Ao longo de mais de um século, o cinema vem proporcionando ao homem um modo novo de dar asas ao devaneio quando aliou imagem e som enquanto narra uma história. Desde o pioneiro “Viagem à Lua” (1902), de Georges Méliès, a sétima arte vem intrigando a sociedade, antes pela novidade do dispositivo; hoje, por expor ideias cada vez mais inusitadas, tanto na forma como se apresenta determinado enredo quanto no teor da trama propriamente. Os filmes são responsáveis pelos momentos mais líricos da história da arte recente da humanidade, com cenas que abusam dos efeitos especiais ou, ao contrário, removem por completo o verniz da sofisticação estilística e deixam a natureza humana falar do jeito que sabe. A Bula apresenta dez filmes que trazem os registros mais singulares do cinema, seja pela história, seja pelo que passaram a representar no vasto conceito de cultura — cultura pop, artes, espetáculos — no mundo contemporâneo, dessa vez com uma novidade. Trata-se do Netmovies, uma plataforma especializada em filmes dos mais diversos gêneros, todos de graça. Foi de lá que saiu nossa seleção de hoje, com baluartes a exemplo do centenário “O Garoto” (1921), de Charlie Chaplin, e do soberbo “A Felicidade Não se Compra” (1946), de Frank Capra. Eles foram listados de acordo com a data de lançamento, do mais recente para o mais antigo, e não observam critérios classificatórios. Fique com o melhor do cinema e dê uma conferida no Netmovies. Vale muito a pena.

Nick Longhetti trabalha como estivador num estaleiro e está sempre exausto. Mabel, sua mulher, começa a sentir os efeitos de uma depressão, tentando preservar algum equilíbrio emocional. Quando os filhos passam a ser afetados pela doença de Mabel, só resta a Nick interná-la. Vieram à baila muitas discussões sobre o filme à luz das ciências sociais e da antropologia: a história foi tachada de misógina, machista, ou tomada sob o ângulo muito mais benevolente do macho-alfa que fareja algo de podre na toca e toma a frente, mesmo sem saber se vai dar conta do recado, ou, ao contrário, do quão perdido fica o homem sem a mulher a lhe oferecer o necessário respaldo — doméstico, ao menos. “Uma Mulher sob Influência” é um clássico do cinema justamente por conseguir registrar com precisão nuclear as mudanças a que as sociedades do mundo todo começavam a se submeter, tendo as mulheres à proa.

Federico Fellini volta à Rimini de sua infância, cuidadosamente reconstituída nos estúdios da Cinecittà, na pele de Titta, um menino cheio de imaginação que vive cascavilhando o cotidiano buliçoso da vizinhança. Eram tempos duros, do fascismo mais desabrido, perseguições políticas que não raro redundavam em restrição de liberdade, tortura e morte, mas mesmo assim Titta-Fellini encontra um meio de enxergar graça em viver. Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, “Amarcord” ainda é o trabalho mais lírico de Fellini por combinar à perfeição a fotografia de Giuseppe Rottuno, figurinos e cenários extravagantes de Danilo Donati e a trilha sonora nostálgica de Nino Rota.

O argumento do filme do diretor italiano Sergio Leone não poderia ser mais banal: três malandros procuram uma fortuna desaparecida em meio a um mar de areia e pedras. Em sendo assim, por que “Três Homens em Conflito” transcendeu o faroeste e, com todo o mérito, se mantém incólume no olimpo do cinema? Cinquenta e cinco anos depois, a fita permanece figurando nos inúmeros rankings de melhores produções ao longo dos anos, muito em função do modo nada convencional de conduzir a narrativa, como na sequência de abertura em que o Bom, o Mau e o Feio se encaram por cerca de três minutos. Graças a saudáveis insânias como essa, o legado de Sergio Leone se espraiou para muito além do western spaghetti, uma expressão que denota algo de pejorativo, talvez por contar com orçamentos mixurucas em comparação aos dos outros projetos —além, claro, de fazer referência à nacionalidade de Leone. Eram equipes reduzidas, lideradas por diretores europeus que tiravam leite de pedra — talvez traumatizados pela miséria que os massacrara ao longo da Segunda Guerra Mundial —, mas com o ímpeto de espanar de vez o mofo do estabelecido e, verdadeiramente, criar.

Uma atriz francesa casada vai à cidade de Hiroshima trabalhar num filme sobre a paz. Ela se envolve com um arquiteto japonês, também casado, enquanto a esposa dele está viajando. Nos dois dias em que vivem esse tórrido e inesperado affair, lembranças veem à tona. Ela conta, por exemplo, que foi presa e teve os cabelos tosados ao se apaixonar durante a Segunda Guerra Mundial por um alemão, aos 18 anos, e que só conseguiu a liberdade no dia em que seu amor foi morto, já no desfecho dos conflitos. Por ter dado vazão a esse sentimento, sua família a renegara e, passados 14 anos, ela volta a ter de enfrentar a tristeza de amar o homem errado.

Uma trupe de atores apresenta esquetes com forte teor de crítica social ao redor da Suécia, fugindo da polícia. Por terem recebido a pecha de “insubordinados” e o espetáculo classificado de “perturbador e de mau gosto”, se tornaram párias em sua Noruega natal. A história, como quase tudo em Bergman, mais parece um apanhado de diferentes contos protagonizados por seres mitológicos costurados num único volume. Há o mago, o doutor Vogler, que comercia suas ilusões a módicos preços — o próprio Bergman, de acordo com alguns estudiosos de sua obra; a fada de Ingrid Thulin, que agita a varinha e bota ordem no castelo; Tubal, uma espécie de pégasus, cavalo que voa, mas também dá coice, o empresário que levanta e abaixa a onda ególatra da turma; Vovó Vogler, a bruxa, que corporifica o deboche de tudo e a natureza caótica do elenco; e Simson, o bobo-da-corte dado a esperto. Um jogo metalinguístico muito bem destrinchado.

