Antes dividido entre um regime em que vigiam as regras de mercado e no outro o socialismo, a República Federal da Alemanha é hoje um país moderno e adepto a inovações de toda natureza. A Alemanha conta com instituições fortes, ordenamento jurídico que prima pela observância dos mandamentos civilizatórios e um sistema bancário sólido. O alemão é considerado em todo o mundo um povo disciplinado, ainda que dado a uma boa cerveja, e de emoções muito ponderadas. Bem, essa última informação talvez não seja lá tão precisa, haja visto o cinema que desde sempre se realizou na Alemanha. A sétima arte germânica é pungente, pródiga de exemplos de filmes que ultrapassam qualquer estereótipo ligeiro que se queira alimentar. As histórias tedescas já levadas à tela grande refletem, em grande parte a índole de seu povo, por óbvio, mas povo nenhum é uma só coisa nem pode ser resumido a um único gênero de comportamento. O cinema da Alemanha, seja rodado no país, seja baseado no modo de vida alemão, nunca se permitiu limitar a temas políticos — como o nazismo, por exemplo —, e é repleto de obras-primas, caso de “Berlin Calling” (2008), de Hannes Stöhr, e “Está Tudo Certo” (2018), de Eva Trobisch, ambas histórias com elementos completamente universais que poderiam se dar em qualquer parte do mundo. A Alemanha é mesmo uma terra para todos os homens. Os títulos foram organizados a partir do ano de lançamento, do mais recente para o mais antigo, sem critérios de preferência. Hab viel spass!
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix

Luisa, estudante de direito, nasceu numa família privilegiada. Sua melhor amiga a convida para participar de um grupo antifascista; só então ela se depara com novas demandas sociais, motivada pela necessidade de lutar contra a ascensão de ideologias totalitárias na Alemanha. Luisa passa a integrar o grupo, que vai adquirindo uma postura cada vez mais violenta frente à truculência do outro campo. Com “E Amanhã… O Mundo Todo” a diretora e roteirista Julia von Heinz propõe uma discussão acerca da suposta necessidade do uso da violência a fim de barrar excessos, bem como os limites desse procedimento, expondo as incongruências de parte a parte. Em resumo, lança mão do sempre atual Maquiavel e quer saber se os fins justificam mesmo os meios. O espectador é levado a questionar, não sem uma boa medida de estranhamento, a maneira que a protagonista encontrou para dar sentido à sua vida. Luisa é uma aferrada humanista no combate aos perigos totalitários, mas, por outro lado, torna-se igualmente uma criminosa, atitude para a qual o filme deixa clara sua reprovação.

Uma mulher tenta a todo custo superar a dor de ter sido estuprada pelo cunhado do seu chefe e seguir vivendo. Mas esse trauma lhe marca tão profundamente que ela não sabe até que ponto vai seu instinto de sobrevivência e quão sólida está para voltar a enfrentar a vida como ela é, com todas as suas tragédias e glórias, eventos presentes no destino de todo indivíduo sobre a face da Terra, em maior ou menor proporção. A estreante Eva Trobisch catapulta um assunto tão espinhoso quanto o da violência sexual ao centro da trama de “Está Tudo Certo” e provoca em cada espectador o debate sobre em que medida um acontecimento nefasto como esse é capaz de afetar toda a vida de uma mulher, por mais que ela mesma se recuse a acreditar. O próprio nome do filme, aliás, alude à negação da gravidade do crime pela vítima, indo além e sugerindo ainda a suposta culpa que algumas mulheres sentem por terem sido seviciadas.

Quando uma pessoa atingiria o ponto em que poderia se considerar realizada, feliz? O que vem a ser felicidade, afinal? Ter um bom emprego, uma casa, uma família com cachorro e tudo? O cineasta Felix Starck e sua mulher, a cantora Selima Taibi, a Mogli, dispunham de todos esses itens e não eram felizes. Eles só sabiam que precisavam se reciclar, se reinventar. Fazer uma viagem poderia ser o meio mais eficaz e agradável a fim de chacoalharem a pasmaceira da vida a dois e, de quebra, produzir um novo filme e lançar outro álbum. Venderam o que tinham, empacotaram o pouco de que iriam necessitar e deixaram a Alemanha decididos a cruzar a América de ponta a ponta, do Alasca à Patagônia, levando consigo Rudi, o cachorro do casal. Se nem tudo corresse como o esperado, teriam ao menos uma boa história para contar aos netos: um dia, tinham tido a coragem de procurar o destino com o qual todo mundo sonha.

Crônica perspicaz sobre a passagem do tempo, “Lommbock” conta a história de Stefan e Kai, dois amigos que se reencontram depois de alguns anos e constatam que tiveram trajetórias completamente distintas uma da outra. Enquanto Stefan se tornou um advogado de sucesso em Dubai, Kai permanece como se congelado na própria vida, sem perspectiva alguma na cidade em que nasceu, se equilibrando entre seus muitos problemas e tentando não deixar que sua personalidade difícil arruíne seus poucos relacionamentos. Para piorar, não sabe o que fazer para ajudar o filho adotivo, metido com traficantes de drogas. Os amigos despejam suas lembranças um sobre o outro, sem se esquecer do terceiro membro do trio, Frank, de quem não têm qualquer pista.

