‘Viver é desenhar sem borracha’

‘Viver é desenhar sem borracha’

Noite dessas de outono, na fiel companhia dos meus pensamentos, me acho no devaneio dos caminhos que segui, nas coisas que fiz tomada por uma coragem que não sei de onde tirei. Penso no que deixei de fazer pelo medo tolo de falhar ou me arrepender depois. Me lembro das escolhas seguras e das pessoas que passaram pela minha vida. As que eu convidei e as que simplesmente entraram porque, por puro descuido, deixei a porta aberta.

Como eu queria poder voltar no tempo e reescrever algumas linhas… Ter aberto outras janelas, trancado porões, pegado outro trem, ter corrido sem rumo até ver aonde dava, para depois, quieta e escondida, esperar a tempestade passar. Quando a melhor escolha é o silêncio, nós berramos. Quando a vida nos exige gritos, nós calamos. Fomos permissivos com gente que não merece sequer a nossa lembrança, e ao mesmo tempo, intolerantes e intransigentes com quem de nada teve culpa.

Eu sei, somos o resultado da soma dos nossos passos, mas, sinceramente, eu acredito que a nossa carga seria mais leve se uns e outros não tivessem cruzado o nosso acaso. Talvez esses encontros sejam obra do destino, e pela sorte ou falta dela, as tais uniões acontecem por alguma razão. Creio que seja uma forma de ensinamento e aprendizagem para ambos os envolvidos. A troca existe por algum motivo de lição e proveito, e uma vez entendida e superada, nos tornamos uma pessoa “melhor” e teoricamente mais preparada para a vida. Mas até que isso aconteça, que entendamos as razões desses encontros e aceitamos as suas consequências, ficamos presos num labirinto de porquês, escuro e sombrio.

A cada saída a nossa bagagem fica mais pesada. Nos tornamos indiscutivelmente mais fortes e resistentes, ganhamos perspicácia e um faro mais aguçado. Em contrapartida, perdemos um pouco da crença no ser humano, deixamos escapar um pedaço da nossa inocência que nunca será recuperada. Tudo isso por medo da queda e o temor que nos falte forças para se erguer novamente.

Imagino que é comum se arrepender de algumas escolhas feitas ou até mesmo daquelas que, por falta de vontade ou coragem, ficaram guardadas em alguma gaveta dentro de nós. A verdade é que só o tempo é capaz de sossegar o arrependimento das decisões, tomadas ou não, e com ele tragamos dia após dia os espinhos da dor, do medo, da decepção.

O lado bom é que a vida também nos surpreende com os bons encontros, aqueles que nos mudarão de alguma forma e para sempre, convertendo um coração pesado numa alma leve. Pessoas que cruzam o nosso caminho trazendo o sol aos dias cinzentos e o calor em tempos de frio. Onde parecia impossível brotar uma flor, nasce um jardim inteiro de esperança e fé na possibilidade de ser feliz. Dessa junção se confirma a certeza de que tudo também tem um porquê para o bem, que o universo conspira também a nosso favor.
Cada milésimo de segundo viverá eternamente com a mesma intensidade e importância.

É por isso que me acerco das más recordações, porque elas me fazem pensar nas boas lembranças como uma saída para diminuí-las. Cada qual com seu peso e valor. Umas lutando para serem esquecidas, outras se agarrando às inexplicáveis e incomparáveis memórias vivas. Que os invernos nos ensinem o que os verões nos fazem adormecer.

*Título tomado de empréstimo de Millôr Fernandes. Ilustração: Isabelle de Kleine

Karen Curi

é jornalista.