Nos últimos anos surgiu uma moda entre os diretores de cinema, relançar seus antigos filmes de sucesso modificados, a chamada “versão do diretor”. As obras reeditadas recebem esse nome porque seriam as versões que os diretores pretendiam lançar originalmente e não puderam, devido a pressões do mercado, falta de tecnologia para dar forma a sua imaginação ou mesmo tempo hábil para trabalhar. Os resultados costumam gerar polêmicas. Se positivos ou negativos depende muito da visão de cada espectador.
Os exemplos falam por si. A nova “Liga da Justiça” que Zack Snyder lançou em 2021 é apenas o caso mais recente. Há outros emblemáticos, como “Blade Runner — O Caçador de Androides”, no qual Ridley Scott retirou o constrangedor final “Pollyana” e a horrenda narração em off, mas em compensação incluiu uma confusa cena com um unicórnio com o chifre balançando, que significaria tolamente que o próprio caçador de androides é também um androide, diluindo uma das principais ideias do filme: o choque do homem com os monstros de sua própria criação, as máquinas. Com “Guerra nas Estrelas”, agora chamado de “Episódio 4 — Uma Nova Esperança”, George Lucas teve um arroubo politicamente correto e modificou a cena na qual o bom canalha Han Solo atirava a sangue-frio em um mercenário alienígena (chamado Greedo) em pleno boteco espacial. Agora Greedo atira primeiro e o bonzinho Solo apenas se defende, tendo a “infelicidade” de matar seu adversário. O mesmo aconteceu com Steven Spielberg que transformou digitalmente em walk talkie os revólveres dos agentes que perseguem o “E.T”. Finalmente, temos “O Exorcista”, no qual William Friedkin incluiu cenas novas que aprofundam os personagens, colocando-os ao lado de imagens de demônios aparecendo em cantos escuros dos cenários, num efeito que parecem meros exibicionismos técnicos, introduzidos unicamente para agradar as plateias do novo milênio, acostumadas com os sustos fáceis da computação gráfica.
Outro exemplo é “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola. O filme foi lançado originalmente em 1979, depois de filmagens infernais e longuíssimas sessões de edição igualmente horrendas. O “work in progress” de Coppola chegou a ganhar o apelido de “Apocalypse Never”, pois parecia destinado a jamais ver a luz do sol. Felizmente, não foi o que aconteceu e o mundo foi brindado com um dos melhores filmes do todos os tempos, ganhador da Palma de Ouro em Cannes. Vinte e dois anos depois, Coppola lançou uma nova versão de seu clássico de guerra, que chamou de “Apocalypse Now Redux”, afirmando ser este o filme que teve medo de mostrar em 1979, diante de tanta pressão. A quem interessar possa: redux é uma palavra latina que significa “renascido”, “de volta”.
Nenhuma “versão do diretor”, até hoje, foi tão radical. Foram acrescidos 53 minutos. O resultado é um filme muito diferente, tanto no ritmo quanto no tom. Se é melhor ou pior, como escrevi acima, é uma questão polêmica. Eu me decepcionei. Acho que “Apocalypse Now” é uma obra de arte maculada por um ataque de megalomania. Um elefante branco. Um elefante branco genial é verdade.
Vamos aos fatos. No caso, os fatos são as modificações feitas.
As primeiras são quase irrelevantes. Uns poucos segundos mostrando o coronel Kilgore, imortalizado na interpretação vigorosa de Robert Duvall, ajudando alguns vietnamitas feridos pelo ataque de sua cavalaria aérea. Na sequência o que temos é uma heresia. Kilgore é despido de toda sua aura épica e alucinada e é transformado em um idiota comum, um estereótipo sem qualquer profundidade psicológica, na cena em que Lance, o soldado surfista, recusa-se a surfar nas ondas estragadas pelo napalm e foge levado pelo capitão Willard, de Martin Sheen, que aproveita para roubar sua prancha. Na última vez em que aparece de fato está tendo um chilique, jogando um megafone para o alto. Na versão de 1979, saia de cena de forma magnífica. Dizia “adoro o cheiro de napalm pela manhã. É cheiro de vitória… (e depois completava desconsolado) um dia esta guerra vai acabar”. Um corte seco e, em seguida, tínhamos Willard, em sua narração em off, respondendo-lhe que sim, que aquela guerra iria acabar um dia e que isso é tudo o que os soldados comuns esperam: voltar para casa. As duas falas permanecem, mas tão distantes uma da outra que perdem sua relação intrínseca. No lugar ficou o bobo roubo da prancha que, se por um lado, é divertido, por outro nada acrescenta ao filme.
Em seguida, logo após o show das coelhinhas da Playboy, temos um solo do senhor Limpo, do então jovem Laurence Fishburne, onde ele narra a história de um sargento americano que matou um tenente vietnamita aliado porque o “amarelo” estragou sua revista pornográfica. É o acréscimo mais significativo em minha opinião. Nele fica patente todo o preconceito que os soldados americanos tinham contra os orientais, fossem aliados, fossem inimigos. Mais determinante do que o lado da trincheira é a cor da pele. Notável o fato de que o porta-voz do preconceito racial nessa cena é um negro pobre e iletrado. Brilhante ironia.
