Ao se procurar o vocábulo “psicodelia” num dicionário qualquer, o resultado pode ser frustrante. Não é todo pai-dos-burros que registra a palavra, o que faz a gente se sentir mais órfão ainda. Frequentemente, manifestações artísticas — instalações de artes visuais, sobretudo — lançam mão do conceito de psicodelia a fim de dar uma definição acabada para o que se vai apresentar ali (muitas vezes atendendo a apelos mercadológicos, que se diga). Não raro, se associa o termo “psicodélico” a experiências extrassensoriais, quase sempre relacionadas a drogas, principalmente as sintéticas, mais devastadoras; contudo, em sua acepção mais restrita, a compreensão de psicodélico se refere a reações da alma quanto a determinados estímulos, nada além disso. O cinema é psicodélico por natureza, como toda forma de arte, mas a Bula entendeu o espírito da coisa e listamos dez filmes com o melhor que o cinema já produziu no ramo. Caso de “Medo e Delírio” (1998), de Terry Gilliam, baseado no bem louco “Medo e Delírio em Las Vegas”, de Hunter S. Thompson, livro publicado em 1971, além de “Réquiem para um Sonho” (2000), de Darren Aronofsky, sobre as agruras de uma família que vai se fragmentando aos poucos. Os títulos se sucedem do mais recente para o mais antigo e não observam parâmetros de classificação. Polêmicas à parte, viva a psicodelia no cinema!

Um grupo de desertores da Guerra Civil inglesa, maltrapilhos e morrendo de inanição, cambaleiam pelo país, sonhando em topar com uma cervejaria na colina mais próxima. Eles encontram não o maná para suas necessidades de álcool, comida e diversão, mas O’Neil, um necromante e praticante de artes proibidas, que os subjuga e aprisiona. O’Neil impõe seu sadismo com particular esmero a Whitehead e o obriga a ajudá-lo a localizar uma carga de ouro enterrada em algum lugar de suas terras. No cenário da completa aniquilação provocada pela guerra, o medo da morte e a descrença em Deus criam as condições para a paranoia geral, desencadeada pela ingestão de cogumelos que nascem a esmo por ali.

“Viagem Alucinante” é como o controverso diretor Gaspar Noé enxerga a jornada do homem no mundo. A humanidade é representada aqui por dois irmãos, órfãos desde criança. Oscar é assassinado e Linda, a irmã que resta, segue a vida de modo inconsequente, se apresentando como stripper. Na existência pós-morte que se inicia, passado, presente e futuro se tornam um só e se manifestam sob a forma de visões que distorcem a realidade ou tornam-na mais ampla. O que se assiste é cuidadosamente pensado a fim de compor um painel multicromático, alguma coisa como um neon vivo refletindo momentos aleatórios da experiência de maximização dos sentidos vivida por Oscar graças a substâncias psicoativas, como o LSD e o DMT. Acompanhar a euforia falsa dessa narrativa é como embarcar numa viagem em que morte, êxtase, o tempo em vazão partida e a consciência sob realidades múltiplas parece ser a última chance quanto a encontrar uma razão para viver, ou ter vivido.

Nessa crônica da agonia nossa de cada dia, Darren Aronofsky conta a história de Harry Goldfarb e Marion Silver, casal que se ama e que luta junto na busca por montar um pequeno negócio, aspiração que se torna a cada dia mais distante por serem os dois viciados em heroína. Já a dependência de Sara, mãe de Harry, é em “Tappy Tibbons Show”, um programa de televisão. Ao saber que terá a oportunidade de participar da atração in loco, Sara não abre mão de usar seu vestido predileto. O problema é que já faz algum tempo que ele não lhe serve mais. Ela resolve consultar um endocrinologista meio charlatão que lhe receita pílulas para emagrecer. A fim de tornar os resultados mais efetivos e rápidos, essa até então pacata dona-de-casa passa a usar o remédio sem nenhum controle, ficando viciada nele.

O jornalismo literário de Gay Talese, Tom Wolfe, John Hersey e Truman Capote — talentosíssimos, mas um pouco dândis além da conta — nunca mais foi o mesmo depois do escracho de Hunter S. Thompson, o inventor de um modo muito peculiar de redigir reportagens se imiscuindo nelas, o jornalismo gonzo. “Medo e Delírio” transpõe para a tela grande as desventuras de Raoul Duke, nome-fantasia de Thompson, enviado para cobrir um off-road de motos, ao lado do advogado, Oscar Acosta. Chapados, chegam a Las Vegas a bordo de um conversível envenenado, rock ‘n’ roll no último volume, com a certeza — a certeza que somente se pode conseguir com o uso de entorpecentes em escala industrial, frise-se — de que o sonho americano é um mero deboche e só se sai minimamente íntegro dessa farsa com a ajuda de aditivos químicos da pesada.

