Chico Buarque, o crepúsculo do Zeus Brasileiro

Chico Buarque, o crepúsculo do Zeus Brasileiro

Calma, calma, amiguinho leitor. Calma, calma, verificador de conteúdo de redes sociais. Calma, calminha, fãs do Chico. Isto não é um discurso de ódio (nem um cachimbo). O texto é até favorável ao bom e velho Chico Buarque, que completou 77 anos no dia 19 de junho de 2021. Gosto do Chico. E não é de agora, mas desde a infância, quando o ouvi cantando com Didi, Dedé, Mussum e Zacarias na divertidíssima trilha sonora do filme “Os Saltimbancos Trapalhões” (que é muito melhor que a chatinha peça “Os Saltimbancos”). Tenho dezenas de CDs, DVDs, biografias, peças e até seus romances de gosto duvidoso. Inclusive paguei uma boa grana para ir a um de seus shows (onde ele quase não se mexe e parece estar no palco contrariado). Na verdade, estou preocupado com ele. Com a sua história.

No começo da carreira, Chico Buarque foi o namoradinho do Brasil. Era o rapaz bonito, tímido, talentoso e bem-educado que encantava todas as meninas. Também os papais e mamães das meninas. Por falar em papais, para completar o partidão, seu pedigree era impecável: filho do célebre historiador Sérgio Buarque de Holanda, um dos inventores do Brasil como o conhecemos. Com os desdobramentos do Golpe Militar de 1964, Chico se tornou o símbolo máximo da resistência da classe artística ao regime autoritário. Os pais reacionários pararam de gostar dele, mas as meninas continuaram adorando. Até hoje.

Atribui-se a Vinicius de Morais, outras vezes a Millôr Fernandes e ainda outras a Nelson Rodrigues, a autoria da frase que caracterizou sua persona pública até recentemente: “Chico Buarque é a única unanimidade nacional”. Na versão do Poetinha se costuma acrescentar “e ele também tem olhos verdes”. Na verdade, são olhos ardósia. Sendo verdes, azuis ou ardósia, o fato é que, aí sim com certeza, Nelson Rodrigues avisava que “toda unanimidade é burra”.

Mas toda nudez será castigada, assim como toda burrice, e o rei está nu. Ultimamente Chico Buarque tem sido alvo de uma verdadeira legião de zumbis raivosos acusando-o de toda sorte de coisas. Praticamente acabou a idolatria sem reservas do “Zeus brasileiro”, conforme o designou o jornalista americano Michael Kepp, no artigo “Deus realmente existe ou ele é só o Chico Buarque?”, publicado em setembro de 2004. Kepp admite sua admiração pelo artista Chico Buarque, mas pondera que “a aura que envolve esse ídolo o tornou tão intocável que criticá-lo seria um crime, assim como recusar a ele o direito a um calcanhar de Aquiles seria uma injustiça”. Pois bem, passados dezessete anos o tal calcanhar de Aquiles tornou-se evidente; tem nome, sobrenome e apelido agregado ao nome: Luiz Inácio Lula da Silva.

A mudança começou de modo sutil. Comentários soltos aqui e ali. Diria que o primeiro sinal mais sério da maré antiChico foi a petição on-line “Chico, devolve o Jabuti”. Para quem não se lembra do episódio, o livro chicano “Leite Derramado” ficou em segundo lugar na categoria romance do Prêmio Jabuti de 2010, mas ainda assim foi considerado o Livro do Ano. Muita gente julgou que não foi uma premiação artística, mas política (o mesmo com o Prêmio Camões de 2019). Chico ter subido ao palco para receber a láurea com a plateia gritando “Dil-ma! Dil-ma! Dil-ma!” não ajudou. Chico não devolveu o Jabuti e o povo ficou xingando-o no Twitter.

Xingaram tanto que em 2011 Chico Buarque estrelou um vídeo muito divertido em que comentava, entre gargalhadas, que só descobriu que era odiado ao ler comentários sobre ele na internet, onde algumas pessoas o chamavam de bêbado e velho. Notem que na lista de “acusações” não consta nada sobre Lula, PT, petismo ou petralha. O que parecia brincadeira virou baixaria em 2015, no infame vídeo que flagra Chico batendo boca com um grupo de indivíduos na saída de um restaurante no Rio de Janeiro. O tema principal não é mais a idade ou os antigos hábitos etílicos do artista, mas Lula, PT, petismo e petralha. Em três anos, suas simpatias políticas, que antes nem eram citadas, tornaram-se motivo de acusação. A troca de insultos em si é lamentável, mas há um detalhe que merece atenção. Em determinado momento, um dos indivíduos fala consternado que “eu era seu fã, Chico, todo mundo era seu fã”. Parece bobagem, e talvez seja, mas inegavelmente é uma pista: a insistência do apoio incondicional de Chico Buarque ao ex-presidente Lula decepcionou muitos de seus fãs.

