Vem pra rua! Mas vê se não esquece a lição de casa, tá?

Vem pra rua! Mas vê se não esquece a lição de casa, tá?

Há muito tempo, num país bem longe daqui, o povo um dia decidiu ir às ruas e fazer a revolução. Basta! Gritavam milhões de pessoas contra o governo corrupto, a roubalheira, os desmandos no poder, os maus políticos e outras mazelas. O mundo estava no início de uma nova era.

Depois de séculos de ignorância, medo e dominação, os pagadores de impostos finalmente se deram conta do óbvio: eram eles os maiores culpados da existência de maus políticos no poder. Sim, eles. Em carne, osso e ignorância, eram eles os responsáveis pela permanência dos vampiros nos cargos públicos. Passava da hora de mudar tudo isso. Era tempo de empreender uma poderosa mobilização popular!

Primeiro, dois ou três surgiram em mirrados grupos aqui e ali. Depois, aos poucos, vieram mais. Homens e mulheres, crianças e adultos, adolescentes e velhinhos. Duas mil hoje, três mil amanhã. Quinhentas mais na esquina de cá, outros seis, sete mil na de lá! E então explodiram as grandes manifestações. Um milhão. Dois. Três milhões e meio! Dez milhões de cidadãos marchando de mãos dadas, enchendo as ruas de consciência e civilidade sob o poderoso som do hino nacional.

Enrolados em bandeiras, apertaram o passo, estenderam a marcha e chegaram cada vez mais longe, cada vez mais numerosos. Era uma gente valente. Quando lá pelas tantas alguém gritava “VEM PRA RUA”, despencavam das janelas dos apartamentos montes de manifestantes maduros como gordos abacates, prontos para cumprir seu destino sagrado. Juntos, rolavam em frente, clamando suas reivindicações em slogans, faixas e cartazes.

“Fora, ladrões!”
“Abaixo a corrupção!”
“Reforma política já”
“Devolvam o dinheiro!”

Mas isso era só o começo. Aos poucos e a duras penas, as pessoas que lá viviam aprenderam que depois de sair às ruas e protestar era preciso voltar e fazer a lição de casa. Então, nas famílias, empresas, escolas, igrejas, clubes, confrarias e outros pontos de encontro surgiram grupos organizados de estudo. Armados de livros, teses, artigos e ensaios com visões diversas sobre seus problemas e aflições, os integrantes daquela nação no fim do mundo ampliaram seus pontos de vista, compreenderam sua complexa estrutura política e se assustaram ao notar o quanto eram enganados havia tanto tempo.

Entre muitas outras coisas, aprenderam que soluções mágicas não existem e que sozinhos nada fariam. Romperam com velhas choramingações, corrigiram antigos defeitos de cada um, trocaram respostas prontas por perguntas sem fim e reaprenderam a pensar em grupo. Assim, juntos, buscaram novos jeitos de curar seus velhos males.

Com o coração esperançoso e as mãos ativas, eles se articularam e cresceram pelo esforço e a boa vontade. Por isso ampliaram em milhões de vezes o que chamavam “consciência nacional”, uma base forte de seres críticos, informados, de bom caráter, movidos por boas intenções, dispostos a fazer história.

Um dia criaram um partido político e milhões aderiram imediatamente. O novo partido teve recordes de votação nas eleições seguintes. A mudança se fazia irreversível. Era só questão de tempo. A cada nova eleição, profundas limpezas nas urnas extirpavam do poder velhas parasitas, arrancavam gordos carrapatos cinzentos das veias das vacas magras, livravam suas tetas flácidas, arrastando no chão, dos canalhas desmaiados de tanto sugar-lhe o leite que ainda havia.

Os bons e novos políticos se multiplicaram, se fortaleceram e realizaram o imponderável. Em meia dúzia de décadas mudaram a Constituição, corrigiram distorções, extinguiram os velhos cargos de confiança, reduziram o número de vereadores, deputados, senadores e, por fim, aprovaram em votações incomuns na Câmara e no Senado a extinção de seus salários. Afinal, nenhum deles era político por profissão. Todos tinham outras atividades remuneradas e só entraram na vida pública para servir o povo e tornar o país um lugar melhor.

É claro que tudo isso levou muito tempo. Bem verdade é que os primeiros representantes dessa revolução não viveram para ver o resultado de sua luta. No entanto, seus filhos e netos e bisnetos, sim. A vida para eles melhorou e suas conquistas inspiraram gerações em todo o mundo.

Enfim, a humanidade percebeu que romper com velhos sistemas políticos continuava possível, embora desse tanto trabalho. O país distante deixou de gastar mais do que arrecadava e usou o dinheiro que perdia com antigas sanguessugas para reconstruir a saúde, a educação, a segurança, reduzir as cargas tributárias, valorizar a moeda, incentivar as exportações e essas coisas importantes. O povo reaprendeu a viver e a trabalhar com amor, empenho e tranquilidade. Sem a corda no pescoço.

E aí, você sabe, todos viveram felizes para sempre. Mas isso foi há muito, muito tempo, num país bem, mas bem longe daqui.

(para Eduardo Galeano)

Fotografia: Tomaz Silva/Agência Brasil

André J. Gomes

É professor e publicitário.