A Coreia era, no princípio, um território situado na península de mesmo nome ao nordeste da Ásia, composto por duas nações soberanas ao norte e ao sul. Esses povos já viviam sob tensão constante, situação que se exacerbou após a Guerra da Coreia, em 1950, quando exércitos do Norte invadiram a porção meridional. Os conflitos só acabaram três anos depois, graças a um armistício. À luz da história, oficialmente ninguém foi declarado vencedor, mas se tornarmos por análise o contexto dos dois países no mundo hoje, é óbvia a superioridade da Coreia do Sul, um governo democrático cuja economia sempre em franca ascensão é responsável por garantir à sua população excelente padrão de vida. No que respeita à arte, nada que possa receber esse nome floresce numa ditadura como a que a Coreia do Norte é sujeitada há quase setenta anos, então viva a arte — e o cinema — sul-coreano! Os filmes produzidos na Coreia do Sul pouco a pouco, bem à moda oriental, têm cavado seu pedaço na preferência junto ao público, abordando os mais diferentes temas, de dramas familiares a tramas de zumbi. A Bula hoje traz dez dessas joias, diamantes que foram cuidadosamente lapidados por diretores dotados de um apurado senso estético e técnica afinada. É o que se constata em “Sonhos Lúcidos” (2017), de Kim Jun-sung, sobre um homem devastado pelo sequestro do filho, e “Invasão Zumbi” (2016), de Yeon Sang-ho, que conta, sim, a história de criaturas monstruosas que dominam o mundo dos vivos, mas sob um ângulo que surpreende pela atualidade. Os filmes são citados do mais recente para o mais antigo, não seguem critérios de classificação e se encontram todos à mão na Netflix. Tome um trem rumo ao melhor do cinema sul-coreano já!
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Apesar de ser uma trama adaptada do livro homônimo e já levada à telona antes, a versão do diretor sul-coreano Lee Chung-hyeon é um primor de originalidade. O filme conta a história de Seo-yeon, que atravessa um momento difícil e vai morar na casa de campo da família. A propriedade, antiga, dispõe de um telefone sem fio e a protagonista passa a receber ligações insistentes de Young-sook, uma garota da sua idade que parece desesperada por ajuda. As duas dão início a uma estranha relação, sempre mediada pelo aparelho, em que Seo-yeon descobre que Young-sook também vive na casa, numa outra época. Em pouco tempo, o vínculo entre elas provoca mudanças drásticas na vida de cada uma, numa sucessão de acontecimentos que não respeita o fluxo natural do tempo e embola passado, presente e futuro.

Mortos-vivos volta e meia aparecem na tela grande, nem sempre em filmes de terror. Frequentemente, zumbis são apresentados à plateia numa trama híbrida que mescla situações horripilantes com comédia, drama, ação, ficção científica e até romance, como é o caso de #Alive, do diretor Il Cho. O filme, a estreia de Il Cho, conta a história de um garoto aficionado por jogos virtuais que precisa permanecer vivo em meio a um apocalipse zumbi e se encerra em seu apartamento. O cenário torna-se ainda mais caótico quando o fornecimento de energia é cortado e ele se vê impedido de falar com parentes e amigos, jogar online e se conectar com o mundo exterior.

No longa, Park Tae-Gu é um gângster que, ao perceber que sua irmã e seu sobrinho correm risco de vida por sua causa, decide abandonar o crime. Entretanto, a decisão vem tarde demais: os dois são mortos por acidente num atentado que fora tramado contra o próprio Tae-Gu. Consternado, o protagonista se vinga matando o chefe da facção, a quem culpa pelo assassinato da irmã. O que ele não imaginava era que a sua própria gangue o largara à deriva, fazendo com que ele se tornasse não só extremamente vulnerável a seus inimigos, como o principal alvo deles. Agora, a única alternativa que resta a Tae-Gu é pensar o quanto antes num destino onde possa estar em segurança. Ele acaba indo parar na casa de Jae-yeon, uma outra sobrinha, de quem irá se aproximar depois de alguma resistência por parte dela.

O suspense do diretor Jang Hang-jun vem confirmar a trajetória ascendente do cinema sul-coreano. A narrativa do ótimo “Rastros de um Sequestro” gira em torno de Jin-Seok, que acaba de se mudar com a família para uma casa nova. Certa noite, o rapaz presencia o sequestro do irmão mais velho, Yoo-seok, que volta 19 dias depois, sem se lembrar de nada. A reação de Yoo-seok poderia ser entendida como natural frente a tamanho choque, mas Jin-Seok começa a estranhar o comportamento dele e o fato de o irmão sempre sair a altas horas. Convencido de que a pessoa que passou a conviver com a família não é Yoo-seok, o protagonista decide investigar o caso por conta própria.