Não se discute que Chico tem o direito de apoiar quem quiser, participar de quais passeatas “fora fulano ou fora ciclano” que quiser. Estamos em um país livre, embora o próprio Chico coloque em dúvida nossas instituições. Certamente os admiradores que ficaram podem justificar que “esses reaças não merecem Chico. Chico fica melhor sem eles”. Sim, mas seria uma resposta pobre. A questão é muito mais complexa.

Chico Buarque, sendo um “deus”, reconhece em Lula um “deus” maior? É certo que a ligação entre os dois é antiga. Chico cantou para Lula no segundo melhor jingle de campanha política de todos os tempos, o famigerado “Lula-lá” (o melhor é “Ey-Ey-Eymael, um democrata cristão!”). Será por isto? Freud explica? Uma comissão póstuma de notáveis formada por Freud, Jung e Lacan explica?

Não vou entrar na controvérsia se Lula é inocente ou culpado, se foi um preso político ou um político preso. Um juiz de primeira instância, um colegiado com três desembargadores e mais seis ministros do Supremo deram a resposta que, querendo ou não, é a oficial. Pelo menos até recentemente, quando o próprio Supremo mudou de ideia e resolveu que ele mesmo estava errado e apenas Lula sempre esteve certo. Sei que muitas pessoas se consideram juristas autodidatas geniais com argumentos infalíveis para destroçar seus veredictos, sem sequer precisar ler nenhuma das centenas de páginas do processo. Não é meu caso, não tenho tanta autoestima.

Também não considero correta a demonização que muitos fazem dos simpatizantes ou filiados ao PT. O termo petralha, cunhado pelo jornalista Reinaldo Azevedo em referência aos Irmãos Metralha da Disney, não pode ser universalizado. Os petistas não são todos iguais, embora alguns petistas sejam mais iguais do que os outros. O próprio Reinaldo Azevedo, misteriosamente, voltou atrás e, aparentemente, decidiu que estava errado e Lula, claro, sempre esteve certo.

Me parece que os partidários mais aguerridos do ex-presidente, caracterizados pela altíssima autoestima, podem ser divididos em três grandes grupos. Vou tentar descrevê-los de modo simpático e gracioso, com 0% de discurso de ódio.

O primeiro grupo seria a turma do “Cadê as Provas?”. São facilmente reconhecíveis fazendo número em passeatas, gritando palavras de ordem, assinando abaixo-assinados, bloqueando amigos e parentes no Facebook, saindo de grupos familiares do Zap-Zap e cancelando a Netflix. Acreditam que Lula realmente leu 21 livros em 57 dias de cárcere. Se está no site oficial do Partido, só pode ser verdade. Para eles, mesmo depois de Lula passar anos declarando não gostar de ler, ter se tornado um intelectual produtivo ajuda a ornar sua figura impoluta. Chamam a ex-presidente Dilma de “Dilmãe”, acham que seus discursos peculiares são “Dilmais” e não veem problema algum no fato da ex-presidente ter sustentado falsamente ser Doutora em Economia.

Os “Cadê as Provas?” são revoltados a favor. Via de regra, possuem mentalidade dualista. Para eles só existe sim ou não, bem ou mal, certo ou errado, aliado ou inimigo. Desconsideram qualquer sutileza ou tons de cinza. Acham que qualquer pessoa que ouse não defender o ex-presidente se torna automaticamente cúmplice da mídia golpista, nazista, fascista, genocida, racista, homofóbico, misógino, elitista e coisas do tipo, tudo junto e misturado. Acreditam que piadinhas como “Lula não vai comparecer por estar preso em outro compromisso” ou “Lula vai fazer um pronunciamento em cadeia nacional” devem ser punidas severamente.

Às vezes, por puro hobby, Chico Buarque finge fazer parte deste grupo de “homens cordiais”. Uma performance clássica estilo “Cadê as Provas?” está justamente no já citado vídeo da briga na saída do restaurante carioca. Chico Buarque estava claramente fingindo ser idiota ao usar o método quinta-série de debates. Um dos indivíduos grita: “O PT é corrupto”. Chico responde: “O PSDB é corrupto”. Esse nível rasteiro de argumentação equivale a “Você é bobo!” contra “Você é feio!”. Mais um pouco e Chico lamberia o dedo e ameaçaria passar no rosto do adversário. Convenhamos, o compositor de “Construção” jamais faria algo tão primário, se não estivesse fingindo, trollando todo mundo.

