Foi no primeiro dia de aula do terceiro ano primário que a professora leu seu nome na chamada: Deodoro Francisco Braga Horta Neto. E disse com entusiasmo: com um nome desse, nasceu para ser diplomata. Bonito e imponente. Quando anunciarem seu nome numa convenção da ONU, todo mundo vai parar e prestar atenção no Brasil.
Ao chegar em casa, contou aos pais que ele nasceu para diplomata. Um susto. Será que a história iria se repetir? Seu bisavô paterno, cujo nome vem sendo repetido desde então, foi diplomata de relativa importância. Durante o regime de exceção, por desavença com a política oficial, foi assassinado covardemente. Um trauma. A família aristocrática entrou em decadência e, como se estivesse num biorritmo, agora passava pelo momento de baixa. Maldito o dia em que a professora despertou nele a vocação atávica. O pai estava aclimatado como sitiante. Os filhos mais velhos também iam se encaminhando pelo mesmo rumo. Estava bem assim. E o caçula, rapa do tacho, 10 anos mais novo do que o irmão acima, o Chiquinho, como era chamado em família, não haveria de desviar o rumo. Desviar significava seguir a carreira do ancestral.
Os pais entreolharam-se, sem apoiá-lo nem repreendê-lo. Qualquer ação poderia, com o tempo, reverter-se em munição para que ele insistisse no disparate. Abafaram seu sonho com indiferença, ao mesmo tempo em que tentavam influenciá-lo a gostar das coisas do sítio, como os irmãos: doma gentil no rodonel, clube do laço, prova do tambor, cavalgadas de domingo, além da lida cotidiana. A esperança era que cada filho pudesse constituir seu rancho e criar sua prole nos arrabaldes do sítio. Todo mundo por ali, próximo, numa proteção mútua. A felicidade em estado puro e simples.
Ao invés de arrefecer, a vontade de Chiquinho só crescia. Passou a frequentar a escola com gosto redobrado, sem reclamar do frio nem da distância. Esqueceu as dores de cabeça e os enjoos de estômago. Não reclamava mais da intimidação física e verbal dos colegas. Tornou-se o melhor aluno da escola. Lia tudo o que achava sobre diplomacia, Itamaraty, Instituto Rio Branco. Tomou conhecimento da morte trágica do bisavô, seu xará, e fez dele seu herói. A determinação do caçula era o espinho que machucava a alma dos pacatos sitiantes.
Concluiu o curso médio e arrumou um preparatório a distância, para o Rio Branco. Estudava dia e noite, com afinco. Diante de tanta teimosia, os pais se convenceram de que ele tinha chances reais de entrar para a diplomacia. As estratégias adotadas não surtiram efeito. A mãe, mais tinhosa, arranjou uma garota bela e faceira para dar-lhe lições de gramática e seduzi-lo. Apesar dos esforços extraordinários da moça, começaram um namoro de baixa liga. Ele tinha pouco tempo para as atenções devidas. Mas como os sentimentos impulsionados pelos hormônios não são uma força desprezível, Chiquinho acabou cedendo mais do que gostaria. Concedeu ao namoro algum ardor e prometeu, à namorada, casamento. Assim que concluísse o curso diplomático.
O candidato a futuro diplomata fez inscrição. Reservou hotel em Brasília e passagem de avião para chegar, ao local da prova, a tempo e a hora. Era manhã de junho e, ao contrário de todas as expectativas, chovia. Na emoção da saída de casa para o aeroporto, a namorada passou mal. Amoleceu a coluna como se tivesse ficado invertebrada de repente. Entrou em convulsão. Um quadro preocupante e horrível. Chiquinho sentiu-se na obrigação de levá-la ao médico. O socorrista aplicou-lhe, na veia, um anticonvulsivo. Demorou mais do que o normal para se restabelecer.
A moça finalmente serenou a musculatura e a respiração. Ficou na enfermaria com a futura sogra. Chiquinho entrou no carro. Pediu ao irmão que acelerasse. O irmão ponderou que o asfalto molhado recomendava prudência. Parecia arrastar-se, o veículo. Chegaram, ao aeroporto, atrasados. Não havia outro voo! E a prova?! Chiquinho viu o sonho fugir no horizonte qual nuvem de agosto. Recobrou o fôlego. Comprometeu-se a continuar afiado para a prova no ano seguinte.
Enquanto aguardava nova chance, o namoro esquentou, do jeito que os pais queriam. A moça ficou grávida. Agora, mal posicionado, com a vida encaminhando-o para assumir as obrigações paternas, precisou adiar o sonho. Depois, desistiu de vez.
Um dia de liberdade excessiva, numa roda de chope, com amigos, a mulher deu a conhecer que o namoro e o desmaio, tudo não passou de um ardil bolado pela mãe. Foi um bafafá. Quase resultando em divórcio. Porém, o apego ao filhinho, aos poucos, aplacou-lhe os ânimos. E, ao mesmo tempo, iniciou-se um processo depressivo.
Fez tratamento psicológico e psiquiátrico, com pífios resultados. Começou a pensar em suicídio. A ideia cresceu, invadindo todo o seu sentido de viver. Pensou em veneno, corda, tiro na cabeça, salto da ponte. Escreveu cartas de suicida. Várias. Cada vez, mais trágicas, no sentido de culpabilizar os pais e a mulher pela sua frustração.
Sem aviso e sem que alguém esperasse, chegou a pandemia do coronavírus. O pai, desgraçadamente, morreu na primeira leva. A mãe e a mulher, na segunda. Chiquinho, o ex-futuro diplomata, envergonhado, rasgou a última carta de suicida, viveu a via crucis do luto e agarrou-se à vida com toda a força de seu ser.
Agora, não havia mais em quem jogar culpas. Tinha um filho órfão de mãe para cuidar. Além disso, começava a rebrotar do chão arado de seu espírito o desejo atávico da diplomacia.