Assim como existe uma grande diferença entre tristeza e depressão, solidão e estar só não são a mesma coisa, embora façam parte de um modelo de comportamento semelhante. Grosso modo, pode-se dizer que a solidão está para o estado depressivo assim como a individualidade está para a tristeza. Solidão e depressão se retroalimentam em grande medida: solitários são quase sempre deprimidos, ainda que não seja incomum se desenvolver um quadro de depressão em meio a um monte de gente. Solidão é a gente em excesso, e como todo excesso, é nociva — malgrado provoque o instinto sensível do artista e daí saiam trabalhos de primeira grandeza. A Bula pinçou dez filmes para a gente refletir sobre as novas formas como o mundo se apresenta para nós e em como a incapacidade de compreender as irrefreáveis mudanças da sociedade em que vivemos gera a condição patológica do isolamento. “Ela” (2013), do diretor Spike Jonze, que encabeça a lista, fala justamente sobre isso: um homem que, sem entender as complexidades do amor real, acaba se apaixonando por uma máquina. Por outro lado, há quem tome a solidão por um meio de se autoconhecer e, dessa forma, procurar quem esteja na mesma vibe, mas não faça questão de continuar só. É o caso da animação “Mary e Max — Uma Amizade Diferente” (2009), de Adam Elliot, boa pedida para desapegar da misantropia e da descrença de tudo. Os filmes estão postos do mais recente para o mais antigo e não seguem nenhum critério de classificação. Solidão? Que nada!

A solidão de Theodore, um escritor já nem tão jovem que mesmo tendo uma esposa não se sente amado, parece que vai ter fim quando ele resolve trocar o sistema operacional de seu computador. “Ela” apresenta um enredo dos mais descabidos da história do cinema, mas só à primeira vista. No decorrer da trama, resta visível o abismo entre Theodore e a mulher, alguns anos mais nova e excessivamente focada nos estudos. Seu chefe é igualmente casado e igualmente infeliz e a vizinha está pronta a também embarcar num romance puramente virtual. Felizmente, a trama não se funda no argumento fácil do amor nunca poder se realizar em sua plenitude; a genialidade do filme reside na sacada de retratar as mais impensáveis configurações do amor num dos mais belos e originais romances já apresentados pelo cinema.

Mary Daisy Dinkle, 8 anos, uma solitária menina australiana, e Max Jerry Horovitz, 44 anos, morador de Nova York, obeso e também solitário, começam a trocar cartas despretensiosamente, até porque a distância e a diferença de idade não dão margem a que possam querer muito mais que isso. Mary e Max, contudo, tornam-se grandes amigos, confidenciando um ao outro seus dramas mais íntimos num mundo que não tem a menor vontade de entendê-los. Embora se possa encarar com maus olhos o relacionamento entre uma criança e um homem maduro, a história, muito bem conduzida — mérito em grande parte da narração —, em nenhum momento resvala na vulgaridade. Além disso, a fotografia em tons pasteis pincelada de detalhes em vermelho realça a atmosfera de desajuste dos protagonistas.

No começo dos anos 1990, Christopher McCandless, 22 anos, recém-formado, bem de vida e com um excelente futuro à sua espera, larga tudo numa viagem rumo ao mais fundo de si mesmo tendo como cenário as mais diversas cidades dos Estados Unidos. Ao longo dessa jornada em busca de saber por que está no mundo, ele vai encontrando diferentes tipos de pessoas e tendo a percepção de que não poderia ter existido sem conhecê-las. Depois de dois anos de empregos temporários, moradias improvisadas e muitas caronas, Chris decide realizar o maior sonho de sua vida: ir para o Alasca. Nesse road movie em que o autoconhecimento é a grande viagem, Sean Penn se revela um autor dos melhores, apresentando um filme único em diversos aspectos e escalando uma carreira na direção com todo o cuidado e esmero.

Bob Harris, um ator decadente, está em Tóquio para fazer um comercial de uísque, usufruindo do pouco prestígio que lhe resta. Charlotte também está na capital japonesa com o marido, um fotógrafo workaholic que não tem tempo para ela e a deixa sozinha o dia todo. Ambos ainda não se adaptaram ao fuso horário, o que desencadeia neles uma insônia atroz. A fim de vencê-la, eles frequentam o bar do hotel em que estão hospedados durante a madrugada e acabam mantendo uma sólida amizade. Sem malabarismos de retórica, com atores de supino talento e uma história sensível e profunda, “Encontros e Desencontros”, é um dos melhores filmes dedicados a investigar quão perdida pode se tornar a alma humana num prazo tão curto e num lugar que, por mais acolhedor que pareça, é inóspito por não ser onde se deveria estar.

