luxúria — magnífica, a luxúria; — sobretudo mentira e preguiça”.
O escritor norte-americano Henry Miller, conhecido pelas cenas escrachadas de sexo explícito, era tão fascinado pela figura de Rimbaud que dedicou a ele o texto “A hora dos Assassinos — Um Estudo sobre Rimbaud”, onde compara o poeta a uma espécie de homem do futuro, alguém a frente do seu tempo, modelo de um novo tipo de pessoa.
Usando Rimbaud como tema central, mas tratando de outros assuntos, de espiritualidade à bomba atômica, passando por memórias da infância, dificuldades da vida de artista, cartas, confissões e divagações estéticas e filosóficas, Miller faz uma defesa vigorosa não do mal, mas da necessidade de reconhecer a existência da maldade, entender seus mecanismos, perscrutar sua envergadura, investigar suas entranhas.
“Que artista da palavra, nestes últimos anos, incitou o mundo como Hitler? Que poema abalou o mundo, recentemente, como a bomba atômica?” provoca. O mal que foi visto não pode ser desvisto. Vamos encará-lo de frente ou olhar para o lado?
Miller coloca o problema dessa forma: “Agora que conseguimos fracionar o átomo, o cosmos está escancarado. Ficamos donos de um poder que nem os deuses da antiguidade sonharam ter. Chegamos ali, às portas do inferno. Iremos arrombá-las, soltando todos os demônios? Creio que sim. Acho que o trabalho do futuro consistirá em vasculhar os domínios do mal sem deixar uma única sombra de mistério. Descobriremos as amargas origens da beleza, aceitando a flor e a raiz, o botão e a folha. Não podemos continuar resistindo ao mal: temos que aceitá-lo”.
Aceita, que dói menos.
Precedido pela breve e contundente afirmação segundo a qual não se deve confiar em ninguém, “Diário do Farol” começa numa ilha remota, onde um narrador anônimo, não confiável, que lá construiu um farol a quem chama de Lúcifer, O Portador da Luz, relata suas maldades.
De acordo com o entendimento deste singular sujeito da enunciação, que rapidamente se revela um psicopata, um sádico que goza com sofrimento alheio e quer mais é que você morra, o Bem e o Mal são rigorosamente a mesma coisa, forças complementares e equivalentes, estão embaralhadas no fluxo cósmico, portanto não há sentido em escolher o Bem se dele não advir qualquer utilidade.
A trama ganha contornos hamletianos quando o pai do narrador, personagem truculento que o humilha e destrata, repetindo seguidas vezes que tem uma “cara cínica”, mata a mãe para casar-se com a cunhada, com quem tem, mais tarde, dois filhos. A conclusão não poderia ser mais óbvia: “Eles haviam planejado e executado o assassinato da minha mãe porque eram amantes e queriam ver-se livres dela, num tempo em que ´desquite ` era uma palavra quase obscena e nem se pensava na existência do divórcio”.
Fustigado pelo fantasma da mãe, que clama por vingança — “Eu quero vingança, tua mãe te pede, te suplica vingança e essa vingança só chegará pelas mãos da Morte!” —, decide tornar-se não só um grande malfeitor, mas um mestre da maldade.
“(…) eu, Eu, seria mau, seria tão mau quanto me permitissem a astúcia, a dissimulação e o uso de qualquer recurso, por mais torpe, de que agora me sentia vigorosamente capaz, eu, Eu, seria o pior dos homens, Eu jamais seria vencido” planeja. O ódio ao pai cresce, se expande e se converte em ódio ao mundo. A teoria de Bataille encaixa perfeitamente.
Lançando mão de um plano meticuloso, logra êxito em envenenar e matar os irmãos e revela-se um cínico de mão cheia e mitômano inveterado. Entrementes entra para o seminário, onde prospera colecionando extorsões e chantagens. Enquanto isso, tece o plano que dá sentido à sua trajetória, o ápice da vida, a redenção, a glória — matar o pai, claro. Quando se apaixona por uma mulher chamada Maria Helena e é por ela preterido, sem demora decide matá-la. Torna-se então delator e colaborador do regime militar, infiltrado, valendo-se da autoridade clerical, em grupos subversivos dos quais a amada faz parte. O próximo parágrafo, no jargão da indústria cultural, contém spoilers.
O narrador delata Maria Helena e seu companheiro, que são presos, e acompanha, oculto e anônimo, as sessões de tortura e estupro às quais são submetidos, deleitando-se com o espetáculo. Tanto ao matá-los quanto ao matar o pai faz questão de, antes do desfecho apoteótico, confessar seus crimes, pois a melhor parte da vingança, a cereja do bolo da desforra, consiste em contar a verdade, revelar como foram iludidos, como são tolos e ingênuos em face do seu magistral cinismo e insuperável falsidade. Não basta que morram, é preciso que morram apavorados, em pânico, esmagados como baratas.
