Os artistas sempre travaram uma perseguição o seu tanto insana no encalço da atenção do público, por sua vez sempre disperso. É do ofício de quem lida com arte estar em constante busca por alguma coisa nova, realmente nunca vista, seja do ponto de vista da criação mesma, ou quer se trate da forma como se vai levá-la ao público. Quanto mais tentam aprisionar o homem em gaiolas, ainda que douradas, mais a natureza humana, teimosa, se arvora em romper limites e voar, voar alto. A humanidade é ávida por sonho desde seu primeiro passo sobre a Terra, haja vistas as pinturas nas cavernas e esculturas legadas por nossos ancestrais mais primevos. Talvez seja apressado asseverar que a humanidade nunca tenha precisado tanto de uma garantia qualquer de que continua capaz de sonhar como agora, mas decerto é exato afirmar que, como o sol que se levanta todos os dias, o sentimento de que o mundo pode ser um lugar perfeito é uma doce mera. Ao homem, só resta mesmo sonhar. Por meio de narrativas que mesclam com a exata displicência realidade e o maravilhoso, o fantástico, o que gostaríamos que existisse, mas não existe, criaram-se grandes obras da literatura mundial, tendo sido o escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), o autor que mais destaque recebeu ao publicar livros que falavam de terras fictícias em que se passavam fatos aparentemente absurdos, caso de “Cem Anos de Solidão”, de 1967. Gabo, como era conhecido, pode ser considerado o pai do realismo mágico, a corrente literária latino-americana que fez frente à literatura fantástica produzida na Europa. Ao misturar tão bem sonho e realidade, Gabo provou que sempre fora possível dar corpo a histórias sublimes, sem deixar de lado a vontade de mudar um tanto a vida real. O escritor virou tema de um documentário, “Gabo: A Criação de Gabriel García Márquez” (2015), de Justin Webster, que faz considerações a respeito da vida e da obra desse gigante do século 20. Além da biografia de Gabo, a Bula menciona outros dez títulos cujo tema toca com profundidade essa maneira tão própria de se narrar uma trama. “Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas” (2003), do diretor americano Tim Burton também se vale do real maravilhoso para levar um enredo cheio das mais chãs questões que nos coloca a vida. Os filmes foram listados do mais recente para o mais antigo, sem normas de avaliação, e estão todos à disposição no catálogo da Netflix. Agora, é assistir e se responder à pergunta de um milhão de dólares: a vida é sonho?
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Comédia pontuada por um drama de família bastante sui generis, “O Homem sem Gravidade” traz a história de Oscar, que nasceu com um curioso distúrbio: ele não é afetado pela gravidade (a propósito, é antológica a cena do nascimento do garoto). Oscar não conta com um pai para chamar de seu, mas é cercado do amor da mãe e da avó superprotetoras, que se esforçam em escondê-lo dos olhares curiosos — e, certamente, carregados de maldade — da vizinhança. Ao se tornar adulto, o protagonista decide ver o que se passa por trás das paredes de casa, e logo é assediado a fim de trabalhar como garoto-propaganda, o que o faz se sentir como uma espécie de aberração. O diretor Marco Bonfanti se vale do enredo para elaborar teses sobre como teria sido a vida de Oscar — que recebe esse nome justamente em referência à premiação do cinema americano, circunstância que o desloca ainda mais do mundo real — se não houvesse passado pelo subjugo da família. Aqui, o fato de a gravidade não se aplicar a Oscar se enquadraria como uma metáfora quanto às amarras a que estamos todos submetidos desde o momento em que vemos a luz do dia pela primeira vez. Da gravidade apenas Oscar escapa, e seu desafio maior será tentar se equilibrar entre a vida comum que deseja ter e sua condição fenomenal, que o lança para tão distante do resto da humanidade.

Lazzaro é um jovem morador da fazenda Inviolata, cuja dona, a marquesa Alfonsina de Luna, mantém seus empregados sob a condição de escravos. A polícia realiza uma batida na propriedade e os liberta, conduzindo os trabalhadores à cidade. No caminho, Lazzaro acaba caindo de um penhasco e ninguém procura por ele. Alguns anos depois, Lazzaro ressuscita e vai atrás dos antigos colegas. Com elementos do realismo mágico, mas também rendendo homenagem ao neorrealismo, responsável por verdadeiras joias do cinema italiano, a diretora Alice Rohrwacher escalou para viver Lazzaro um ator sem experiência, que se revelou um achado. Por ter estado a vida inteira por baixo, mas sem nunca encontrar um jeito de virar o jogo, o personagem é tão complexo. Adriano Tardiolo, o intérprete de Lazzaro, dá conta do recado com o pé nas costas e lembra outros célebres tipos sofridos e adoráveis da tela grande, a exemplo do Forrest Gump de Tom Hanks e do Gilbert Grape de Johnny Depp. Tudo uma ode à sensibilidade, neste ou em qualquer tempo, deste ou de outro mundo.

