A sociedade é um organismo vivo. Respira, se movimenta em determinadas direções, avança, recua muitas vezes, cresce, se desenvolve, enriquece, e como tudo o que vive, também apresenta suas moléstias, seus distúrbios, seus desvios de padrão. Nem todos se conformam em ganhar a vida como deveriam, e nem todos o querem. E ainda há os que simplesmente não conseguem manter um comportamento público que se alinhe com a ideia de civilização. Para esses, a repressão é mais do que benéfica, é necessária. O papel de reprimir condutas delituosas, desde sempre presentes na vida em comum, cabe, todos o sabemos, à polícia — ao menos, nas democracias, que é o que nos interessa. Operações policiais sempre despertaram a curiosidade geral. Fraudes ao sistema financeiro, sequestros de celebridades e de anônimos, caçadas a psicopatas perigosos e vigaristas de toda espécie… No mundo todo, a polícia está sempre assoberbada de trabalho. Filmes cujo mote central é a atuação de forças de segurança, muitas vezes destacando o desempenho acima da média de um profissional em particular, que se notabiliza por sua perspicácia, bravura e heroísmo, foram se tornando um it do cinema ao longo dos tempos. Desde o brasileiro “Os Estranguladores” (1908), de Francisco Marzullo, um dos pioneiros do gênero, a sétima arte registra centenas dessas histórias. Dez delas, filmadas durante este ainda curto século 21, estão na lista da Bula de hoje. “Estrada sem Lei” (2019), de John Lee Hancock, por exemplo, traz à telona a perseguição ao casal de delinquentes Bonnie e Clyde nos Estados Unidos dos anos 1930. A vida dos dois fora um tanto glamourizada em vários relatos, mas no filme se tem a exata dimensão da ameaça que representavam. Outra boa opção é “Blade Runner 2049” (2017), do franco-canadense Denis Villeneuve. Essa distopia, iniciada 35 anos antes, provocou sensação ao retratar as desventuras de um tira completamente perdido frente às irrefreáveis mudanças sociais no decorrer do tempo, em função da tecnologia e do mau uso dela. Filmaços, a despeito de quaisquer interpretações políticas que se queira imprimir acerca deles. Os títulos estão todos no acervo da Netflix e seguem apenas o padrão cronológico, do lançado há menos tempo para o mais antigo, cabendo a você escolher o melhor. Mãos ao alto!

Não raro, a bandidagem é banhada por uma aura de glamour e submetida a releituras históricas, que, além de falsas, fedem à mais descarada apologia ao crime. Definitivamente, como no brasileiro “Tropa de Elite”, por exemplo, não é o que acontece em “Estrada sem Lei”, a começar do título, não o traduzido, mas o original, “The Highwaymen”, ou “os homens da rodovia”. Comparar os nomes dados ao filme na versão transposta para o português e no idioma em que foi rodado pode parecer mera firula preciosista, mas diz muito sobre como um país se torna um paraíso perdido e outro, a maior potência global. Dirigido com brilho por John Lee Hancock, “The Highwaymen” nunca se deixa cair na armadilha de celebrizar Bonnie e Clyde, a vilãzinha e o vilãozinho, nessa ordem — sim, lamentavelmente criminosos se tornam celebridades — além do que de fato foram. Por outro lado, Francis Hamer e Maney Gault, os policiais aposentados, que tiveram trajetórias diametralmente opostas — enquanto Hamer consegue poupar algum dinheiro e viver numa bela casa com a mulher que o ama, Gault tem uma existência paupérrima numa pocilga pouco mais edificante que um trailer ou, para que fique mais fácil a comparação, um barraco de compensado de madeira, responsável por prover a filha e o neto — cumprem a missão (não de capturar, mas de matar o Romeu e a Julieta do submundo), contudo sequer aparecem junto à governadora do Texas, Ma Ferguson, que os menciona, claro, mas fatura todos os louros. O filme chega a ser didático de tão explícito ao apregoar a velha máxima que reza que o crime não compensa, ainda que muita gente — a imprensa, inclusive — se negue a sequer tolerar tal “reacionarismo”.

A história de um policial negro que se passa por um homem branco a fim de investigar como funciona a Ku Klux Klan, um grupo que se notabilizou por difundir ódio racial é tão absurda que só poderia mesmo ter acontecido de fato. “Infiltrado na Klan”, filme com o qual Spike Lee ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, conta a história de Ron Stallworth, até então o único policial negro de sua cidade, Colorado Springs. Ao se deparar com um anúncio da KKK publicado sem nenhuma cerimônia num jornal, ele liga para o número informado ali. A primeira aproximação é convincente e Stallworth estabelece um vínculo com um dos líderes locais da agremiação segregacionista. Por mais destemido que seja, ele não vai poder levar sua missão a cabo sozinho, por razões óbvias. E é aí que entra Flip Zimmerman, branco e judeu, seu parceiro na polícia. Zimmerman assume a identidade de Stallworth e se mistura ao bando, ainda que provoque a desconfiança de um dos fanáticos, que não lhe dá refresco.