Em certo ponto, este malfeitor de mão cheia perpetra uma verdadeira obra prima da maldade: após ouvir a confissão de um preso moribundo, ministra-lhe a comunhão com uma hóstia envenenada. Revirando os olhos, a vítima pergunta “o que é isso?”, ao que o narrador responde: “o corpo de Cristo”.
E reflete, tomado de orgulho pela façanha: “Eu tinha envenenado o corpo de Cristo. Curiosa sensação: nunca havia acreditado em Deus e muito menos na divindade de Cristo, mas agora me sentia como uma espécie de vencedor, como se eu tivesse nocauteado Jesus numa luta de boxe, ou fosse um dos que o crucificaram”.
Observadores sagazes já observaram que o livro fala tanto do mal individualizado quanto do contexto que o cerca, revelando assim como a injustiça prospera numa sociedade que protege poderosos, estimula truculência e reproduz desigualdades. O tecido social brasileiro aparece nesse e em outros livros do autor, abusando do clichê, como uma terra do jeito que o diabo gosta, pródiga em bruxarias, feitiços, maldições, torturas, vinganças, crimes, adultérios, em suma violenta, sem escrúpulos, sem lei, senão a do mais forte. Nela o mal encontra as condições ideais de temperatura e pressão para sofrer mutações e gerar novas cepas cada vez mais resistentes e com maior potencial de transmissibilidade.
Uma ambientação parecida pode ser encontrada no romance “O Sorriso do Lagarto”, uma história onde o crime compensa e o mal prevalece. Nesse caso, o mal anda lado a lado com o avanço da engenharia genética, se confunde com o próprio conhecimento científico, o mal que tudo pode e a tudo aspira — cobaias humanas, seres híbridos, mutações dirigidas, experiências temerárias.
Na concepção do dr. Lúcio Nemésio, vilão da trama, o ser humano não passaria de “uma parte em mil de uma biomassa de dois milhões de milhões de toneladas” e toda essa conversa sobre Deus e leis divinas não passaria de uma balela supersticiosa. A figura de Satanás, aqui, se assemelha a do cientista inescrupuloso, para quem a palavra “bioética” não diz absolutamente nada, é, na verdade, motivo de piada. A analogia é tão evidente que o próprio personagem confessa com bom humor: “E então, diante do exposto, o senhor tem razão, eu sou de fato Satanás, o senhor tem razão, é mais do que lógico”.
A jogada satânica ou, mais simplesmente, a travessura em “Diário do Farol” consiste em projetar o mal para além de si, fazê-lo quebrar a quarta parede, transpor o limite das páginas e instalar-se, como um vírus, na mente do narratário: “Eu conto porque conto, você lê porque quer. Só não se atreva, como já avisei, a duvidar de mim, porque, mesmo sem chegar pessoalmente perto de você, eu o matarei, ou mais provavelmente ajudarei que a morte sofredora o leve, embarcado nos próprios pensamentos”.
A relação que você, leitor, tem com o narrador de “Diário do Farol”, que te ameaçou de morte caso não acredite no que vai narrado, ele, não eu, embora não descarte a ideia, é íntima, perigosa e repleta de camadas. O autor falou sobre ela em entrevista: “Esse negócio de leitor é meio misterioso. É muito comum que o leitor, da maneira mais inesperada, não entenda uma ironia. Não entenda que o escritor está dizendo o contrário do que está dito. O narrador de ‘Diário do Farol’ xinga o leitor. Não eu, João Ubaldo, mas muita gente reclamou que eu xingava os leitores. Isso é falta de prática de leitura”.
Falta de prática de leitura, um problema muito comum, talvez seja o seu caso. Talvez não. Suponhamos que seja o tipo de leitor que reconhece a diferença entre insultos pessoais e recursos estilísticos. Ótimo. Você lê o livro como merece ser lido: como — alta — literatura.
‘“Diário do Farol’, de João Ubaldo Ribeiro, é desses livros sobre os quais os críticos adoram escrever. É arguto, engenhoso, refinado. Há alusões a Sade, Shakespeare, Schopenhauer, Montaigne, Maquiavel. E tem muito sangue, assassinatos, envenenamento, loucura, traição, tanto quanto em Hamlet, digamos. O que mais podemos querer?” escreveu Marcelo Pen em resenha na “Folha de S. Paulo”.
