Às vezes, parece que viemos ao mundo apenas para servir de mero brinquedo do tempo. O inefável balanço das horas, dias, meses, anos faz com que nos sintamos ludibriados pela vida e pensemos, até em voz alta, que poderíamos fazer um acordo com o tempo: daríamos a ele alguns momentos de descanso, a fim de que também pudéssemos desfrutar um pouco mais o que vivemos. Entretanto, o tempo insiste em transcorrer por nós, como se nem existíssemos, sem nunca se exaurir, e só resta ao homem seguir até onde o tempo deixar. O cinema dá uma quebrada nesse fluxo e, atrevido, diz ao tempo que quem manda é ele, promovendo verdadeiras revoluções. A sétima arte desafia o tempo; para ela, não existe essa história de “o tempo que se perdeu, perdido está”: há sempre um jeito de se fazer com que o tempo volte, avance, volte outra vez… São muitos os filmes que invertem os padrões do tempo e põem a ordem cronológica pra escanteio. A Bula entrou na brincadeira e menciona dez filmes que se valem do conceito do tempo elástico. Destacam-se “O Doce Amanhã” (1997), do diretor egípcio-canadense Atom Egoyan, cujo enredo decerto vai deixar você em prantos, e “(500) Dias com Ela” (2004), de Mark Webb, sobre as perdas a que o tempo nos sujeita a todos, leve sem deixar de ser um convite à reflexão. Os títulos da lista aparecem de acordo com a data de lançamento, do mais recente para o mais antigo e não observam critérios de avaliação. Se não é o tempo que passa, mas sim as circunstâncias que mudam, vamos nos permitir subverter a sua lógica. Tempo, tempo, tempo…
Clément é um ator fracassado, a quem só restou atuações esporádicas como figurante. Completamente só no mundo, ele se agarra à paixão súbita por Mona, ex-presidiária em regime semiaberto que trabalha em uma lanchonete na estação de trem. Mona não quer nada com ele, e a única alternativa que esse tresloucado romântico encontra a fim de ganhar o coração da moça é pedir ajuda ao frentista Abel, seu melhor amigo, que não morre de amores por ela — até conhecê-la melhor, e também se apaixonar por Mona. Nessa adorável comédia romântica, subverte-se o tempo e o clichê da personagem feminina caindo de quatro por um cara. Aqui, não cabe o estereótipo o seu tanto machista do homem incólume a todas as falsetas que a alma nos prega quando o amor nos prende. No caso, não é apenas um, mas dois marmanjos seduzidos pelos encantos de uma mesma mulher, o que pode botar à prova o amor de irmãos que há entre os dois.
Tom se interessa por Summer, se determina a namorar a garota, mas ela não quer nada sério. Depois de algumas investidas, eles engatam um affair, que acaba cerca de ano e meio depois. Os papéis parecem ter sido trocados neste filme, mas só parecem, afinal não há nada de mais em homens serem também casadoiros e mulheres, além de românticas, dadas a caçar. O enredo imprime novo ponto de vista acerca do romantismo: homens e mulheres estão liberados para inverter o modo como vinham se comportando nos últimos dois milênios. A conclusão óbvia é que as coisas não mudaram tanto assim. Comédia romântica com pitadas sutis de drama, “(500) Dias com Ela” fala de desencontro amoroso, frustração, capacidade de superar os dramas pessoais nossos de cada dia, grandes ou pequenos, e entender que o tempo pode ser um aliado indispensável quando o assunto é seguir em frente e apreciar só as boas lembranças.
Na Londres do século 19, Robert Angier e Alfred Borden seguem suas carreiras de prestidigitadores, iniciadas muitos anos atrás. Desde que se conhecem, eles vivem uma relação dicotômica: são amigos, mas, claro, nunca deixaram de nutrir uma grande rivalidade um pelo outro, o que acaba por esgarçar completamente o laço que construíram. Quando Alfred, muito mais dedicado, desenvolve um truque inimaginável, Robert tenta a todo custo desvendar a mecânica por trás da proeza. “O Grande Truque” contém todas as fórmulas para enfeitiçar o espectador mais cético: atuações soberbas e um roteiro que não deixa nenhuma ponta solta, apresentando reviravoltas muito bem sacadas — sem falar do talento impressionante de Christopher Nolan, que graças a obras-primas como essa consolidou-se como um dos maiores de Hollywood.
Desencantada com o fracasso de seu relacionamento, Clementine decide esquecer Joel. Para tanto, se submete a um experimento que varre de sua memória os momentos vividos com ele. Joel, ao saber da história, fica muito magoado e frustrado, afinal ainda a ama, mas decide dar o troco e também participa dos testes. Lá pelas tantas ele se arrepende, constata que definitivamente não pretende apagar Clementine da lembrança e exige que a operação seja interrompida. Tirando da cartola alguns clichês da comédia romântica e os misturando a mancheias de ficção científica, Michel Gondry dá corpo a um filme delicado, original e lúdico, que se utiliza de todos esses predicados para suscitar no público a reflexão sobre a fluidez das relações, instabilidade que se verifica em larga proporção na própria natureza humana.
