O que dizer de um livro que começa a ser escrito em 1910, tem a primeira parte publicada em 1930, a segunda somente dois anos depois e resta inacabado, por causa da morte repentina do autor? Se você vencer o preconceito e esquecer os comentários maldosos — e ligeiros — sobre ele, vai dizer muita coisa. “O Homem Sem Qualidades” talvez seja o romance mais hermético, mais sui generis, mais filosófico e mais poético jamais publicado, e sobram ironias finas neste curto período. É um livro cheio de intenções, de pretensões, mas, ao mesmo tempo, não quer dizer nada — tomando-se o não querer dizer no sentido de deixar ao leitor compreendê-lo da forma como melhor lhe aprouver.
Ulrich, 32 anos, o protagonista desse Bildungsroman, desse romance ensaístico, ou romance de construção — enquadrar o livro numa categoria só rendeu um caminhão de teses de mestrado e doutorado, muitas delas confusas. Ulrich era um homem que não conseguia se ajustar na sociedade em que vivia. Tentou a carreira militar: desistiu; imaginou que a engenharia lhe poderia trazer alento para uma vida sem sentido e também teve de abdicar desse propósito, por ser a engenharia teórica demais; por fim, é vencido pela matemática, com a qual também não se realiza, por ser este um campo demasiado duro e completamente avesso a subjetividades. Ulrich é um homem sem qualidades num mundo de qualidades sem homens para vivê-las, ou seja, ele estaria no lugar certo, mas é honrado demais para reconhecer-se inútil num mundo em que objetividade, praticidade, utilidade são os fundamentos para se ter uma vida plena. Nosso herói — que é muito mais um anti-herói, com muito orgulho — retira-se da vida por se reconhecer sem importância e sem qualidades. Não consegue tornar-se importante porque a subjetividade perdeu seu lugar no mundo. Tampouco pode tornar-se um homem romanesco, um Dom Quixote, por exemplo, porque falta-lhe a vivência, a relação entre sua personalidade e os fatos.
Por extensão, seu criador poderia ser tomado por pai de manifestações artísticas de contestação, como a contracultura ou, por que não? o movimento hippie. Robert Musil não conseguiria dar tamanha veracidade e tamanho vulto a seu personagem mais famoso se não lhe emprestasse um pouco que fosse de sua própria personalidade — e, novamente, muito já se falou sobre a semelhança entre autores e os tipos que inventam; muitos escritores chegam a apregoar que toda narrativa é autobiográfica. O romance pode ser lido à luz da fundamentação filosófica, como uma reflexão e interpretação do comportamento do homem junto ao meio em que se encontra, adquirindo respaldo em autores como Sartre, Beauvoir e Nietzsche. Ao mesmo tempo, é uma sátira a esses padrões sociais, levantando o questionamento acerca do quão adequado seria observá-lo à risca, já que ninguém é capaz de conhecer nossas necessidades e nossas mazelas mais que nós mesmos. Deixando-se cristalizar pelos ditames do grupo social em que se insere, o homem nunca poderá tornar-se quem é, como mandou Píndaro, reproduzido à larga por Nietzsche.
Assim sendo, o livro, por conter tantas notas à margem, tantas digressões, tantas especulações a respeito do que diabos é um homem, afinal, deixa a condição de “mero” romance e assume a natureza maior de ensaio. A história se passa em Viena, ao final do império austro-húngaro, pouco antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e é aí que se evidencia seu pendor para a reflexão filosófica no que concerne à natureza humana e o desajuste de Ulrich naquele cenário. Os prussianos preparam sua grande celebração do ano e os austríacos só pensam em fazer uma festa muito mais vistosa; para tanto, institui-se um comitê composto por membros da alta burguesia local, cujo cargo de secretário caberá a Ulrich, que parece se adaptar depressa à nova função. Até que fica sabendo do julgamento de Moosbrugger, condenado por assassinato. Ulrich começa a elucubrar sobre sua condição de homem ordinário, de homem sem qualidades, a quem só resta passar a vida numa realidade insensível a sonhos e dramas pessoais sem deixar-se sucumbir.
O julgamento de Moosbrugger toma corpo na história justamente por, de alguma maneira, estabelecer uma comparação entre o facínora, que igualmente não obedece a padrões, e Ulrich. E pior: parece que apenas ele enxerga que o processo tem muito de farsesco, uma vez que ninguém chega à conclusão sobre se Moosbrugger é de fato um criminoso cruel ou um pobre diabo que não teve a sua sorte, não se submeteu a ser aprisionado numa caixa e enlouquecera de vez. Criminoso consciente ou inconscientemente, lúcido ou insano, Moosbrugger é condenado, enquanto os demais se ocupam das festividades.
“O Homem Sem Qualidades” assume a forma de romance para narrar uma aventura intelectual. Robert Musil acreditava que o romance de formação de um indivíduo é um tipo de romance, mas o romance de formação de uma ideia é o romance em si mesmo, o que deixa evidente que preferia a reflexão sobre a natureza humana em detrimento de divagações sobre o homem personalizado, ou seja, que a alma humana seria dotada da capacidade de elaborar seus próprios conceitos a respeito de qualquer assunto. O homem não tem pouca alma; o homem tem é pouco entendimento sobre sua alma.
Com o livro, Musil se provou um intelectual indispensável, em qualquer tempo e em qualquer contexto, ao desmistificar questões cuja discussão já não se podia mais postergar. Evita-se o pensamento por não se poder compreendê-lo e ao compreender o pensamento do homem de maneira tão perspicaz e ao mesmo tempo tão sensível, Musil estabeleceu um saudável paradoxo. O calvário do escritor é dar forma literária ao pensamento, escapando do discurso filosófico. Discursos filosóficos encerram o homem num padrão específico. Sem querer, Robert Musil tornou-se um dos grandes filósofos de seu tempo, sem deixar de ser um literato de excelência. Um homem de muitas qualidades, portanto.