Passadas três décadas e meia, vem à luz a continuação da história sobre um policial que caçava androides em Los Angeles. O original, lançado em 1982, passava-se em 2019. O futuro já é passado, mas a saga resistiu. Dessa vez, a trama se desenrola em 2049 e a tarefa coube a K, um novo blade runner, que não caça androides, apenas os “aposenta”. Num amanhã ainda menos promissor, os replicantes se tornaram mais saidinhos e inspiram o medo na população e a fúria das autoridades. O trabalho de K fica um tanto mais difícil devido à descoberta de uma caixa na qual está o mote do novo “Blade Runner”. Uma androide gera uma filha, cujo pai é um humano. Um milagre, portanto. O diretor Denis Villeneuve aceitou o desafio de dar sequência à história, que decerto não para por aí, por temer que outra pessoa não desse ao filme o tratamento que ele merecia. Foi o homem certo para o projeto certo: “Blade Runner 2049” é fiel à ideia que lhe deu azo, sem, no entanto, ter ficado com cara de um simples pastiche do original. Em “Blade Runner 2049”, Villeneuve conseguiu, a partir de um filme-conceito amplamente conhecido e cultuado, imprimir sua assinatura e sua visão de mundo. Clássico com uma genealogia à sua altura.

O suspense do diretor Jang Hang-jun vem confirmar a trajetória ascendente do cinema sul-coreano. A narrativa do ótimo “Rastros de um Sequestro” gira em torno de Jin-Seok, que acaba de se mudar com a família para uma casa nova. Certa noite, o rapaz presencia o sequestro do irmão mais velho, Yoo-seok, que volta 19 dias depois, sem se lembrar de nada. A reação de Yoo-seok poderia ser entendida como natural frente a tamanho choque, mas Jin-Seok começa a estranhar o comportamento dele e o fato do irmão sempre sair a altas horas. Convencido de que a pessoa que passou a conviver com a família não é Yoo-seok, o protagonista decide investigar o caso por conta própria.

“Um Contratempo” segue o padrão dos filmes de suspense policial espanhóis produzidos nos últimos anos: uma história com protagonistas especialmente bonitos, um anticlímax atrás do outro, locações soturnas e a dose certa de violência — neste caso, dosada até demais, o que não chega a ser algo que deponha contra o trabalho do diretor Oriol Paulo, um discípulo aplicado dos mestres Alfred Hitchcock e Brian de Palma. A premissa é simples, quase simplória: um sujeito diz ser acusado por um crime que não cometeu e procura a melhor advogada que encontra. Ela faz questão de saber toda a história, com todos os detalhes. Ao passo que ele se explica, ela o contesta —- afinal, antes ela que a promotoria, ou o júri, ou, o pior, o próprio juiz. Tudo tem de sair de forma a fazê-lo parecer de fato inocente e, assim, se livrar da cadeia. O caso é que, quanto mais ele fala, mais se enrola (até porque a situação toda é mesmo um grande enrosco), mais o crime se distancia de um desfecho satisfatório para sua defesa e mais controversa se torna a advogada, sem que o espectador saiba ao certo quem desempenha que papel ali.

Em “Sicario: Terra de Ninguém”, continuação do aclamado “Sicario: Dia de Soldado”, o diretor Denis Villeneuve, como sempre, deixa sua marca: um filme de acordes vibrantes, seja pendendo para o suspense clássico, seja o misturando ao terror e dando matizes mais pronunciados a este. O soberbo roteiro de Taylor Sheridan conta a história de Kate Macer, agente do FBI escalada para uma força-tarefa a fim de deter o manda-chuva do tráfico no México, que administra um poderoso cartel. A operação está envolta em uma densa névoa de mistério, conduzida por policiais de conduta duvidosa, e é em meio a este cenário que Kate terá que combater o sangrento tráfico internacional de drogas, sem se deixar esmorecer nem se seduzir por ele.

A captura e posterior execução do terrorista Osama Bin Laden pelos soldados americanos talvez fosse o mote perfeito de uma peça de propaganda com o propósito de enaltecer o caráter combativo — e vitorioso — das forças de segurança dos Estados Unidos. Não nas mãos de uma diretora tarimbada, escolada e prevenida como Kathryn Bigelow, que tem se dedicado com especial atenção ao tema. Bigelow, auxiliada pelo magnífico roteiro de Mark Boal, consegue tirar todos os véus que pretendiam encobrir os bastidores da morte de Bin Laden, o UBL, como o chamavam os militares, desde os atentados contra as torres gêmeas do World Trade Center, no centro nervoso de Manhattan, em Nova York, e o pentágono, em Washington, em 11 de setembro de 2001, ao início dos trabalhos para pegar UBL, em 2011, no Paquistão. Para isso, a dupla concentra seus esforços na figura de Maya, analista da CIA que obtém a pista que faltava para liquidar o saudita depois de oito anos de um trabalho meticuloso. Aliás, a isso se resumiu a vida de Maya ao longo desse tempo. Fica clara a anulação total da protagonista quanto a tudo o que não tem relação com seu ofício: ela não sai, não tem amigos, namorado, nada. São raras as vezes em que o cinema retrata de forma tão contundente a obsessão de uma mulher por se superar no exercício de suas funções, como o fez brilhantemente em “Cisne Negro” e de maneira meio jocosa em “Uma Secretária de Futuro”. Talvez seja esse o grande recado que Kathryn Bigelow queira passar, ela própria uma obstinada como poucos. A propósito, “Guerra ao Terror”, também dela, faturou os Oscars de Melhor Filme e Melhor Diretor de 2008 contra nada menos que “Avatar”, de seu ex-marido, James Cameron.