O segundo grupo é formado por militantes mais intelectualizados, conhecido como “Criminalizando a Política”. Não negam a Lei da Gravidade nem os fatos evidentes expostos nos calhamaços do processo, mas criticam o que costumam chamar de “direcionamento político do julgamento”. O X da questão não está nas provas, mas nos juízes. Para eles, as mesmas provas com outros juízes e o resultado seria diferente. Sugerem que houve uma conspiração da elite nacional, internacional, intergaláctica e interdimensional para prender Lula e o impedir de disputar as eleições de 2018. Parece ser um discurso perfeito em sua circularidade. Se alguém nega a conspiração ou é porque faz parte dela ou a apoia. Se alguém questiona a propalada parcialidade da justiça lembrando que políticos de diversos partidos foram presos, essa pessoa é delicadamente avisada de que esse detalhe é apenas jogo de cena, cortina de fumaça, para esconder o verdadeiro alvo.

Chico Buarque, que completou 77 anos no dia 19 de junho de 2021 l Fotos: A.PAES / Shutterstock

Pessoalmente, me parece evidente que se Lula chegou a ser preso (e ficou mais de dois minutos em uma cela) é justamente porque tal conspiração não existe. O famigerado “estancar a sangria” envolvia todo tipo de sangue, sangue tipo A, tipo B, tipo O, tipo MDB, tipo PSDB, tipo PP, tipo PT e por aí vai.

A militância tipo “Criminalizando a Política” costuma falar bem e baixo. Posta no Facebook libelos fofinhos sobre tolerância e memes comparando Lula com Mandela, Luther King e Gandhi, sutilmente evitando aqueles que o comparam com Jesus (heresia mais ao estilo dos “Cadê as Provas?”). Muitos são professores e sabem que um brasileiro letrado lê em média entre dez e quarenta livros por ano e não levam muito a sério a repentina fome de letras do ex-presidente. Mas preferem não tocar no assunto. Lula ter se tornado ou não um intelectual é irrelevante, o admiram por outros motivos. Também não falam sobre o falso doutorado de Dilma. Preferem evitar esses temas delicados. O que não significa que perdoariam a mesma postura em colegas de escola, departamento ou ministros de outros governos. Enfim…

Acreditam, talvez inconscientemente, que a “pessoa jurídica Lula” é maior do que qualquer coisa que eventualmente a “pessoa física Lula” tenha feito. Portanto, em função de seu simbolismo e serviços prestados, merece ser “perdoado”. Afinal, o que são alguns bilhõezinhos desviados perto de tudo o que foi feito? Essa perspectiva não surpreende. Basicamente seguem o mestre. Afinal, o próprio Lula declarou que Sarney “não é uma pessoa comum”, e que não poderia ser julgado pela lei que deveria valer para todos. Se Lula não acha Sarney “uma pessoa comum”, só podemos chegar ao resultado do que ele pensa de si mesmo usando uma calculadora quântica. Espiritualmente, Chico pertence a este grupo. Mas seu sangue é azul demais para que possa circular entre eles. São seus fãs, não seus amigos.

O terceiro grupo é conhecido como “Bem que o Palocci falou”, e é composto pelo alto clero do Partido. Lamentam não terem sido mais profissionais. Chico Buarque tira fotos abraçado com os “tipos ideais” deste grupo, joga futebol com eles, aparece em seus vídeos promocionais, eventualmente os acompanha em sessões de interrogatório no Congresso e em outras atitudes simpáticas. Mas não participa das reuniões de portas fechadas. Isso ocorre porque, sendo artista, e, portanto, sendo sensível, possui o mesmo nível de acesso a informações estratégicas que Eduardo Suplicy.

Mas Chico está longe de ser ingênuo. É um homem pragmático. Lembro-me de que se mostrou simpático à candidatura de FHC nas eleições majoritárias de 1994. A justificativa era óbvia: o Plano Real estava dando alguma solidez para a economia do Brasil, portanto fazia sentido ser continuado por seu coordenador, o ex-ministro da Economia de Itamar Franco, doutor Fernando Henrique Cardoso. Justo, muito justo. Contudo, sempre que comento sobre isto me olham com desconfiança, como se eu descrevesse uma alucinação ou um pesadelo. Acham impossível que Chico tenha em algum momento reconhecido qualquer mérito no “monstro neoliberal”, que tenha feito essa traição à esquerda. Nem tanto, uma vez que FHC, apesar de tudo, sempre foi um homem de esquerda, como comprova a suspeita fumaça que o rodeia desde que deixou a presidência. O próprio mote da campanha de Lula nesta eleição foi “eu vou cuidar do Plano Real”. Em todo caso, infelizmente, não tenho como provar, uma vez que já procurei o vídeo que assisti em 1994 em todos os cantos da internet, mas sem sucesso. Como se sabe, para o senso comum, se não está no Google, não existe. Eu mesmo começo a duvidar de mim.