William Blake é injustamente acusado da morte de uma mulher com quem se envolveu e do ex-marido dela. Ele foge e, durante a perseguição, é baleado. Enquanto faz uma parada rápida a fim de tomar fôlego e seguir tentando escapar, conhece o índio Ninguém, que o confunde com o poeta inglês seu homônimo. Juntos, os dois começam uma jornada pelo oeste dos Estados Unidos numa história em que não se sabe onde acaba a realidade e começa a lenda. Conforme foram perdendo a preferência do espectador, os filmes de faroeste adquiriram configurações inusitadas, como prova esse western filosófico de Jim Jarmusch com sua leitura completamente nova para o Velho Oeste.

Em “Vá e Veja”, coprodução entre Alemanha e a então Bielorrússia (hoje Belarus), acompanhamos a história de Florya, um garoto de treze anos que em 1943 decide se juntar à guerrilha dos países soviéticos contra a ofensiva nazista. Florya tinha plena convicção do que estava fazendo, mas pouco tempo depois, se percebe afastado dos ideais dos companheiros. À medida que testemunha os horrores do campo de batalha, tanto de um lado como do outro, verifica que ele mesmo passou a trilhar um caminho de violência, em que a dor e o medo dão o tom. O diretor Elem Klimov tirou do bíblico “Apocalipse” o contexto de “Vá e Veja”, frase dita por Deus ao apóstolo João no “Livro das Revelações”. Este “Vá e Veja” é também uma alegoria do fim dos tempos, só não se sabe se menos trágica, ou mais.

A trama de “A Montanha Sagrada” se inicia com o que parece se tratar do chefe de uma seita, o próprio diretor vestido de preto, tirando a roupa de duas seguidoras e raspando o cabelo delas. Pano rápido para uma sequência em que um homem assemelhado à figura de Jesus como o conhecemos no Ocidente está estirado no chão com moscas a voejar sobre seu rosto. Ele é carregado por crianças, que o pregam na cruz. Depois de apedrejado, esse Cristo desperta e ruma para a cidade, ao lado de um anão. Sucedem várias situações inverossímeis e abjetas, como soldados chacinando pessoas e fazendo sexo com prostitutas. Nessa metáfora acerca do caos sempiterno do mundo, Jodorowsky — judeu cujo avô polonês, fugindo dos delírios genocidas de Hitler, radicou-se no Chile ao fim de uma travessia épica pelos Andes — insinua caminhos, teorias e filosofia para que o espectador faça a sua própria leitura, tendo por fundamento suas crenças.

“Zabriskie Point” foi a incursão de Michelangelo Antonioni pela América, onde se deixou imiscuir no contexto cultural vigente nos Estados Unidos da época, marcados, entre outras coisas, pela tensão entre os que defendiam e aqueles que contestavam um estilo de vida cada vez mais consumista e esvaziado de sentido. A atmosfera social é repressora e, por isso mesmo, dotada de um forte caráter de resistência. O filme começa num campus universitário onde, depois de um protesto, um estudante, acusado de matar um policial, foge. No caminho, ele dá carona a uma hippie. Juntos partem para o Vale da Morte, na Califórnia, onde fica o marco Zabriskie Point. A suposta vontade de se integrar à natureza é confrontada com o isolamento e o escapismo.

Clássico dos filmes cult, “Easy Rider” descreve a história de Billy e Wyatt cruzando os Estados Unidos de Los Angeles para Nova Orleans a bordo de suas motos. A dupla para numa comunidade hippie e acaba presa. Na cadeia, eles conhecem o jovem advogado George Hanson, um alcoólatra de boa família, mas de personalidade bastante truculenta. Os motoqueiros são malvistos por causa da indumentária extravagante e dos cabelos longos e terminam sofrendo a ira de reacionários por ousarem pensar e agir a contragosto do que a sociedade tinha por correto. O filme tem um final previsível, mas muito adequado, que retrata o peso da coerção coletiva quanto a cada indivíduo viver como quer.

Um dos grandes representantes do surrealismo no cinema, “Um Cão Andaluz”, escrito e dirigido pelo diretor espanhol Luis Buñuel — que recebeu a colaboração de ninguém menos que o pintor Salvador Dalí —, é basicamente um arrazoado de diversas cenas perturbadoras, a representação fílmica de um pesadelo. Com uma estrutura narrativa fragmentada por completo, a obra gerou rebuliço e fomentou o pertinente debate sobre a estrada que o cinema deveria trilhar. Toda pontuada por passagens carregadas de simbolismo, com analogias a desejos sexuais sufocados a fim de se manter o respeito às instituições religiosas e à moral conservadora, como na sequência em que um dos personagens não consegue possuir a mulher que o excita por estar literalmente amarrado, metáfora que alude a elementos do cristianismo e evidencia a ascendência da burguesia sobre a vida íntima de todos, ricos ou pobres, sem discriminar ninguém — mas sem dar a menor importância às demandas dos cidadãos de estratos sociais inferiores, na crueza de sua índole hipócrita.