Durante a década de 1920, Virgínia Woolf foi convidada para palestrar em duas faculdades acerca da temática “As mulheres e a ficção”. Suas explanações resultaram no ensaio “Um Teto Todo Seu”, publicado em 1929. Woolf faz aqui uma abordagem peculiar. Nos apresenta a “Mary Beton, Mary Seton, Mary Carmichael ou qualquer outro nome que lhes agrade” e, por meio dessa narradora ficcional, discorre sobre as discrepâncias entre os papéis de gênero, e como a assimetria dessas relações reverberam na produção literária feminina.
Mary observa desde situações comezinhas — bedéis que lhe proíbem de pisar nos gramados ou adentrar na biblioteca da universidade sem o convite de um homem — até o quanto circunstâncias materiais e imateriais, tais como o dever de castidade, o servilismo e a inexistência de instrução formal, concorrem para o abismo entre ser mulher e ser artista.
O ensaio é sinuoso, descritivo e requer concentração do leitor que, ao mesmo tempo, é recompensado pela sutil ironia e escrita refinada da escritora britânica.
“Assim munida, assim confiante e inquisitiva”, Mary Beton, ou Mary Seton (enfim, adotem um nome!), sai “em busca da verdade” em pesquisas pelas estantes do Museu Britânico. Logo se depara com textos que emanam um “quê de fúria”: “a maioria das mulheres não tem nenhum caráter”, “teriam alma ou não?”, “o cérebro delas é mais superficial”. Perplexa diante da nuvem de papéis e misoginia, imagina a mulher como uma espécie de espelho, com poderes para refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural.
Contudo, aqui devo abrir um parêntese que denota, talvez, um contraponto ao que Mary invoca. No desfecho do ensaio, quando a escritora se despe da narradora, ela própria assinala o quanto “essa peleja de sexo contra sexo, de qualidade contra qualidade; todo esse clamor por superioridade e essa imputação de inferioridade pertencem ao estágio colegial da existência humana, no qual há lados e é necessário que um lado derrote o outro, e é de extrema importância subir em uma plataforma para receber nas mãos do próprio diretor um troféu ornamentadíssimo. Conforme amadurecem, as pessoas deixam de acreditar em lados ou em diretores ou em troféus ornamentadíssimos”.
Algumas páginas depois, uma perspicaz Mary pega na mão do leitor e o conduz pela condição feminina no cenário histórico-cultural do final do século 21, divagando, criticamente, sobre o que teria ocorrido se o brilhante Shakespeare tivesse tido uma irmã igualmente talentosa, ao que conclui: “Mas, de minha parte, concordo com o falecido bispo, é impensável que qualquer mulher nos dias de Shakespeare tivesse tido o dom de Shakespeare. Porque um gênio como o de Shakespeare não surgia entre pessoas trabalhadoras, sem educação formal, servis. (…) Como, então, poderia surgir entre mulheres cujo trabalho começava, de acordo com o professor Trevelyan, pouco antes de deixarem o berço, e ao qual eram impelidas pelos pais e obrigadas pelo poder da lei e dos bons costumes? Ainda assim, gênios desse tipo hão de ter existido entre as mulheres, da mesma forma que hão de ter existido entre as classes trabalhadoras. Vez ou outra uma Emily Bronte ou um Robert Burns se inflama e comprova essa presença. (…) Quando, porém, lemos sobre o afogamento de uma bruxa, sobre uma mulher possuída pelos demônios, sobre uma feiticeira que vendia ervas ou mesmo sobre um homem muito notável e sua mãe, então acho que estamos diante de uma romancista perdida, uma poeta subjugada, uma Jane Austen muda e inglória…”
Volta e meia, a ensaísta/narradora evidencia a dinâmica de séculos de patriarcado com o silenciamento, ou mesmo o anonimato de vozes femininas, a exemplo de Charlotte Brontë, Mary Ann Evans e Amandine Dupin, cujos pseudônimos eram, respectivamente, Currer Bell, George Eliot e George Sand.
Ao longo do discurso, uma ideia se encorpa e exprime a essência deste trabalho: a defesa de que “é necessário ter quinhentas libras por ano e um aposento com tranca na porta para escrever ficção ou poesia”.
Dito em outras palavras, o convite à criação e ao imaginário pressupõe espaço para manejar a liberdade de se exprimir sem sujeições. Woolf esgarça este conceito e abraça o simbolismo: onde se lê uma fechadura na porta, leia-se paz, autonomia e poder de contemplação. Leia-se terreno fecundo para “a coragem de escrever exatamente o que pensamos”.
“É isso. A liberdade intelectual depende de coisas materiais. A poesia depende da liberdade intelectual.”