Andam sobrando demônios no coração das pessoas de bem

Andam sobrando demônios no coração das pessoas de bem

Tentar com mais de ternura dava um certo trabalho. Já tinha vomitado cinco vezes. Mais uma golfada e acabava por virar-se do avesso. O cheiro de gás entristecente que escapava dos foles, das conexões e das traqueias lhe embrulhava o estômago. Sentia na mente uma certa amargura e, na língua, o amargor de uma gosma esverdeada, mais conhecida entre os profissionais de moléstias extremadas como suco biliar. Pensou em cervas. Achou o nome daquela substância enzimática deveras hilário. Suco biliar, ora e essa. Lembrou-se dos jogos de bilhar, da forma patética como tinha perdido dinheiro suado para um desastrado desadestrador de tigres, um petralha de linhagem esquerdopata cuja mão destra — a ruim — fora decepada, mastigada e cuspida pelas mandíbulas afiadas de um felino, dentro da jaula de um circo de horrores em Brasília. Achava humilhante ao cubo perder grana no jogo de sinuca para um maneta com ares de socialista que, ainda por cima, se gabava por ler livros, gostar de cinema e ter se casado com outro cara. Amor. Isso era o tipo de coisa que não podia admitir entre pessoas do mesmo sexo. 

Não era afeito à democracia, à liberdade de expressão e outras frescuras. Apesar disso, sentia uma tola e imperscrutável vontade de chorar, de cair fora, de cagar no mato, de regurgitar uma vez mais, por que não. Brisa hospitalar era ambiente para loucos. Era expressamente proibido vomitar dentro da UTI, a não ser que se estivesse internado nela. Foi advertido com rispidez e arrogância francesa por uma enfermeira sexy, uma aborígene de três pernas que — ele soube mais tarde — odiava índios e florestas, deitava a madeira, contudo, amava a enfermagem, a jardinagem e, sobretudo, a sacanagem. O branco dos olhos lembrava os de Josie, A Vesga, uma evangélica dançarina de pole dance da polinésia boêmia do Plano Pilates.

Possuía feições taurinas e cenho anal. Ninguém tinha nada a ver com isso. Limpou a saliva cor-de-grama na manga do capote. “Que se dane quem for lavar essa droga mais tarde.” Inspirou profundamente. Equilibrou-se sobre os cascos. Odiava bancar o frouxo. Ficou ali parado, em pé, sem saber direito o que dizer, sem saber onde enfiar as mãos, estancado ao lado do catre hospitalar como se esperasse por um ônibus. Por mais que se esforçasse, não reconhecia as feições daquele moribundo deplorável como sendo as do filho caçula. De fato, os hematomas, as lacerações e os dentes faltando na arcada dentária em nada lembravam o rosto suave e sem penugens do rapaz.

— É capaz que bateram nele com porrete-de-dar-em-doido, com cipó-de-aroeira-no-lombo-de-quem-mandou-dar ou com tacos mexicanos”, comentou uma funcionária fantasma que fora deportada do umbral e que trabalhava como auxiliar de sujeiras, sempre a emporcalhar as consciências e a meter o bedelho onde não era chamada.

— Andam sobrando mais demônios no coração das pessoas de bem, concluiu, incongruente, patética, fanfarrona, passando o rodo ensebado, repleto de recordações e de micróbios, sobre as botinas do visitante e evaporando logo em seguida, como se fora apenas mais um fantasma com cheiro de tabaco e éter.

Tocava “Te quiero muerta muertinha de amor en mis brazos”, na voz cafona e fanhosa de Júlio Iglesias. Até então, desconhecia que tocassem música e punheta dentro de hospitais. Tudo parecia surreal ao extremo, mais do que se casar e, ainda por cima, ter que ser feliz para sempre. Era óbvio que ansiava ter o filho de volta, são e salvo, sorridente, magnético, divertido como se fosse um bezerro a saltitar no pasto; “O terror das mocinhas do bairro”, gostava de fanfarronar.

Àquela altura da visita hospitalar, já tinha controlado o ímpeto das vísceras crispantes. Secou com gaze estéril uma lágrima histérica que insistia em lhe fugir dos olhos esbugalhados. Sentia-se furibundo quando o coração amolecia. O médico plantonista aproximou-se pela retaguarda e, quebrando a protocolar frieza dos esculápios, pousou a mão contaminada de delicadeza sobre o seu ombro fofo.

 — Sossegue, paizinho. O kid vai sair dessa.

Deu um pequeno sobressalto. Autoconfiante como um rottweiler, não estava nada familiarizado a gestos de solidariedade. Considerou intrusivo o excesso de afeto do plantonista que, viciado em adrenalina, não dormia há semanas e seguia movido a rebites fitoterápicos fumados em doses homeopáticas nos jardins suspensos dos complexos hospitalares. Superou o baque e quis saber, afinal de contas, como tinha sucedido o fatídico acidente automobilístico que deixara o seu filho dileto num estado tão ruinzinho, tão destoante daquele rapazola com cara de James Dean que todos apreciavam a escorar o queixo com as duas mãos, como se rezassem para um santo feito de louça Made in China.

— O senhor ainda não sabe?

— Não sei o quê?

O médico explicava que não tinha sido trombada de carro, de trem ou de elefante.

— Antes fosse, meu caro. Seu garoto e um amigo foram brutalmente moídos por uma falange de neo-brancos patriotas de olhinhos azuláceos em Cidade Satélite.

 — Ladrões malditos… balbuciou, aturdido, a socar uma mão contra a outra, ávido por quebrar-lhe os ossos da cara em regime de emergente vingança.

— Não foi um assalto, pai. Os rapazes foram vítimas de tocaia, de linchamento, de ataque homofóbico, se é que me entende.

 — Como assim, doc? Quer dizer então que, além de brutos e covardes, os celerados ainda eram gays?

O plantonista pigarreou, sacou a máscara de látex da cintura, inspirou uma fração extra de oxigênio florestal amazônico e foi cuidar de outro interno numa situação menos crítica do que aquela, alguém que tinha se sufocado de mágoa, mas, agora, graças a Elvis, já conseguia respirar por conta própria, sem o auxílio artificial, pero luxuoso, de equipamentos deste ou de outros mundos.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.