Chico Buarque sabe separar as coisas. Por exemplo: no show da turnê Caravanas que assisti, embora a plateia gritasse o tempo todo “Lula Livre”, querendo transformar o espetáculo em um showmício, o cantor manteve-se discreto. Não incentivou, tampouco reprimiu ou desdenhou as manifestações. Elegantemente, fez um silêncio cúmplice. Gritaram por ele. Segundo fui informado, esta foi sua postura durante toda a turnê.

Por episódios assim considero bobagem dizer que ele se vendeu pelo dinheiro da Lei Rouanet. Não precisa disto. Se Chico resolvesse vender tufos de cabelo e pedaços de unha, essas relíquias renderiam fortunas em leilões on-line. Da mesma forma, é extremamente redutora a acusação feita por intelectuais conservadores como Olavo de Carvalho e Rodrigo Constantino de que Chico é apenas um sambista que ganhou de presente do pai um dicionário de rimas. Pura chicana. Apesar de tropeços como o romance “Estorvo”, a novela “Fazenda Modelo” e algumas outras pedras no caminho, a obra completa de Chico Buarque é muito sólida e dispensa defesa. No mínimo, Chico é o melhor cantor que não sabe cantar do Brasil. Ninguém desafina com o mesmo charme e carisma que ele. É nosso Bob Dylan.

O que falta a Chico não é o fator Dylan, mas o fator Caetano Veloso. Michael Kepp comentou em seu artigo que “ao colocar Chico em um pedestal tão alto, os brasileiros diminuem a si mesmos. A recusa de Chico a se ‘caetanear’, a ser um pavão da mídia, só intensifica essa idolatria”. Concordo discordando ou discordo concordando. O fato é que o tempo passou e a idolatria murchou. Talvez, e reforço o talvez, Chico devesse “caetanear” em suas posições políticas. Caetano Veloso se considera tão superior que jamais se rebaixaria à condição de coadjuvante de luxo de qualquer político. Essa saudável petulância faz com que Caetano se recuse a seguir qualquer cartilha ideológica. Um dia Caetano coloca uma máscara de Black Bloc, outro dia diz que Olavo de Carvalho tem razão; um dia afirma que se sente um liberal inglês, outro dia grita “Lula Livre” em um show (foi vaiado, mas vaia para tropicalista pode ser aplauso). Quem estabeleceu que artistas precisam ser coerentes? Quem disse que artistas precisam ser gurus cívicos? Só o Faustão defende que artistas precisam ser “certinhos”, tanto na vida profissional quando na vida particular.

Chico Buarque não precisa “comprar” pacotes inteiros. Pode apoiar a revolução cubana sem precisar defender ou fingir que desconhece os fuzilamentos ou prisões políticas. José Saramago fez isto, bastante tarde, mas fez. Por que Chico precisa necessariamente defender uma inocência indefensável? Em nome do passado, de uma Era de Ouro da militância? Não, não precisa, mas deve reconhecer que a banda da história passou, que o muro caiu, que metade dos Castro se foi, que Maduro conversa com passarinhos achando que são Hugo Chávez. Não seria mais crível, e intelectualmente mais sofisticado, colocar ideias acima de pessoas? Não seria mais produtivo usar seu prestígio para ajudar a esquerda a fazer autocrítica e a se reinventar ao invés de cultivar a questionável prática de culto à personalidade? Por que se sujeitar ao papel de guarda-costas de óculos escuros? Por que ser um intelectual orgânico, ou cantor compositor romancista dramaturgo orgânico? Por quê? Por quê?

Talvez a resposta esteja no começo de tudo. Na trilha sonora do filme “Os Saltimbancos Trapalhões”. Numa das músicas, intitulada “Meu Caro Barão”, Chico escreveu os versos: “Onde quer que esteja / Meu caro Barão / São Brás o proteja / O santo dos ladrão (…) / Dizem que o Barão / Que o Barão, meu caro / Tinha a faca e o pão / O queijo e os pássaros / voando e na mão / Pois eu tenho ouvido / Que o pobretão / Tá magro, pálido / Sem ocupação”. Talvez seja isto. Uma questão de devoção. Nelson Rodrigues, de novo ele, não sem alguma ironia, afirmou que “o gênio está sempre certo, mesmo quando bate carteiras na Central do Brasil”. Leia novamente que a frase é escorregadia quando aplicada ao caso concreto: Chico é o gênio ou o sujeito oculto que acredita no gênio mesmo quando ele está batendo carteiras na Central do Brasil?

Tantas perguntas, meu bom Francisco dos olhos ardósia! Freud, Jung e Lacan explicam? Didi Mocó explica? Caetano explica. Ou não. Quem não tiver dúvidas que atire a primeira pedra na Geni.

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.