Convencionou-se dizer que o cinema é uma arte de diretor e que filmes são basicamente projetos muito pessoais, cheios das idiossincrasias de quem põe aquela história para rodar. Em se levando a premissa ao pé da letra, infere-se que cineastas são seres extremamente truculentos, certo? Bem, pode-se tomar o argumento por verdadeiro ao se analisar a vida de determinados diretores, mas a verdade mesmo é que a natureza humana é que é violenta, desde que éramos apenas espermatozoides doidos para derrotar todos os outros milhões de concorrentes rumo à concepção. A Bula acredita que a catarse — palavra que remete ao verbo queimar no original grego — por meio da violência é muito bem-vinda (estamos falando de cinema, que reste claro) e, desse modo, elencou dez filmes para deixar o cabeção ardendo. Tem do psicofofo “Assassinos por Natureza” (1994), de Oliver Stone, ao denso “Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos” (1985), de Paul Schrader, que conta a vida do novelista e dramaturgo japonês Yukio Mishima, os dois violentos e fortes, cada um do seu jeito, mas que em nenhum momento agridem o espectador sem motivo. As produções se sucedem da mais recente para a mais antiga e não obedecem a critérios de classificação. Deixe o extintor de incêndio a postos e tenha seus instantes de fênix.

Aqui, Tarantino declara seu amor ao cinema valendo-se da velha máxima que diz que quem desdenha quer comprar. No filme, o diretor tece loas à fantasia vendida pela indústria cinematográfica e às muitas falhas humanas cometidas ao longo da produção de uma película numa Hollywood cheia de histórias nada edificantes, um enredo que prima por chocar sem querer propor anticlímax ou reviravoltas inesperadas. Ou seja, este não é um filme previsível como pode sugerir o título, nem calculado como muitos de Tarantino, que já merece crédito por desconstruir clichês ao abordar, por exemplo, a complexidade do protagonista Rick Dalton, galã de faroestes e filmes de ação em decadência, sobre quem firma a dicotomia entre o velho ideal masculino e os conflitos interiores de um artista sensível e inseguro.

Neste filme tenso e complexo, Sion Sono conta a história de Syamoto, comerciante de peixes tropicais que vive com sua segunda esposa, Takeo, e a filha Mitsuko — todos muito estranhos e calados, o que evidencia uma crise familiar. Mitsuko é acusada de roubo, e Syamoto, para resolver o problema, aceita a ajuda do sr. Murata, que se dedica ao mesmo ofício que ele. O sr. Murata vai ganhando a confiança da família, convence Syamoto a aceitar que sua filha trabalhe para ele e more numa dependência da loja e vai mais além: propõe ao casal ter um estabelecimento em sociedade com ele, a fim de expandir os negócios de ambos. Syamoto, ávido por melhorar de vida, pensando que isso é o que falta para a família viver em paz, concorda em ouvir o que o sr. Murata tem a lhe dizer, mas logo se arrepende.

“Eu Vi o Diabo”, lançado em 2010, acompanha a história de Kim Soo-hyeon, um agente secreto cuja esposa é brutalmente assassinada pelo serial killer Jang Kyung-chul. Policial hábil e destemido um pouco além da conta, ele acha o paradeiro do psicopata, e decide dar ao assassino uma dose de seu próprio veneno ao persegui-lo numa caçada com alto teor de sadismo, pois, ao capturá-lo, espanca-o com violência e o deixa escapar, monitorando sua localização e recomeçando o jogo. Como isso é cinema — e cinema coreano —-, as coisas saem do controle de Soo-hyeon, num filme que entra arrombando a porta no tema da discussão sobre o lado perverso do homem, tanto por parte do psicopata frio e inconsequente como do agente da lei que perde a mulher e quer justiça a qualquer preço.

O leitmotiv dessa parceria entre Robert Rodríguez e Quentin Tarantino, claro, é um tanto absurdo: depois de um provável acidente nuclear numa base das Forças Armadas americanas, as pessoas começam a virar zumbis. Os mortos-vivos invadem a boate em que a stripper Cherry trabalha. Ela tenta fugir a tempo de salvar sua pele, acompanhada do namorado Wray, mas acaba tendo de amputar a perna devido ao ferimento causado por um dos zumbis. O membro é substituído por uma metralhadora e, a partir de então, escracho pouco é bobagem nesse thriller-terror cômico que não merece — nem deve — ser levado a sério. “Planeta Terror” é uma piada muito bem contada, cuja compreensão exige muito mais que bom humor.