Uma trama muito acima da média, um bom elenco, a fotografia perfeita e… voilà!, se dá a mágica. O detetive aparentemente clichê de Leonardo DiCaprio se vê no meio de uma investigação nada convencional em que ele próprio adquire papel de destaque. Nessa história, mais uma parceria de sucesso fragoroso entre DiCaprio e o diretor Martin Scorsese, não cabe qualquer estereótipo dos filmes típicos do gênero. Aqui, o protagonista vai ter de deixar a aura de herói noir dos anos 1950 e mergulhar de cabeça no cotidiano de um sombrio manicômio presidiário no meio do oceano se quiser encontrar o culpado pelo assassinato de um interno, crime levado a cabo por alguém com experiência no ramo, já que não ficou nenhum vestígio pelo caminho. A situação se complica bastante quando um furacão deixa a ilha incomunicável, vários prisioneiros fogem e o caos se instala de vez.

Muito se falou sobre “Tropa de Elite”. O filme foi acusado pela esquerda de ser um libelo fascista a fim de justificar a violência de uma polícia despreparada e que se orgulharia de sua natureza “matadora”; a direita, por sua vez, desceu a ripa em “Tropa” porque viu exageros quanto aos métodos, digamos, inovadores do Capitão Nascimento para punir bandidos. Deixando de lado bobagens de parte a parte, “Tropa de Elite” é um grande filme que, lastimavelmente, continua atual. Se o diretor José Padilha tem alguma crise de consciência — o que não deixa transparecer, ao menos nas muitas entrevistas que concedeu —, pode se tranquilizar: “Tropa” mantém sua aura de obra de arte e, de lambuja, pode ser tomado como o registro do espírito de um tempo e um divisor de águas no cinema nacional. Nunca se falou de maneira tão desabrida sobre tantos temas fundamentais e urgentes no Brasil desde sempre, mas que eram solenemente silenciados, como se com a negação do problema fosse possível saná-lo. Corrupção policial, milícias, tráfico, alienação de uma classe média medíocre e hipócrita, que não vê imoralidade alguma em consumir drogas como válvula de escape uma vez ou outra, ignorando de propósito que também por essa razão o tráfico se perpetua, está tudo ali. José Padilha resolveu deixar o Brasil — o que não deixa de ser um recado — e foi cuidar da vida noutras paragens, primeiro em Hollywood, onde dirigiu a superprodução “Robocop” (2014). Depois, se envolveu em projetos de vulto, como a série “Narcos”, da Netflix, igualmente comercial, mas inteligente, e foi o responsável pela montagem de “Sete Dias em Entebbe”, sobre o sequestro de um avião por muçulmanos na então capital de Uganda, esse, sim, cabeça e restrito a circuitos muito específicos. Padilha faz falta no Brasil, sempre falto de gente que diga as coisas sem se preocupar em fazer concessões pelos mais diferentes motivos.

Frank Abagnale Jr. foi médico, advogado e até piloto de avião antes dos 21 anos. Bem, na verdade conseguia elaborar farsas tão sólidas, calculadas nos mínimos detalhes a fim de evitar qualquer barriga, qualquer indício de suas vigarices que merecia tê-los sido mesmo. Steven Spielberg se inspirou na autobiografia desse escroque, responsável por golpes que lhe renderam milhões de dólares, para contar a história de uma busca encarniçada pelo delinquente mais ousado de que se tivera notícia na América em muito tempo. E é justamente aí que o filme começa, depois de se remover o glacê de psicologismo acerca das razões que levaram Abagnale a abraçar a carreira de estelionatário. O jogo de gato-e-rato entre o protagonista e o detetive interpretado por Tom Hanks — e não há papel insignificante para Tom Hanks; ele faz miséria ao encarnar o policial sóbrio, meio malvestido e abnegado, doido para botar outro pilantra na grade e marcar mais uma cruz na coronha — sem dúvida consta do top five dos mais eletrizantes do cinema. Aqui, Hanks e Leonardo DiCaprio, que dá vida a Abagnale, batem uma bola num dérbi cheio de lances surpreendentes, ainda que só se confrontem a certa altura da narrativa. Os dois parecem disputar a atenção do espectador, e conseguem: ora se torce por um, ora se quer que o outro leve a melhor. A trilha sonora ao fundo, enquanto Abagnale leva a termo suas mutretas e some no ar ainda ecoa na cabeça da gente vinte anos depois. O crime não compensa, nunca. Mas há criminosos mais charmosos que outros.