Herbert ainda sonha com o passado de glórias no ringue, mas há muito deixou de ser o boxeador vitorioso e implacável do passado e tem de se conformar em ganhar a vida como segurança e cobrador de dívidas, usando para essas atividades a força física, a única coisa que lhe sobrou de lembrança dos áureos tempos — além de, quando dispõe de uma folga, treinar o pupilo Eddy, uma promessa do boxe. Ao descobrir que tem uma doença terminal, esse gigante ferido tenta se reconciliar com a filha Sandra, a quem abandonou anos atrás. Vira-e-mexe, o cinema ressuscita o mote do grandalhão meio abobalhado e emocionalmente instável, incapaz de lidar de maneira satisfatória com os próprios sentimentos, deixando um rastro de corações partidos por onde passa. Não se iluda, contudo: “Herbert” tem muito mais a oferecer que clichês requentados num prato bonito. É uma história muito bem contada, com atuações arrasadoras, de deixar qualquer um na lona.

“Nós Somos Jovens, Nós Somos Fortes”, alerta para uma questão cada vez mais delicada e carente de solução: a inclusão de imigrantes na vida social de um país, a Alemanha no caso em tela. O filme relata um dos ataques xenófobos mais cruéis da história alemã no pós-Segunda Guerra Mundial. Em 24 de agosto de 1992, vândalos neonazistas atearam fogo num abrigo para moradores de rua em Lichtenhagen, bairro de Rostock, cidade localizada no estado de Mecklemburgo, na Pomerânia Ocidental. Milagrosamente, ninguém morreu. O atentado é dissecado sob diversos prismas, sem, todavia, aliviar o lado dos criminosos, um grupo de jovens desempregados e desiludidos, ameaçados pela crescente presença estrangeira, mas no fundo nada mais que arruaceiros que encontram nessa chaga recém-aberta (cuja profundidade sua ignorância não consegue sequer tocar) no corpo já tão cheio de cicatrizes da Alemanha a válvula de escape para extravasar as frustrações de uma existência esvaziada de significado. O fato de o diretor do longa ser ele mesmo um homem não-germânico dá uma carga dramática ainda mais vibrante à trama, que nem de longe conseguiu a projeção que merece.

O diretor austríaco Andreas Prochaska brinda o espectador com uma abordagem nova acerca das origens da Primeira Guerra Mundial. Mesmo em se tratando de uma história ficcional, “Sarajevo” apresenta o trunfo de não se deixar distorcer pela paixão que a trama certamente suscita, nos mais variados públicos. O filme se desenrola na cidade que lhe empresta o nome, palco do evento responsável por ser o gatilho de batalhas que levaram quatro longos anos, de 1914 a 1918, ao redor de todo o mundo. Um herói pobre e forasteiro se depara com uma poderosa rede de empresários gananciosos e fanáticos nacionalistas tedescos que acreditam que só uma guerra seria capaz de garantir à Alemanha a hegemonia que ela supostamente merece e, dessa maneira, dominar a Europa. Para eles, o sacrifício de um casal da nobreza austríaca, o arquiduque Francisco Ferdinando e a esposa, é um preço aceitável a se pagar frente aos incalculáveis ganhos que o atentado trará ao país.

Bem-sucedido misto de suspense direto e humor negro, “Stereo”, o segundo filme de Maximilian Erlenwein, é, de algum modo, o contrário do primogênito “Gravity” (2008), em que o trauma que origina a culpa do personagem principal desencadeia também seu lado negro até então muito bem escondido. Aqui, Jurgen Vogel dá vida a um homem cuja normalidade superficial de bom sujeito pode ser uma forma de negação, com Moritz Bleibtreu no papel de uma espécie de alterego do protagonista, cujo objetivo maior é destitui-lo dessa casca de bondade. Numa transição suave da comédia negra psicológica para um sangrento tiroteio entre gangues, a fita empreendeu uma carreira respeitável nos países do Velho Mundo.

“Berlin Calling” apresenta a história de Martin Karow, o DJ Ickarus, famoso na cena eletrônica noturna de Berlim. O incansável travelling da câmera atrás do personagem ao longo de todo o filme faz com que o espectador pense que está diante de um documentário, já que a ação frequentemente se intercala com performances ao vivo. Esses trechos foram utilizados nos trailers veiculados no início e sob os créditos, a fim de dar um efeito de realismo, em especial quando são discutidos assuntos tão ingratos como drogas, seus efeitos colaterais e distúrbios psiquiátricos advindos do consumo constante e desregrado de entorpecentes, a rotina de muitos DJs profissionais.

Traude, uma velha professora de piano. Jenny, presa por homicídio. Essas duas mulheres não teriam nada em comum, não fosse a sensibilidade artística e o talento, pretexto que faltava para que pusessem as diferenças de lado e começassem a se ajudar, ambas padecendo de um mal tão íntimo e ao mesmo tempo tão evidente. Ao passo que essa improvável convivência se desdobra, elas percebem, enfim, que são muito mais parecidas do que poderiam imaginar. A octogenária mestra ainda sofre as consequências do nazismo, remoendo velhas mágoas ao longo de toda uma vida infeliz, o que só lhe traz mais angústia e um mortífero sentimento de autopiedade. Ao se convencer de que Jenny tem mesmo potencial, Traude passa a projetar na moça o sucesso que jamais conseguiu alcançar. O problema é que Jenny também não tem lá muita destreza quanto a lidar com seus próprios fantasmas.