Mistério, thriller policial, fantasia e ficção científica pontuam a trama de “Sonhos Lúcidos”. Por meio dela, o espectador conhece Dae-ho, jornalista investigativo cujo filho sofre um sequestro num parque de diversões. Mesmo depois de três anos de buscas, o paradeiro do menino não é encontrado, e Dae-ho resolve tentar rever a criança com a ajuda do projeto Sonho Lúcido. A iniciativa consiste em fazer com que o interessado reviva suas próprias lembranças e sonhos, também podendo invadir as memórias de outras pessoas. A partir de então, o enredo desenvolve uma constituição em espiral que avança e retrocede para realidade e fantasia, ora privilegiando o lado lúdico, ora destacando os instantes de lucidez da vida de Dae-ho.

Imagine o cenário catastrofista do juízo final somado a uma alegre paranoia. Isto é “Steel Rain”, cuja trama se concentra na insólita parceria de um operário norte-coreano, que se destaca dos colegas graças à inteligência acima da média, e um nerd a fim de interromper a sanha nuclear de um tirano. Ao adaptar sua própria série de quadrinhos virtuais, o escritor e diretor sul-coreano Yang Woo-seok transpõe para o cinema a histeria anticomunista, acentuada com a Guerra Fria. Pleno de ação e efeitos chamativos, o filme propõe uma viagem sob a perspectiva do casal dos estranhos protagonistas da história. Uma alegoria cheia de referências a um mundo eivado da fúria suicida de políticos dos mais diversos matizes ideológicos.

Sim Deoksoo, um septuagenário que vive dos aluguéis de seus imóveis, se une ao experiente policial Park Pyeongdal a fim de desvendar uma série de assassinatos. Os crimes costumam obedecer ao mesmo modus operandi adotado por um serial killer que matava velhos e mulheres jovens 30 anos antes. Sim, um norte-coreano que foi para o sul fugindo da Guerra Civil, é uma figura pouco apreciada no bairro. Genuíno ranzinza, ele não tem muitos amigos e faz questão de cobrar seus inquilinos de maneira bastante incisiva, o que o torna ainda mais antipático. Contudo, apesar de muita gente lhe dever, ele nunca despeja ninguém. A um tempo misantropo e solidário, se compadece do drama dos vizinhos porque sabe que também é um pobre-diabo, vivendo à margem como eles. Ao observar a polícia encontrar o cadáver de um conhecido, esse velhinho rabugento chega à conclusão que ainda pode ser útil ao se aliar a Pyeongdal.

Tão original quanto vibrante, essa produção sul-coreana mostra que zumbis estão longe da extinção nas telonas. Dirigido por Yeon Sang-ho, “Invasão Zumbi” apresenta um homem divorciado com uma compulsão por trabalho que é convencido pela filha, que mora com ele, a levá-la para uma temporada com a mãe. Eles tomam um trem para Busan, mas a viagem, que deveria ser tranquila, acaba apresentando mais percalços do que imaginavam. Repentinamente, se dá um surto de zumbis na Coreia. E uma dessas criaturas vai parar no trem, o que gera comoção e tumulto, até que o caos se instala de vez e seja preciso lutar para continuar vivo. O ritmo frenético em que os acontecimentos se sucedem na trama corresponde à ideia que se pode ter de uma invasão de seres sedentos por subjugar e devorar pessoas.

A história de “O Hospedeiro” introduz o público às desgraças de uma típica família pobre da Coreia do Sul. Gang-doo cria a filha sem mãe junto com o pai. Os três vivem numa cloaca à beira do rio Han, expostos a toda sorte de imundícies e dejetos químicos, sem a menor possibilidade de sair dali. O enredo mistura ironia e drama numa crítica de pronunciado teor socioambiental, sempre respeitando a inteligência e o livre-arbítrio do espectador e sem descuidar da forma como conduz a trama ao se valer de efeitos especiais muito bem executados. Bong Joon-ho assina um filme de ficção-científica dos mais qualificados, que tem o mérito de fomentar a reflexão sem panfletarismo, dosando a carga dramática do longa a fim de que a narrativa nunca resvale para o clichê ou para o tédio.

Nas entranhas do submundo do crime, muitas vezes nem tudo é o que parece. Kim Sun-woo, um destacado membro da máfia coreana, está diretamente subordinado a Kang, líder da quadrilha. Kim recebe uma importante missão: espionar Hee-soo, uma das mulheres do chefe, que ele suspeita estar sendo infiel. Caso se comprove a traição, Kim tem ordens de executá-la sumariamente, tarefa que não o agradaria. Com “O Gosto da Vingança”, Kim Jee-won proporciona ao público o que se tornou a tônica do cinema sul-coreano: um filme equilibrado, que se divide entre o drama introspectivo de um thriller e cenas de ação coreografadas com maestria. É um noir original — ainda que com um plot já meio gasto.