Uma tormenta obriga um grupo a buscar abrigo em um motel sinistro, cujo gerente apresenta atitudes um tanto suspeitas. Entre os novos hóspedes, um motorista de limusine, uma estrela da TV dos anos 1980, um policial incumbido da escolta de um assassino, um casal que acabou de contrair núpcias e uma família desestruturada. Eles se sentem afortunados por encontrar refúgio em meio a uma situação tão desfavorável, mas o alívio logo cede lugar ao pânico quando percebem que estão sendo todos mortos devido a um mistério que os associa entre si. “Identidade” é tenso, pontuado por sustos. O enredo prima pelo inusitado, e alguns chavões metalinguísticos propositais, como Rebecca de Mornay revivendo os tempos áureos da psicopata Claire Bartel de “A Mão que Balança o Berço”, aplacam as saudades dos cinéfilos oldschool.
O filme narra a história de uma vingança, torcendo a ordem fática a seu bel-prazer. A primeira sequência se volta para os amigos Marcus e Pierre, atônitos e sem rumo pelas vielas de Paris, em busca do responsável pelo estupro e espancamento de Alex, namorada de Marcus e ex de Pierre. A seguir, a trama retrocede, a fim de revelar de que maneira a dupla descobriu a identidade do facínora, recuando à própria cena do crime e promovendo um flashback ainda mais detalhado para escrutinar os acontecimentos anteriores. A agressão a Alex é perturbadoramente registrada ao longo de dez angustiantes minutos, sem cortes, sendo que Gaspar Noé, de maneira genial, parece ter esquecido a câmera no chão para emprestar todo o senso de realidade ao que se passa. Um trabalho conjunto de diretor, montador e, claro, atores que denota à perfeição como é feito um filme que não se perde nas névoas do tempo.
Donnie tem a vida de um adolescente como outro qualquer, a não ser pelas visões que o acometem, em que quase sempre figura um coelho monstruoso que assume o papel de seu alterego e o estimula a romper seus poucos limites em brincadeiras que ultrajam quem tem o azar de conviver com ele. Ao dar vazão a mais um de seus devaneios tão reais, Donnie é atraído para fora de casa e o coelho lhe diz que o mundo vai acabar em um mês. Ele duvida do caráter apocalíptico do anúncio, mas em seguida um avião despenca sobre sua casa. Ele sobrevive, mas começa a se questionar sobre o que realmente terá querido dizer sua premonição e como deve passar a se comportar a partir do momento em que recebe uma nova chance.
Vítimas de um ataque brutal, uma mulher morre e seu marido, Leonard, fica com ferimentos graves. Ele consegue sobreviver, mas a violência dos golpes lhe provoca um distúrbio neurológico. Seu cérebro não registra mais fatos recentes e ele esquece por completo de coisas que acabaram de acontecer. Mesmo assim, ele desafia suas limitações e se prontifica a encontrar o assassino de sua mulher e, finalmente, vingá-la. O filme se bifurca em duas narrativas: uma em cores, que expõe os fatos de modo reverso, e outra em preto e branco, sob a forma cronológica comum, explorando a amnésia do protagonista para, no desfecho, ligar as duas e, esclarecer se Leonard matou o homem certo.
Kim Yong-ho está deitado à beira de um lago embaixo de uma ponte ferroviária. Um grupo de amigos, membros de uma espécie de confraria fundada ali 20 anos atrás, se reúne no lugar. Ele acaba se juntando aos demais e é reconhecido: era um dos integrantes da turma e aspirante a fotógrafo na época. Não se sabe por que, mas Kim não se identifica mais com aquelas pessoas, por mais que deseje. Antes de elaborar seu próximo pensamento, começa a ter devaneios em que não é capaz de distinguir o que é real do que acontece apenas em sua mente perturbada. Conforme o surto se desencadeia, “Peppermint Candy” deixa claro que o protagonista tem muito mais a dizer do que o “Quero voltar atrás!” na ferrovia, uma metáfora plena de lirismo que se corporifica num personagem complexo, cuja loucura iminente é experimentada pelo público graças à falta de linearidade cronológica da narrativa.
Numa cidade no interior do Canadá, 20 crianças morrem depois de um acidente com o ônibus em que estavam. O advogado Mitchell Stephens começa a fazer visitas às famílias enlutadas, a fim de tentar persuadi-las a pedir uma indenização, ainda que não se tenha conseguido provar a culpa de quem quer que seja. Mitchell é um sujeito atormentado, perdido num turbilhão de tristeza e ressentimento por causa da filha, viciada em drogas. Todos estão apáticos devido à comoção gerada pela tragédia, mas Nicole, uma das passageiras que sobreviveu, talvez possa dar o testemunho capaz de garantir um fechamento definitivo para o caso, mais escabroso do que aparenta.