O pacto narrativo é subscrito com êxito, uma história envolvente é contada, mas há de se ter uma arrojada capacidade de deglutição e digestão literária para encará-la, como apontou Luciano Otaciano na resenha que publicou no blog “Pensamento Solto”: “Se você querido leitor e caríssima leitora não tiver estomago forte é melhor passar longe da experienciação de leitura desse livro, pois aqui, em certos momentos a leitura lhe causará repugnância e nojo, muito embora a obra não deixe de ser considerada como um livro genial”.
Cientes do conteúdo, alguns comentaristas declinaram: “(…) não é o tipo de livro que leio (…)”; “parece ser uma leitura para quem curte o estilo, o que não é o meu caso (…)”; “confesso que a dica de hoje não fez muito meu estilo, não devo ter estomago, como você mesmo disse, rs”.
Uma vez lido ou meramente tendo seu contexto registrado por meio de uma resenha, um comentário, um ensaio ou algo do tipo, você então encaixa “Diário do Farol”na categoria “livros que fazem jus à fama de sinistros”. O narrador, na galeria de vilões persuasivos, ao estilo do canibal Hannibal Lecter, criado pelo escritor Tomas Harris e vivido no cinema por Antony Hopkins, ou do talentoso Ripley, de Patricia Highsmith. Caso encerrado?
Nem tente negar que o farol, na capa do livro, lançando uma luz que nunca se apaga, projeta uma áurea maligna que te encanta. Caso tenha se dado ao trabalho de chegar até esse ponto do texto, acompanhando as reflexões de um ensaísta pedante sobre um livro lançado há vinte anos, provavelmente é porque intua que há algo ali que te diz respeito. Você, não outra pessoa.
Te convido a ler “Diário do Farol” subscrevendo o pacto narrativo do início ao fim, ou seja, suspendendo a descrença no que vai narrado. Jogue o jogo que foi proposto, sinta uma presença macabra por cima do ombro a cada página virada, suponha que as bravatas ali bravateadas fossem de fato concretizáveis, por quaisquer meios que desconhece, pois sua ignorância é vasta em tantos assuntos que seria impossível enumerá-los.
Tome, como o narrador induz a fazer reiteradas vezes, o relato como verdadeiro. Entenda que esse é um ponto importante, tão importante ao ponto de a sua vida depender disso. Não o relato em si, com seus detalhes e particularidades novelísticas, mas a força que o move, a realidade que retrata. Não que aquilo tenha acontecido, mas que acontece aquele tipo de coisa. Não que aquela pessoa existiu, mas que existe aquele tipo de pessoa. E pode estar mais perto de você do que imagina, tipo uma grande confraria de malvados.
Aí você reflete sobre o fato de o autor ter dito que muita gente não sabe interpretar uma ironia. Sendo a ironia uma figura de linguagem que consiste em dizer uma coisa para significar outra, você se pergunta, então, onde estaria a ironia em “Diário do Farol”, sobretudo levando em consideração que não se deve confiar em ninguém. Chega a supor que não há no livro ironia alguma.
O mal retratado ali é tão real que você quase pode senti-lo na ponta dos dedos: ao traçar o perfil de um padre perverso, covarde, ressentido, perturbado, psicótico, mestre do cinismo e da hipocrisia, amante da tortura, um amoral político sempre ao lado dos poderosos, tomado por delírios de onipotência e vaidade, que se vale da religião para fins pessoais e mesquinhos, a mais perfeita cara de pau por fora e a mais gloriosa podridão moral por dentro, fiel ao objetivo de provocar sofrimento e infligir o dano, o autor não está carregando nas tintas com propósitos literários, ironizando isso ou aquilo. Antes estivesse.
Assim como não se lê Sade impunemente, ler “Diário do Farol” equivale a tornar-se cúmplice de um louco, para quem existe, no ato da tortura, uma espécie de ternura enviesada, um êxtase tão criminoso que chega a ser erótico: “Ah, que descobertas, que transes, que prazer misterioso me arrepiando desde as entranhas, em ver aquela relação de amor entre torturadores e torturados, em ver como alguns cediam logo e outros resistiam até quase à morte própria. Havia uma ternura enviesada nas torturas, havia, ouso dizer, quase orgasmos, pelo menos para mim, que agora ansiava por também participar das sessões”.
Não satisfeito em exaltar tais procedimentos, atiça no narratário as chamas da crueldade, convida-o para o festim sangrento, advoga em prol do que considera uma nobre arte: “(…) e que me desminta você, se já não sentiu uma atração irresistível, ao ver o quadro ou uma foto de um ser humano torturado”.