A trama acompanha um trio de amigos, Eddy, Tom e Bacon, que ganha a vida à custa de trapaças. Eles, além de um quarto parceiro, Soap, juntam cem mil libras para que Eddy, um vigarista especializado em jogos de cartas, tenha o cacife necessário para participar de um torneio clandestino de altas apostas organizado por “Hatchet” Harry, um bandidão da pesada que manda no pedaço. Eddy se empolga e acaba sustentando uma dívida cinco vezes maior do que poderia pagar, o que vai meter sua turma na primeira enrascada do enredo: como conseguir o dinheiro. A partir desse ponto, Guy Ritchie dá status de clássico à sua estreia na direção ao acrescentar em torno de oito diferentes núcleos que se esbarram sem previsibilidade definida durante o longa, expediente caótico, mas que gera um clímax único.

Dois irmãos, Seth e Richard Gecko, são procurados pela polícia por 16 homicídios e decidem fugir para o México. A dupla acaba sequestrando um pastor que vive com a família num trailer e, a partir de então, a trama parece que vai se tornar um road movie misturado com um típico filme de assalto. Até que os fugitivos param em um bar já na fronteira dos Estados Unidos com o país latino, sem saber que se trata de um covil de vampiros. “Um Drink no Inferno” pode parecer só um filmezinho de terror com fartas proporções de passagens engraçadas, mas como pertence à grife Tarantino, responsável pelo roteiro, não foge à regra da produção altamente bem cuidada, original e, por óbvio, roteirizada com esmero. O que, sem nenhum exagero, lhe garante lugar de destaque no panteão do cinema de autor.

Mickey e Mallory mataram dezenas de pessoas num período de três semanas, observando uma regra de ouro: deixar alguém vivo para contar quem cometeu os crimes e, assim, perpetuar a fama macabra do casal. Eles viram sensação junto à imprensa marrom e o jornalista Wayne Gale passa a divulgar seus delitos no programa “American Maniacs”, até que são presos, afinal. Mas a captura deles só os faz ainda mais célebres, o que motiva Gale a dobrar a aposta em seus pupilos nesse circo dos horrores. Mickey e Mallory seriam os novos Bonnie e Clyde, só que muito mais charmosos, articulados e agressivos, a fina flor do lixo branco da América, sempre ávida por encontrar razões que justifiquem o armamento do cidadão comum sem deixar de glamourizar a violência, dando corpo a um insano — e perigoso — paradoxo.

Uma alma sublime e frágil, Yukio Mishima (1925-1970) tem a vida escrutinada ao longo de quatro segmentos que apresentam um paralelo entre a polêmica biografia do mais célebre dramaturgo japonês e suas aclamadas obras. Paul Schrader entrega aqui o produto mais consistente de sua carreira como diretor. O brilho do roteiro já garante quase sozinho a solidez de que a obra necessita sem se tornar pesada fazendo da história de “Mishima — Uma Vida em Quatro Tempos” um enredo intenso, intrigante, que traz em seu escopo bases do espírito humano, a exemplo da vontade como gatilho de mudança de vida, o existencialismo como fonte de toda indagação, a indagação à serviço do processo evolutivo e o suicídio um procedimento extremo, intrínseco e muito bem pensado, autossacrifício usado para a autoglorificação.

Um piloto de fuga profissional é contratado para dirigir para uma quadrilha de assaltantes experientes e enganar a polícia, se necessário. O que ele não sabe é que um detetive o espreita há bastante tempo e só espera um pequeno deslize seu para pegá-lo. Com um método de trabalho nada comum — que inclui, inclusive, providenciais derrapadas na lei —, o policial vai fazer qualquer coisa para atingir seu objetivo, dando início a uma perseguição com velocímetros à beira do colapso num dos melhores filmes policiais dos anos 1970. A história também deve muito de seu sucesso ao carisma de Ryan O’Neill, que deixou de lado a porção galã romântico e assumiu um papel à altura de seu talento.

Desiludido e cansado depois de lutar na Guerra Civil dos Estados Unidos (1861-1865), o veterano Jeremiah Johnson abandona a civilização e vai ter uma existência frugal. Seu sonho de se tornar o bom selvagem caucasiano rui de imediato: cercado de feras e acossado por índios hostis num inverno enregelante, ele passa por apuros, mas escapa, ajudado por um velho ermitão. “Mais Forte que A Vingança” é uma bonita odisseia, propositalmente conduzida em ritmo contemplativo, a fim de fazer o espectador cruzar com o protagonista as deslumbrantes locações. O filme, baseado numa lenda do Velho Oeste americano, é uma das sete festejadas parcerias entre Robert Redford e Sydney Pollack, responsáveis também pelo bom desempenho de “Três Dias de Condor” e “Entre Dois Amores”, e foi indicado à Palma de Ouro de Cannes.