Um homem atormentado por um desafeto decide dar cabo da própria vida se jogando de uma ponte em plena noite de Natal. A fim de evitar a tragédia, um postulante a anjo, que espera há 200 anos seu par de asas, é destacado para a missão de demovê-lo dessa infausta ideia e ajudá-lo a entender a dinâmica do mundo, que alegria e desventura se sucedem como parte de um ciclo divino, intentando atingir o propósito maior de incutir nele a premissa de que a vida é maravilhosa (nome original do filme, aliás). “A Felicidade Não Se Compra” é uma das produções mais queridas da história do cinema, fama que faz toda justiça a James Stewart, por sua vez um dos atores mais admirados de seu tempo. Esse namoradinho da América emplacava um sucesso atrás do outro —caso também do igualmente magistral “Na Estrada do Céu” —, sempre incorporando tipos o seu tanto gauche, mas amáveis na mesma proporção. “A Felicidade Não Se Compra” foi indicado a cinco Oscars, inclusive o de Melhor Filme, e foi eleito em 1998 o 11° numa lista dos 100 melhores já realizados, segundo o American Film Institute.

Uma mulher recém-casada ascende socialmente mediante o matrimônio, mas é subjugada pela lembrança que o marido ainda tem da falecida esposa, a Rebecca do título. A nova senhora Maxim de Winter faz de tudo para ajudar o marido a se livrar dessa obsessão, mas conforme esse malfadado casamento se vai constituindo, a ex-dama de companhia já não tem mais tanta certeza sobre se quer mesmo permanecer patinando sobre gelo fino até que a morte os separe. Por façanhas como unir entretenimento e reflexão, como se dá em “Rebecca”, Hitchcock foi sumariamente rotulado de misógino, à luz de argumentos tão apressados quanto infelizes que evocavam sua miopia quanto à emancipação que a mulher, já no princípio dos anos 1940, conquistava — à custa de muito arranca-rabo com os homens. Nada disso: “Rebecca” é uma homenagem que o mestre do suspense presta ao belo sexo, uma defesa até meio paternal da mulher frente ao homem, sempre venal e manipulador. E, justiça se lhe faça, a guerra dos sexos rende polêmica desde muito antes de “Rebecca” — e de Hitchcock.

Uma distopia social. Assim se poderia etiquetar “Metrópolis”, se a genialidade do veterano, pioneiro em dar a temas tão profundos a densidade que merecem, se prestasse a prisões ideológicas. Na cidade homônima onde transcorre a história, em 2026, os poderosos habitam a superfície, onde há, por exemplo, o Jardim dos Prazeres, lugar idílico cuja frequência só se admite a quem tiver boa condição financeira. Os operários são, na verdade, mulas de carga: trabalham o dia todo, ganham uma esmola qualquer e não têm direito a nada, sequer a reclamar. Eles vivem na Cidade dos Trabalhadores, no subsolo. O todo-poderoso do lugar é Joh Fredersen, um nababo que ignora de caso pensado as condições miseráveis do povo. A história, levada às telonas há tanto tempo que o cinema ainda era mudo, é uma crítica acerba à injustiça social, disseminada, neste caso, por causa da tecnologia, mas também um libelo a favor da humanidade, um manifesto em defesa de seus acertos e que clama por um olhar mais acurado sobre a ganância do homem.

Na Rússia czarista de 1905, um motim num navio de guerra desemboca em movimentos de vulto quanto à observância dos direitos dos marinheiros e, posteriormente, na Revolução Bolchevique de 1917, que primeiro dá visibilidade a Lênin, mas logo catapulta Stálin a uma ditadura autoritária e assassina. No encouraçado Potemkin, os marujos eram submetidos a humilhações frequentes: sofriam castigos físicos e eram obrigados a se alimentar com carne podre a fim de não morrer de fome. A insatisfação vai se pulverizando mais a cada dia, até que explode uma onda de violência, provocada pela execução de recrutas insubordinados. “Encouraçado Potemkin” fala de política, mas fala também de como as relações entre pessoas de estratos sociais diferentes podem degringolar por motivos que uns podem julgar impressionantemente banais, mas que para outros é a coisa mais próxima de dignidade a que conseguem ter acesso.

Uma mulher — sem casa, sem trabalho, sem dinheiro, sem brios — dá à luz um menino. Ao constatar que não será capaz de sustentá-lo, resolve largar o pequeno no banco de trás de uma limusine e prega no bebê um bilhete em que clama que não o desamparem. Ela sai dali em seguida, acreditando ter feito a melhor escolha possível quanto a resguardar a sobrevida do garotinho. Instantes depois, o carro é roubado; os ladrões, ao saberem da presença do indesejado passageiro, o abandonam numa ruela afastada. Ao acaso, um vagabundo da vizinhança faz a sua ronda habitual por ali e se depara com a criança. A princípio, esse vadio não se interessa pela sorte do desgraçadinho, mas termina por adotá-lo e se tomando de amores pelo novo e inesperado filho. A mãe volta, arrependida, à ruazinha na qual se livrou do rebento, mas percebe que o carro já não está mais lá. “O Garoto” continua um filme doloridamente belo, carregado do mais fino lirismo e que, mesmo passados 100 inacreditáveis anos, continua atual. Infelizmente.