Numa engenhosa crítica à indústria de alimentos — e, por extensão, ao próprio capitalismo —, Bong Joon-ho apresenta ao público a história de Okja, uma espécie de simbiose de hipopótamo com porco que resultou num animal estranhíssimo, mas dócil e muito lucrativo. A criatura faz parte de um lote de 26 espécimes, que irão para diversas partes do mundo. Okja, uma fêmea, é destinada para a Coreia do Sul. Ao fim de algum tempo, os animais serão novamente reunidos num concurso, a fim de se saber quem dispensou o melhor tratamento ao bicho que lhe coube, eleito vencedor da competição. No entanto, vencido esse prazo, Mikha, tutora de Okja, se apegou muito a ela e não cogita interromper essa relação. “Okja” encampa um atilado libelo contra o consumismo, a degradação do meio ambiente e a ética relapsa no que concerne ao tratamento dos animais empregados como alimento, e, claro, as consequências de tamanho descaso e ganância na saúde das pessoas. O filme faz pensar sobre até que ponto é válido se permitir capturar pelas armadilhas do consumo cada vez fácil usando para tanto a figura de uma garota e seu mascote, aparentemente repulsivo, mas que só desperta compaixão e ternura.

O plot de “Animais Fantásticos e Onde Habitam” parece tolo: Newt Scamander, bruxo inglês, desembarca em Nova York no ano de 1926 com uma maleta cheia de criaturas mágicas, troca a maleta com outra pessoa e perde seus estranhos bichinhos, que logo são acusados de uma série de delitos na metrópole. Só parece. Numa espécie de revival da saga “Harry Potter”, de J.K. Rowling, roteirista e autora dos best sellers sobre um certo menino-bruxo que dominou o mundo — e, de quebra, o mercado editorial —, além do livro que dá azo ao filme, vê-se uma releitura muito apropriada da história publicada a partir de 1997. Aqui, Scamander é já um feiticeiro tarimbado, que se defronta com alguns percalços bem típicos da vida adulta: gente sinistra com formas ainda mais sinistras de ver a vida, carreira, responsabilidade. É óbvio que há muitas semelhanças entre Scamander e Potter — afinal, os dois foram pensados por uma mesma cabeça —, mas igualmente há muitas diferenças. A autora aproveita que mudou o protagonista para também realizar inovações no cenário e na época em se desenrola a trama, a fim de capturar outros públicos. Sem deixar de abordar, ainda que maneira superficial, temas como xenofobia, intolerância racial e abuso sexual de menores. Tudo isso num filme sobre as aventuras de um mágico atrapalhado. Isso, sim, é que é bruxaria.

Cria do teatro, Roger Eggers mostra a que veio já em seu début na sétima arte. “A Bruxa” apresenta apuro estético e veracidade em cada uma das cenas que compõem este longa de 2h20. Eggers presenteia o espectador com um filme espantoso ao contar as desventuras de William e Katherine, um sombrio casal de imigrantes ingleses que se estabelecem na Nova Inglaterra, Estados Unidos. Forçados a deixar o lugar onde se instalaram primeiro, se dirigem para uma floresta. As desgraças pelas quais vêm se defrontando são coroadas quando o filho mais novo, um bebê de poucos meses, simplesmente some diante da irmã mais velha, que tomava conta dele. A garota é acusada pelo desaparecimento do pequeno devido a um mal-entendido, fruto de uma brincadeira infeliz que fizera com outros dois irmãos. A numerosa prole, composta por cinco filhos, vai diminuindo sucessivamente, e resta claro que há mesmo uma entidade demoníaca se instalando no seio dessa família.

O nome do documentário pode ser compreendido de duas maneiras. Pode-se pensar na vasta obra do autor, que conta com livros a exemplo de “Cem Anos de Solidão”, publicado em 1967, a pedra fundamental do realismo mágico na América Latina, ou em como o garoto simples de Aracataca, cidadezinha perdida no litoral da Colômbia, transfigurou-se num dos mais importantes literatos de seu tempo. Quem veio antes, Gabo ou Gabriel García Márquez? A cinebiografia dirigida por Justin Webster tenta exorcizar a aura de mito de García Márquez, enquanto deixa claro o quanto valoriza essa mesma mitologia. O escritor foi um aventureiro convicto, desses que não se furtam a encarar uma mudança de vida radical ao vislumbrar uma boa oportunidade. Primeiro, saiu da casa dos pais rumo a Bogotá, aos 16 anos, sozinho. Ao longo da carreira de jornalista, García Márquez foi cruzando o país inteiro com a mulher, Mercedes Barcha. Os embates políticos de um esquerdista sitiado num continente infestado de ditaduras de direita, os apuros de dinheiro até atingir o sucesso e seu momento máximo na literatura, a láurea com o Nobel, em 1982, estão entre as muitas passagens do enredo. Gabo ou Gabriel García Márquez são duas figuras dignas da admiração de qualquer um, goste-se ou não de seu estilo.