Infelizmente, a felicidade da inclusão desta cena serve de gancho para a sequência mais gratuita do filme: o encontro sexual com as coelhinhas. Antes de tudo, é preciso admitir que esta sequência é bastante espirituosa, patética no bom sentido, lembrando o fantástico “Mash”, de Robert Altman. O problema é que destoa do restante do filme. Por quê? Simples: fica parecendo que o barco do Patrão é o único que percorre o rio. Tudo acontece com eles. Lembremos o fato de colocaram Willard para percorrer o rio de barco justamente para que passasse desapercebido. Onde fica o sentido do disfarce? É um pressuposto básico do enredo. Ademais, sejamos sinceros, na cabeça daqueles soldados, depois de um encontro com a playmate do ano, que impacto teria o encontro com o balofo coronel Kurtz? Ele simplesmente se tornaria irrelevante, corriqueiro. Enfim, esta parte é tão descolada do conjunto que só serve para mostrar onde Lance conseguiu sua maquiagem de camuflagem. O que, convenhamos, é muito pouco.
Mas o pior vem depois, a longa sequência da plantação francesa. É um verdadeiro banho de água fria. Corta completamente o ritmo acelerado que o filme de 1979 tomava, se preparando para chegar ao clímax. Morto o senhor Limpo, pouco depois morreria o Patrão. Sentia-se um clima de perigo no ar, antevendo a proximidade cada vez maior de Kurtz. É muito fácil defender essa sequência apontando sua pretensa profundidade filosófica. O próprio Coppola comparou seus personagens com “fantasmas de Buñuel”, o que por si só serve como sua justificativa intelectual, mas não justificativa dramática. A verdade é que se trata de um equívoco. É um núcleo monótono, tagarela ao extremo e ilógico. A cena do jantar, por exemplo, é de uma artificialidade gritante. Todos os personagens saem da mesa de maneira teatral, em meio a discursos raivosos, com o único objetivo narrativo de deixarem Willard e a viúva alegre sozinhos. Chega a ser constrangedor ver um cineasta do talento de Coppola se prestar a um recurso tão simplório para alcança seu objetivo. Aliás, os “fantasmas de Buñuel” deveriam ensinar a família de Scarlett O’hara o segredo de como se manter comendo com talheres finos e toalhas limpas em plena guerra, como se nada estivesse acontecendo.
De qualquer forma, o que vem a seguir é ainda mais inacreditável: a cena da sedução. Aqui se salta de um complexo drama de guerra para cair, inexplicavelmente, em um pornô soft estilo “Emanuelle”. O que significa dizer que temos em cena o estranho coquetel composto de discursos infindáveis, psicologia de almanaque, frases feitas, um pouco de drogas para parecer transgressor e, como cereja do bolo, nudez discreta e chique. Resultado: agora entendemos o motivo de Willard querer tanto voltar para selva, depois de assinar o divórcio. Ela mais parece um bordel para recém-separados. Há sexo fácil para todo lado. E olha que na versão de 1979, Willard e seus rapazes ficavam em abstinência total.
Depois de muitas digressões, em que o efeito catártico do filme original praticamente se perde numa sucessão de quebras de ritmo, finalmente, a equipe de atletas sexuais de Willard alcança a tribo pagã de Kurtz. O efeito não é mais o mesmo. Os incidentes ao longo da jornada foram tantos e tão improváveis que tiraram grande parte do impacto da chegada, antes apoteótica.
É onde temos a última e interessante inclusão. A cena na qual Kurtz lê um trecho de uma reportagem da revista “Time” para Willard, seu prisioneiro. É muito boa, apesar de destoar das outras aparições de Marlon Brando, mostrado sempre no escuro, envolto no “coração das trevas”, para citar a novela de Joseph Conrad que inspirou a premissa do filme. É o tipo de imagem que trai o espírito do personagem, conforme delineado pelo diretor. Apesar de ser uma cena muita bem escrita, não tinha motivo para entrar na versão de 1979, e não entrou. O mesmo poderia ser dito sobre a versão ano 2000, mas entrou. Certamente, Coppola mudou de ideia quanto a sua visão cinematográfica de Kurtz. Ou, simplesmente, não considera mais necessário esconder a obesidade de seu astro.
Certa vez Oscar Wilde disse que “a crítica é a única forma civilizada de autobiografia”. Nesse sentido, “Apocalypse Now” não é apenas um filme, é um acontecimento artístico que faz parte da vida de seus verdadeiros espectadores. Opinar sobre seus destinos é, portanto, um ato natural. “Redux” não é uma mera edição simplificada para a televisão ou uma “versão do diretor” em que quase nada muda. É, reafirmo, outro filme. Mais até, trata-se de uma declaração de que o original, virtualmente, não tem mais validade. Segundo Coppola, “Redux”, “é a versão definitiva”. Claro que na posição de criador Coppola tem todo o direito de fazer o que quiser com sua obra. Eu, por outro lado, na condição de espectador, também tenho o direito de não concordar. Para mim, a obra-prima de 1979 é a verdadeira “versão definitiva”.
Seja como for, tudo que é ruim pode piorar. Em 2020, Coppola, atual dono de vinícola e virtualmente aposentado do cinema, resolveu mexer em “O Poderoso Chefão 3 — Desfecho: A Morte de Michael Corleone”. Até o momento, recusei-me a ver essa heresia. O apocalipse só pode mesmo estar chegando quando um homem de gênio decide modificar uma obra de arte intocável. Colocar um bigode na centenária, verdadeira e única “Mona Lisa”.