Se é verdade, como sugere Bataille, que deixar o leitor em situação desconfortável é o gatilho que torna a literatura dinâmica, a insistência no tema configura uma estratégia plena de dinamismo, apesar de repugnante: “Há, sim, toda uma arte e uma sensibilidade inata do ser humano pelo ato do assassinato, seja ele como for”. Não faltam elogios ao fetiche: “Matar, matar, não pode existir maior exercício de potência na existência humana. Matar, ver morrer, extinguir uma vida, matar, torturar, matar!”
A figura de Satã, aqui, lembra a do leitor que teima em virar as páginas, a sorver tão disparatadas irresponsabilidades, conivente com a delinquência alheia, quem sabe enfeitiçado por ela. Mas o leitor, esse travesso, quem é?
O leitor ideal ou grau-zero, certamente, como resenhistas experientes de jornais, revistas e suplementos literários, assim como eruditos, estudiosos, críticos, amantes da leitura e traquejados devoradores de livros. O leitor virtual, sem dúvida, alguém com grau de escolaridade médio, consumidor diletante de narrativas literárias, nem especialmente perspicaz nem particularmente inepto, dotado de capacidade mediana de interpretação de texto.
Mas, levando em conta que um texto só ganha sentido na medida em que é lido, existe um local onde o leitor ideal e o leitor virtual se diluem, na loteria do acaso, no único leitor de fato: o leitor empírico. Que pode ser qualquer um, em qualquer lugar, em qualquer tempo. O seu João. A dona Maria. Eu. Você: “Se você acha que posso estar me referindo a você, tem toda razão (…)”
Se o leitor espera algo do texto, o que o texto espera dele? Como te imagina, a você, que o está lendo?
O narratário a quem o narrador de “Diário do Farol” se dirige é alguém crédulo, ingênuo, tolo, idiota, trouxa, covarde, supersticioso, sem discernimento, coberto de preconceitos, idiota útil, massa de manobra, basicamente burrificado, facilmente manipulável, cruel embora não reconheça, vil embora não admita. Talvez o narrador não saiba em quem está batendo, mas saberá o narratário por que está apanhando?
Mais que o avalista de uma mentira, o leitor de “Diário do Farol” é o depositário de uma mensagem, algo lhe foi revelado, algo cuja dimensão talvez seja burro demais para mensurar, por isso merece patadas, por isso é melhor ficar esperto e pensar duas vezes antes de duvidar do que vai narrado.
O narrador chega a confessar que não está fazendo literatura, tem outros planos em mente: “Não estou escrevendo um romance, mas realizando um projeto pessoal de cujas intenções e motivações já lhe dei alguma ideia”. E dá uma pista de quais intenções e motivações seriam essas: “Minha esperança, obviamente, é contaminar o maior número de pessoas possível (…)”
“Não me convence a explicação de que o coronavírus teria surgido da natureza ou de um mercado de animais, como se diz” especulou o artista plástico chinês Ai Weiwei em entrevista, botando lenha na fogueira das teorias conspiratórias sobre a origem do flagelo que vem ceifando legiões de almas. Conspirações e especulações à parte, o caminho para derrotar o vírus passa pelo processo de conhecê-lo em detalhes e dele extrair a substância que ativa os tão sonhados anticorpos. Quanto mais letal, mais urge conhecer.
Não há registro de que João Ubaldo tenha lido o estudo de Henry Miller sobre Rimbaud, se bem que não seja improvável, mas você apostaria um braço que em relação ao trecho sobre o advento da bomba atômica e a necessidade de perscrutar o mal, investigá-lo por todos os lados, virá-lo do avesso e desmistificá-lo, não teria achado a ideia absurda, antes pelo contrário.
Para o leitor machucado, como qualquer leitor vivo à essa altura, ler “Diário do Farol” mais parece um exercício de presciência, como se a maldade ali descrita, que era latente, tivesse eclodido, saído do controle. Viralizado. Aquele que chegou ao texto esperando algo em troca, recebeu. Mas talvez não o que tinha imaginado.
Se há algo de irônico nessa história, é o seguinte: o leitor que foi amaldiçoado, de quem se espera que enlouqueça ou morra, está, emparedado entre o exaspero do isolamento social e o risco do terror pandêmico, cada vez mais acostumado com a verborragia de líderes religiosos que se superam em mau-caratismo, governado por líderes políticos que celebram torturadores, consumindo diariamente quantidades industriais de intolerância e truculência, compartilhando memes sobre enterros coletivos e facadas, de fato enlouquecendo ou morrendo.
Aqui, o diário escrito sob a luz e a benção de Lúcifer adquire uma dimensão que vai além da literatura, aquele lugar onde livros deflagram revoluções e ondas de suicídio, assassinam reputações, conjuram maldições e inspiram assassinos. Com “Diário do Farol”, mais do que um romance, o autor parece ter feito um feitiço. E você está envolvido.