Edgar Wright está por trás de quase toda a concepção de “Scott Pilgrim Contra o Mundo”, adaptação da série de graphic novels de Bryan Lee O’Malley. O enredo é um achado ao se valer das variadas mídias audiovisuais que permeiam o cotidiano mais prosaico de qualquer adolescente e jovem adulto de uma forma que, até hoje, soa revolucionária. Scott Pilgrim é um cara comum: tem vinte e poucos anos e passa o rodo em toda garota que lhe parece atraente — muito em função do posto de guitarrista numa bandinha de garagem — sem se preocupar demais com uma possível desilusão da outra parte (até porque ele mesmo acabou de levar um fora da namorada). Logo surge em sua vida Knives Chau, apaixonada por ele, mas que não lhe diz muita coisa além de beijos, amassos e que tais. A banda de Scott participa de um concurso em que o vencedor vai assinar com um influente produtor musical, e isso é o que realmente importa na vida dele. Ao passo em que sua história segue, Scott nota que a juventude não é um salvo-conduto para se cometer toda a sorte de idiotices e começa, enfim, a entender que o buraco é mais fundo do que ele supunha. “Scott Pilgrim Contra o Mundo” é uma odisseia pop ao retratar os muitos estágios da vida de um rapaz inconsequente rumo ao amadurecimento, fundamental para a vida. Mesmo quando se é um rock star — ou quase isso.

Desencantada com o fracasso de seu relacionamento, Clementine decide esquecer Joel. Para tanto, se submete a um experimento que varre de sua memória os momentos vividos com ele. Joel, ao saber da história, fica muito ressentido e desapontado, afinal ainda a ama, mas decide dar o troco e também participa dos testes. Lá pelas tantas ele se arrepende, constata que definitivamente não pretende apagar Clementine da lembrança e exige que a operação seja interrompida. Tirando da cartola alguns clichês da comédia romântica e os misturando a mancheias de ficção científica, Michel Gondry dá corpo a um filme delicado, original e lúdico, que se utiliza de todos esses predicados para suscitar no público a reflexão sobre a fluidez das relações, instabilidade que se verifica em larga proporção na própria natureza humana.

Edward Bloom está à morte e precisa se entender a tempo com o filho. O jornalista Will se sente enganado por não saber nada sobre a verdadeira vida do pai, um compulsivo contador de histórias fantasiosas que diz protagonizar. Tim Burton tem aqui toda a liberdade para fazer o que faz como nenhum outro diretor: inventar. “Peixe Grande…” é um filme bonito e simples, graças à genialidade de Burton. A história remexe o baú de ossos do velho Bloom, muito mais abarrotado de memórias do que julga o filho. O longa tem algumas das sequências mais emocionantes da história do cinema, como quando o protagonista, já confuso devido ao último embate com a indesejada das gentes, pergunta ao filho como ele iria morrer. Ou ao apresentar, depois de Bloom já morto, as cenas em que se despede dos inúmeros — e exóticos — tipos que passaram por sua vida e se torna de fato quem sempre fora.

Uma série de crimes misteriosos toma vulto em 1799: cadáveres começam a surgir decapitados nas ruas de Nova Iorque. O único capaz de resolver o caso é o detetive Ichabod Crane, um policial excêntrico e obstinado, que se destaca por apresentar um método, bastante peculiar de trabalho. Crane suspeita que o culpado pelo banho de sangue seja uma criatura sobrenatural, contra a qual ainda não sabe se seus talentos investigativos serão de alguma serventia. Em “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” se fazem presentes todos os elementos característicos das histórias de terror, que fizeram do diretor Tim Burton uma genuína grife — ainda que os filmes de Burton não se encaixem propriamente essa categoria. Casarões funestos, névoa densa, sepulturas com lápides de pedra, carruagens soturnas e a pesada indumentária do século 18 compõem a atmosfera da obra, com a qual Tim Burton faturou o Oscar de Melhor Direção de Arte. Burton, aliás, é hors concurs em apresentar tramas de terror sem prescindir de lirismo, bom gosto e beleza.