Nesta bela alegoria sobre a mudança constante a que estamos todos sujeitos desde sempre, “Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera” expõe os dramas da vida de dois monges, monótona apenas na aparência. Eles levam uma existência maciçamente firmada na contemplação, em que um lago rodeado por montanhas simboliza a placidez da vida que escolheram. Cada aspecto dessa vida nos é apresentado a fim de que pensemos que os dois são felizes por poderem desfrutar de um lugar que inspira o aperfeiçoamento da espiritualidade. O Monge Velho, cujos olhos já presenciaram quase tudo, sabe que o Monge Jovem está prestes a passar por uma experiência traumática: o despertar para o amor, que traz em seu bojo o veneno mortífero do ciúme e da obsessão. Assim como as estações se sucedendo umas às outras até o fim dos tempos, o homem seguirá seu destino de nunca se decidir entre o que tem e o que poderia ter, fonte de um sofrimento e de uma solidão de que jamais poderá escapar.

Chuck Noland, inspetor numa empresa que envia cargas e correspondências ao redor do mundo, viaja para mais um de seus compromissos de trabalho. O avião sofre uma pane e cai; Noland sobrevive ao desastre, mas fica isolado numa ilha perdida no meio do Oceano Pacífico por quatro anos, tentando desenvolver novas e necessárias habilidades, a fim de que algum dia volte à civilização e retome sua vida. A premissa de “Náufrago”, de Robert Zemeckis, soa muito inverossímil: ninguém é capaz de resistir por tanto tempo num lugar absolutamente hostil. Mas isso é cinema, e cinema dos bons. A primeira impressão que se pode ter do filme é que o enredo vai servir o filé logo na entrada e deixar o espectador à míngua, na monotonia invencível de um ator contracenando com uma bola de vôlei (!) numa praia. Todavia, “Náufrago” nadou contra a corrente, se tornou um épico do cinema de autor e ainda suscita clamor na plateia.

“Amores Expressos” divide-se em duas histórias que, de tão parecidas, acabam se complementando. Na primeira, um policial, conhecido pelo número da matrícula, 223, fica sem chão ao levar um fora da mulher que ama. Ele segura as pontas como pode, até que, afinal, entra em sua vida a musa que faltava, uma musa meio torta, é verdade, o que não é o bastante para fazer com que ele a esqueça e não se apaixone por ela de maneira irremediável. Na segunda trama, se desenrolam as agruras sentimentais de outro agente da lei, o 663, que igualmente se vê abandonado pela namorada e fica desolado. Até que surge a delicada Faye e o ciclo recomeça: ele se deixa levar pela paixão, sem saber que ela vai mexer com suas lembranças muito mais do que esse valentão gostaria.

Na Berlim do pós-Segunda Guerra, Bruno Ganz dá vida ao anjo Damiel, que perambula pela cidade bisbilhotando a vil existência dos simples mortais com seu colega Cassiel, de Otto Sander. Tudo vai bem, até que entra em cena a trapezista Marion, interpretada por Solveig Dommartin. Como ninguém, nem mesmo os anjos, pode ter tudo, Damiel terá de optar entre viver essa grande paixão ou continuar em sua missão celestial. “Asas do Desejo” rapidamente se tornou um dos filmes mais poéticos e intrigantes do cinema, com clara vocação cult. Até na participação do inesquecível Peter Falk, o eterno detetive Columbo, fazendo uma ponta como si mesmo ao aconselhar o anjo antes que ele tente se jogar sem rede rumo ao mais humanos dos sentimentos.

Um homem já fora muito feliz, mas passou a ser um degredado em sua própria vida. A única lembrança que tem de seu passado glorioso é uma película filmada em super oito, o que só o faz ter ainda mais saudade de tudo o que jamais voltará a ser. Travis Henderson — é este o nome dele —, mais um da galeria de tipos inesquecíveis de Harry Dean Stanton, está perdido nas próprias memórias e tudo o que fica sabendo a seu próprio respeito é que tem um irmão, para cuja casa é despachado após quatro anos sumido. A volta desse homem quase morto há de exorcizar alguns fantasmas e criar mais outros tantos. Uma obra-prima de Wim Wenders, um dos diretores que mais habilmente conseguem juntar drama e leveza no cinema.

O famoso psiquiatra Kris Kelvin inspeciona a estação espacial Solaris, a fim de dar o veredicto sobre a continuidade ou não das pesquisas acerca de um planeta misterioso. Kelvin leva um choque ao se deparar com o que acontece em Solaris: um dos integrantes da tripulação cometeu suicídio; os outros dois, Snaut e Sartorius, estão em franca degeneração mental. À medida que transcorre o tempo, o próprio Kelvin também desenvolve um comportamento totalmente estranho à sua personalidade e passa a experimentar um estado de transes intermitentes em que realidade e sonho se fundem. Em seus torturantes devaneios, quase sempre está Hari, sua mulher falecida há anos.